Os dois no meio da fileira do meio, da esquerda para a direita: Edmund Gettier e Alvin Plantinga
O conhecimento é uma atividade cotidiana e não somente um problema filosófico abstrato. Em cada momento do dia pensamos e agimos segundo critérios tácitos ou explícitos, de maior ou menor complexidade de acordo com a situação e a previsão dos riscos envolvidos. Por conseguinte, uma definição única de conhecimento ou mesmo a imposição de uma metodologia rígida para todas as atividades seria ou inútil ou contraproducente.
Entretanto, algumas intuições se apresentam como condições mínimas para que alguém possa alegar com justiça que tem conhecimento de algo. Se ao atravessar o centro da cidade para chegar ao trabalho perguntamos a um transeunte qualquer que horas são e este responde prontamente “meio-dia” sem consultar seu relógio, naturalmente não confiamos na resposta. Sentimos que algo lhe falta para poder fazer essa afirmação.
Evidentemente, poderíamos nos satisfazer com essa informação se nosso objetivo era tão somente obter uma vaga estimativa da hora e não a hora exata. O contrário sendo o caso, sentimo-nos no direito de interpelar o transeunte uma segunda vez perguntando de onde lhe vem a certeza de sua resposta. Se ele responder que simplesmente sabe que é meio-dia, a dúvida persistirá. Ainda que, segundos após esse episódio, achemos um relógio eletrônico na praça e nos certifiquemos da verdade da afirmação do transeunte, isso não a tornará mais confiável.
Num caso simples do cotidiano como o descrito acima, vêem-se envolvidos diversos critérios usualmente empregados para se reconhecer a alegação de conhecimento de um fato. Não nos parece suficiente que alguém meramente afirme conhecer algo. Dizer que sabe a hora exata sem ter consultado o relógio parece-nos absurdo ainda que a afirmação seja estritamente verdadeira, ou seja, que a proposição corresponda aos fatos.
A estranheza e a desconfiança vêm do fato de reconhecermos que sempre é possível dizer algo verdadeiro sobre qualquer assunto sem nada saber sobre ele. Se alguém se dedicasse a fazer afirmações sobre economia todos os dias, mesmo sem ter a menor formação nessa disciplina ou consultar dados e informativos, haveria uma probabilidade alta de que um dia dissesse algo de verdadeiro. É porque reconhecemos a possibilidade de coincidências que desconfiamos dessas informações.
Contrariamente, a afirmação confiável é aquela que é feita a partir de bases reconhecidas como usual ou infalivelmente seguras. Um indivíduo que queira provar uma proposição deve mostrar que ela se deduz logicamente de premissas evidentes ou, ao menos, verdadeiras. Se quiser afirmar uma teoria empírica, deverá mostrar que ela se deduz de conhecimentos já suficientemente aceitos, concorda com os dados da experiência direta e fornece predições seguidamente confirmadas.
É óbvio que sempre há o risco do erro. As bases podem ser falsas ou insuficientes para provar o que se deseja provar. Mas se esse não é o caso e as bases são seguras, não há porque não prestar assentimento ao que é proposto como verdade. Nesse caso, tem-se tudo o que geralmente se exige como condições necessárias e suficientes para a afirmação de conhecimento, a saber, crença verdadeira justificada.
Em primeiro lugar tem-se a crença na verdade da proposição, tese ou teoria. O assentimento à proposição é essencial para que se possa afirmar conhecimento. Não há como dizer que se conhece algo se não se acredita na verdade do que se afirma sobre ele. Cumpre também encontrar uma justificativa para a crença, ou seja, encontrar bases adequadas para a afirmação. Por fim, é imprescindível que a proposição mesma seja verdadeira.
Voltemos ao caso do homem que pergunta as horas a um transeunte no centro da cidade. O cenário é o mesmo, a resposta permanece insatisfatória e o indagador acaba por confirmar a veracidade da informação por meio de um relógio eletrônico no meio da praça. Agora é possível afirmar que o homem tem conhecimento de que horas são. A crença de que é meio-dia é verdadeira (de fato, é meio-dia) e é sustentada pela justificação dada pela consulta ao relógio (que é uma forma adequada de aferição).
A essa situação acrescente-se o seguinte detalhe: o relógio está quebrado. Ora, qualquer relógio parado dá as horas corretamente pelo menos duas vezes ao dia. A probabilidade de que alguém o consulte em um dos dois momentos em que isso se dá não é muito alta individualmente, mas aumenta se considerarmos a quantidade de pessoas que consultam o relógio de uma praça no centro da cidade. Sem dúvida, isso aconteceu a pelo menos uma pessoa algum dia.
Considere-se que tenha acontecido ao homem de quem se falou até agora. Ao consultar o relógio parado no meio da praça, ele o fez no momento em que o aparelho danificado marcava a hora correta. Dessa forma, ele tem a crença de que é meio-dia, essa crença é verdadeira (de fato, é meio-dia) e justificada por meio adequado de aferição. A pergunta, considerando-se que o relógio estava parado, é se há realmente conhecimento nesse caso.
O homem em questão não sabe que o relógio está parado e que foi somente uma coincidência o fato de que ele o consultou justamente no momento em que a máquina fornecia a hora correta. O ponto nevrálgico dessa questão é a dificuldade de se afirmar que uma coincidência possa figurar como justificação válida para atribuições de conhecimento. Não obstante, se realmente não é possível atribuir conhecimento nesses casos, então crença, verdade e justificação não são condições suficientes, embora aparentemente sejam necessárias, para o conhecimento.
Em síntese, essa questão é o cerne do artigo Is Justified True Belief Knowledge? de autoria do filósofo americano Edmund Gettier, publicado no número 23 da revista Analysis do ano de 1963. Em apenas três páginas e por meio de dois exemplos inventados, Gettier pretendeu demonstrar que a ideia de conhecimento como crença verdadeira justificada não se sustenta. No artigo, o filósofo afirma que várias tentativas foram feitas nos anos recentes para determinar as condições necessárias e suficientes para o conhecimento de uma dada proposição e que tais tentativas têm em geral a seguinte forma:
S sabe que P se e somente se:
P é verdadeiro.
S crê que P.
S está justificado a crer que P.
Em seguida, o americano ilustra sua afirmação com exemplos tirados de dois filósofos contemporâneos, Roderick Chisholm e A. Ayer. Segundo Gettier, Chisholm defende que alguém sabe que P se e somente se:
S aceita P.
S tem evidência adequada para P.
P é verdadeiro.
Por sua vez, ainda segundo Gettier, Ayer sustenta que as condições necessárias e suficientes para o conhecimento são aquelas em que
P é verdadeiro;
S está certo de que P é verdadeiro.
S tem o direito de estar certo de que P é verdadeiro.
Ora, para o filósofo americano, as condições dadas nos exemplos acima não são suficientes para a verdade da proposição de que “S sabe P”. Sua argumentação intenta mostrar que o problema reside na condição “S está justificado a crer que P” e que a situação permanece a mesma quando se substitui “S está justificado a crer que P” pelas variantes “S tem evidência adequada para P” ou “S tem o direito de estar
certo de que P é verdadeiro”.
Gettier então passa a descrever dois casos fictícios para ilustrar dois pontos. No primeiro deles, mantendo-se o sentido de “justificado” empregado como condição necessária para que S saiba que P, uma pessoa pode estar justificada em crer que P e P ser falso. E no segundo, para qualquer proposição P, se S está justificado em crer que P, e P tem Q como consequência, e S deduz Q de P e aceita Q como resultado dessa dedução, então S está justificado em crer que Q.
No primeiro exemplo apresentado por Gettier, supõe-se a existência de dois homens, Smith e Jones, que fazem solicitação para um emprego. Supõe-se também que Smith tem forte evidência para chegar à proposição conjuntiva segundo a qual: (a) Jones é o homem que vai conseguir o emprego e Jones tem dez moedas em seu bolso.
A evidência que Smith tem para (a) vem da informação dada a ele diretamente pelo presidente da companhia de que Jones seria selecionado ao final e do fato de que ele mesmo (Smith) havia contado as moedas no bolso de Jones dez minutos atrás. Da proposição (a) deriva-se a proposição (b) segundo a qual:
(b) O homem que vai conseguir o emprego tem dez moedas no bolso.
Supondo que Smith perceba a derivação de (b) de (a) e aceite (b) baseado em (a), então Smith está claramente justificado em crer que (b) é uma proposição verdadeira. Contudo, suponha-se que, a despeito do desconhecimento de Smith, será ele e não Jones que conseguirá o emprego e que, além disso, ele também tem dez moedas no bolso sem o saber. Sendo assim, a proposição (b) é verdadeira, embora a
proposição (a) da qual ela é derivada é falsa. De tal cenário se conclui que:
1. A proposição (b) é verdadeira.
2. Smith crê que (b) é verdadeira.
3. Smith está justificado em crer que (b) é verdadeira.
O problema reside no fato de que Smith realmente não sabe que (b) é verdadeira, uma vez que ele ignora que tem dez moedas em seu próprio bolso. E a verdade de (b) se funda no fato da existência de dez moedas no bolso de Smith, embora o próprio Smith derive a verdade de (b) do fato de Jones ter dez moedas no bolso e da informação de que Jones conseguirá o emprego no fim.
O segundo caso fornecido por Gettier tem como personagens os mesmos Smith e Jones numa situação diferente, mas com os mesmos resultados teóricos. O filósofo americano convida o leitor de seu artigo a imaginar que Smith tem forte evidência para a seguinte proposição:
(c) Jones é dono de um Ford.
Há muito que Smith conhece Jones e até onde Smith se lembra, Jones sempre teve um carro e este sempre foi um Ford. Além disso, Jones acabou de oferecer uma carona a Smith enquanto dirigia um Ford. Não obstante, Smith tem um amigo chamado Brown cujo paradeiro é desconhecido e seleciona ao esmo as três seguintes proposições:
(d) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Boston.
(e) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona.
(f) Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Brest-Litovsk.
Cada uma dessas proposições pode ser derivada de (c) e Gettier sugere ao leitor que admita que Smith não só percebe essa derivação como aceita como verdadeiras as três proposições (d), (e) e (f) baseado na verdade de (c). Como Smith as inferiu de uma outra proposição da qual ele tem grande evidência, então Smith está totalmente justificado em crer nas três proposições acima identificadas.
Acrescente-se em seguida que, na verdade, Jones dirige um Ford alugado e que, por uma grande coincidência, sem que Smith disso saiba, Brown realmente está em Barcelona. Admitidas essas duas novas informações, temos:
1. A proposição (e) é verdadeira.
2. Smith acredita que (e) é verdadeira.
3. Smith está justificado em crer que (e) é verdadeira.
Segundo Gettier, apesar das condições acima terem sido preenchidas, não se pode afirmar que realmente Smith tenha conhecimento de que (e) é verdadeira. O que torna Smith justificado em crer na verdade de (e) é a mera coincidência de que Brown esteja em Barcelona (do que ele não tem nenhuma evidência) e não a proposição (da qual ele pensa que tem grande evidência) de que Jones tem um Ford.
Os dois casos criados por Gettier têm como objetivo mostrar que a análise segundo a qual conhecimento é crença verdadeira justificada está errada. A reação a essa afirmação foi imediata e logo após a publicação do artigo seguiu-se uma enxurrada de respostas gerando uma polêmica baseada majoritariamente em artigos de revistas acadêmicas. Como afirmou Alvin Plantinga, o caso de Gettier é único na filosofia contemporânea e sua importância pode ser medida pela disparidade entre o número de páginas do artigo original e o número de páginas que foram escritas para respondê-lo.
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