sábado, 1 de junho de 2019

Modelos mecânicos do mundo nos pré-socráticos



"Tolos, pois eles não possuem pensamentos vastos, uma vez que consideram que aquilo que não era veio a ser ou que uma coisa que morre é completamente destruída."

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO, fragmento 12 (tradução própria)

"A sua crítica a Anaxágoras não era que ele havia feito a Mente a força motriz por trás de todo o universo, mas que, tendo feito isso, ele a ignorou e explicou o fenômeno cósmico por causas mecânicas as quais pareciam não ter qualquer relação com a inteligência."

W. K. C. GUTHRIE, Socrates, p.155

"Ao ler Anaxágoras, Sócrates descobriu que a ação dessa Inteligência estava limitada a iniciar o movimento no espaço e que, para todo o resto, Anaxágoras retorna ao tipo usual de causas mecânicas. Esse  sistema do mundo, afinal, não fora projetado para nenhum bom propósito."

F.M. CORNFORD, Before and After Socrates, p.3


Nossos sentidos nos testemunham mudanças evidentes. As coisas que nos cercam aparecem e desaparecem, nascem e morrem, vêm ao ser e deixam de ser. Mas, se isso é verdade, elas passam do não-ser ao ser e do ser ao não-ser. Como algo assim pode se dar se o não-ser corresponde ao nada? Do nada nada vem, então não pode haver passagem do não-ser ao ser. E aquilo que é ser, por qual razão tornar-se-ia não-ser, ou seja, nada? E pode haver nada? Aparentemente, a filosofia da escola eleata de Parmênides, Zenão e Melisso negava justamente essas possibilidades.

A questão é saber como conciliar (se for possível, é claro), a evidência dos sentidos com a percepção intelectual de que nada pode vir do não-ser. A fim de preservar as duas instâncias de conhecimento, a solução encontrada por alguns dos físicos pré-socráticos foi afirmar que, ao contrário do surgimento de algo a partir do não-ser, a mudança sempre se dá a partir de algo que não somente já existe, mas existe desde sempre e para sempre.

Tudo o que há e que aparentemente muda, só muda porque é o rearranjo de entidades que jamais mudam, isto é, entidades mais fundamentais: os elementos. Se as coisas que testemunhamos pelos sentidos têm origem e fim, os elementos caracterizam-se justamente por não terem início ou fim. Eles são eternos, jamais vindo do não-ser ao ser e jamais passando do ser ao não-ser. Desse modo, há um substrato eterno fundamental que dá conta da aparição e desaparição das coisas sem que haja risco de afirmar o absurdo de uma geração a partir do nada.

Em certo sentido, a geração e a corrupção que vemos no mundo é o aspecto mais exterior da absoluta estabilidade dos elementos. Fundamentalmente, o que há são os elementos eternos e suas conformações passageiras dão origem às coisas efêmeras que vêm e vão, como o homem. Mas resta apontar as causas das conformações dos elementos, ou seja, por quais razões os elementos combinam-se em determinadas formas e proporções que dão origem a tudo o que vemos.

Há algum princípio, interno ou externo, que incline os elementos a se combinarem do modo ordenado em que se combinam ou toda a ordem que o mundo sensível exibe deve-se ao acaso ou à ação de forças cegas que lançam ao esmo os elementos fazendo-os por vezes juntarem-se em todos coerentes e funcionais e por vezes separarem-se destruindo esses todos? Um muro é feito de tijolos, mas não está claro como os tijolos poderiam formar um muro se lançados ao acaso uns sobre os outros.

O que caracteriza os modelos mecânicos da realidade física de Empédocles, Demócrito e Anaxágoras é justamente a tentativa de construção do mundo sem auxílio de qualquer princípio formal subjacente que dê às coisas singulares o tipo de ser que elas são. Em outros termos, a realidade sensível tem a conformação que apresenta não pela ação de algum princípio formal ou teleológico intrínseco ou extrínseco às coisas, mas pela ação não intencional de forças cegas agindo sobre constituintes materiais eternos.

Assim, segundo Empédocles, há quatro elementos eternos (Água, Fogo, Terra e Ar) que combinam-se e separam-se de acordo com a ação de um vórtice governado ora pelo Amor, ora pelo Ódio. Isto é, há quatro componentes materiais últimos e uma causa mecânica que os agrega formando todos coerentes (por vezes criando monstros) e os desagrega desfazendo esses todos e que é a responsável derradeira pela diversidade das coisas no mundo. 

Em Demócrito e Leucipo, nada há além de uma infinidade de átomos eternos e o vazio infinito no qual estes movimentam-se. Toda a diversidade testemunhada pelos sentidos não sendo nada mais do que configurações passageiras formadas pela agregação e desagregação de conjuntos de átomos de tamanhos e formas geométricas diferentes em diversos arranjos espaciais. Mais uma vez, há constituintes materiais elementares e o movimento e o choque entre os átomos sendo a causa mecânica última de haver seres como os há na realidade física.

Anáxágoras, por sua vez, postula que em tudo há tudo o que há, isto é, todas as coisas são formadas por porções de todas as coisas que estavam, de início, completamente fundidas em uma mistura indiferenciada. Eis o elemento material eterno. A causa mecânica é o vórtice que separa essas porções de tudo presentes em tudo. Todavia, há uma Mente, diferente desses princípios, mas que só fornece o impulso inicial e não intervém mais no processo. Todas as coisas formam-se a partir daí pela separação contínua das porções presentes em todas as coisas.

Evidentemente, não é possível expulsar totalmente os princípios formais e teleológicos das coisas, como aponta Aristóteles em sua Física, mas a pretensão em todas essas tentativas é a de criar um mundo a partir somente de um ou mais elementos materiais eternos que formam, por exclusiva ação mecânica, a diversidade dos seres que os sentidos testemunham.

F.M. Cornford e W.K.C. Guthrie assinalam que essa limitação é a razão pela qual Sócrates rejeita a filosofia de Anaxágoras, pois, apesar do apelo à uma mente, toda a explicação do mundo resume-se a dizer como as suas partes constituintes comportam-se e não por que elas se comportam do modo como o fazem. Sócrates, abandonando as investigações dos filósofos naturais, realizará a conversão da filosofia do estudo do mundo exterior ao estudo do homem e do cuidado de sua alma. Cornford denominará essa mudança de descoberta da alma.

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