是以有德
"A retidão não é reta,
Por isso, é retidão." (tradução minha)
TAO TE CHING, 38
"O sábio ultrapassou todas as distinções inerentes aos pontos de vista exteriores. No ponto central onde ele se encontra, toda oposição desapareceu e se dissolveu em um perfeito equilíbrio."
RENÉ GUÉNON, Aperçus sur l"ésoterisme islamique et le Taoïsme, p.118 (tradução minha)
TAO TE CHING, 38
"O sábio ultrapassou todas as distinções inerentes aos pontos de vista exteriores. No ponto central onde ele se encontra, toda oposição desapareceu e se dissolveu em um perfeito equilíbrio."
RENÉ GUÉNON, Aperçus sur l"ésoterisme islamique et le Taoïsme, p.118 (tradução minha)
O livro de Chuang Tzu relata a história de Shu-shan "sem dedos", um homem que teve um dos pés cortados, e que foi visitar Confúcio em sua casa. Chegando lá, Confúcio o recebeu grosseiramente, dizendo que o homem havia sido descuidado, que havia descumprido uma lei e recebido o castigo devido. O que Shu-shan poderia esperar procurando-o agora, depois de tudo isso?
O homem respondeu que não havia compreendido seu dever e havia sido descuidado demais com seu corpo e que, por isso, perdeu seu pé. Não obstante, ele viera até Confúcio porque ainda havia nele algo de mais importante que o pé que fôra cortado e desejava manter isso. Shu-shan acrescentou que não há nada que o Céu não cubra e nada que a Terra não sustente. Ele achou que Confúcio seria como o Céu (天) e como a Terra (地). Como ele saberia que o mestre agiria daquela forma?
Confúcio compreendeu sua falta, desculpou-se e solicitou que o homem entrasse em sua casa para que ele pudesse expôr aquilo que havia aprendido. Shu-shan, porém, virou as costas e foi embora. Confúcio disse a seus discípulos: "Sejam diligentes, meus alunos. Shu-shan, apesar de ter tido seu pé cortado, ainda busca aprender a fim de consertar sua conduta anterior. Muito mais devem buscar aqueles cuja retidão (德) ainda está intacta!"
Shu-shan contou a história a Lao-Tzu: "Aquele Confúcio certamente não alcançou o estágio da perfeição, não é? Por que ele veio estudar com o senhor? Ele está em busca da ilusão da fama e da reputação e não sabe que o homem perfeito encara essas coisas como grilhões."
Lao-Tzu disse: "Por que não o faz ver que vida e morte são a mesma coisa, que o aceitável e o inaceitável estão sobre a mesma corda? Não seria bom libertá-lo de suas algemas e de seus grilhões?" Shu-shan respondeu: "Quando o Céu castiga alguém, como é possível libertá-lo?"
O relato de Chuang Tzu, um dos três sábios fundadores do Taoísmo, repete o tema do homem cujo pé foi cortado como punição por uma transgressão. Simbolicamente, Shu-shan representa o homem que falhou no cumprimento das normas exteriores e comuns pelas quais todos são julgados na sociedade. Ele carrega publicamente a marca de seu desajuste e de seu crime, e é desprezado e vilipendiado por todos.
Shu-shan visita Confúcio e é repreendido pelo mestre justamente por sua inadequação às normas. Do que adiantaria agora, quando ele já havia se tornado um réprobo, procurar Confúcio? Ele deveria ter feito isso antes, a fim de que não desrespeitasse as normas e não fosse castigado como consequência de seu descuido. Shu-shan responde que, de fato, não compreendera seu dever e fora descuidado a ponto de receber a mutilação como castigo. No entanto, havia mais valor nele do que essa falha e Confúcio deveria ser como o Céu e a Terra, tudo acolhendo. Um mestre que não é capaz de perceber isso não pode ser realmente um mestre.
Em outros termos, Confúcio só enxergou Shu-shan no nível do cumprimento exterior da norma e o rejeitou. Seu horizonte é limitado, e só entende sua própria função como mestre a partir da manutenção da norma exterior. Mas a resposta de Shu-shan faz Confúcio perceber que errara ao tratar o homem daquela forma e, desculpando-se, ele o convida a ser seu discípulo. Ocorre que Shu-shan percebeu algo fundamental em Confúcio e não tem mais interesse no mestre.
Confúcio, então, retorna aos discípulos e diz a eles que aquele homem, mesmo tendo errado, buscava endireitar o seu caminho. Mais ainda deveriam ser atentos aqueles cuja retidão é irrepreensível. Novamente, Confúcio entende o episódio em termos da manutenção da norma exterior, do dever e da reputação que a obediência angaria diante dos homens. "Atenção à conduta!", é o que diz o mestre a seus aprendizes. A irrepreensibilidade é o valor a ser cultivado e preservado.
Sendo Chuang-tzu um mestre taoísta, o problema suscitado no episódio com Confúcio receberá sua resposta no diálogo posterior de Shu-shan com o grande mestre taoísta Lao-Tzu, autor do Tao Te Ching.*. Shu-shan considera que Confúcio não alcançara o estado do homem perfeito, pois seu horizonte era ainda o da fama e da reputação, exterioridades que não são mais do que grilhões para o homem realmente perfeito. Lao-Tzu indaga Shu-shan se não seria o caso de libertar Confúcio desses grilhões mostrando a ele que a vida e a morte, o aceitável e o inaceitável são uma mesma e só realidade.
O mestre ancião fala aqui da sabedoria que ultrapassa todas as oposições porque se instala no eixo do Tao (道), e não de uma equivalência superficial e vulgar entre retidão e engano, virtude e vício. O supremo Tao é retidão justamente porque não é reto como retos são os homens, de forma participativa e limitada. O Tao é retidão justamente porque não é reto como os homens são retos, mas como a fonte última e ilimitada de toda a retidão.
As normas exteriores enraízam-se em preferências e oposições, mas o sábio habita no centro absolutamente equânime das dez mil coisas. O sábio ultrapassa as exterioridades das normas porque ultrapassou as preferências e os apegos dos homens comuns. Confúcio ainda não compreendeu o Tao e, por isso, seus julgamentos permanecem no reino das oposições. Shu-shan considera não ser possível libertá-lo de suas amarras, pois ele recebeu um castigo do Céu.
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com/2020/05/chuang-tzu-e-inutilidade-do-sabio.html
http://oleniski.blogspot.com/2020/06/chuang-tzu-confucio-e-equanimidade.html
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O relato de Chuang Tzu, um dos três sábios fundadores do Taoísmo, repete o tema do homem cujo pé foi cortado como punição por uma transgressão. Simbolicamente, Shu-shan representa o homem que falhou no cumprimento das normas exteriores e comuns pelas quais todos são julgados na sociedade. Ele carrega publicamente a marca de seu desajuste e de seu crime, e é desprezado e vilipendiado por todos.
Shu-shan visita Confúcio e é repreendido pelo mestre justamente por sua inadequação às normas. Do que adiantaria agora, quando ele já havia se tornado um réprobo, procurar Confúcio? Ele deveria ter feito isso antes, a fim de que não desrespeitasse as normas e não fosse castigado como consequência de seu descuido. Shu-shan responde que, de fato, não compreendera seu dever e fora descuidado a ponto de receber a mutilação como castigo. No entanto, havia mais valor nele do que essa falha e Confúcio deveria ser como o Céu e a Terra, tudo acolhendo. Um mestre que não é capaz de perceber isso não pode ser realmente um mestre.
Em outros termos, Confúcio só enxergou Shu-shan no nível do cumprimento exterior da norma e o rejeitou. Seu horizonte é limitado, e só entende sua própria função como mestre a partir da manutenção da norma exterior. Mas a resposta de Shu-shan faz Confúcio perceber que errara ao tratar o homem daquela forma e, desculpando-se, ele o convida a ser seu discípulo. Ocorre que Shu-shan percebeu algo fundamental em Confúcio e não tem mais interesse no mestre.
Confúcio, então, retorna aos discípulos e diz a eles que aquele homem, mesmo tendo errado, buscava endireitar o seu caminho. Mais ainda deveriam ser atentos aqueles cuja retidão é irrepreensível. Novamente, Confúcio entende o episódio em termos da manutenção da norma exterior, do dever e da reputação que a obediência angaria diante dos homens. "Atenção à conduta!", é o que diz o mestre a seus aprendizes. A irrepreensibilidade é o valor a ser cultivado e preservado.
Sendo Chuang-tzu um mestre taoísta, o problema suscitado no episódio com Confúcio receberá sua resposta no diálogo posterior de Shu-shan com o grande mestre taoísta Lao-Tzu, autor do Tao Te Ching.*. Shu-shan considera que Confúcio não alcançara o estado do homem perfeito, pois seu horizonte era ainda o da fama e da reputação, exterioridades que não são mais do que grilhões para o homem realmente perfeito. Lao-Tzu indaga Shu-shan se não seria o caso de libertar Confúcio desses grilhões mostrando a ele que a vida e a morte, o aceitável e o inaceitável são uma mesma e só realidade.
O mestre ancião fala aqui da sabedoria que ultrapassa todas as oposições porque se instala no eixo do Tao (道), e não de uma equivalência superficial e vulgar entre retidão e engano, virtude e vício. O supremo Tao é retidão justamente porque não é reto como retos são os homens, de forma participativa e limitada. O Tao é retidão justamente porque não é reto como os homens são retos, mas como a fonte última e ilimitada de toda a retidão.
As normas exteriores enraízam-se em preferências e oposições, mas o sábio habita no centro absolutamente equânime das dez mil coisas. O sábio ultrapassa as exterioridades das normas porque ultrapassou as preferências e os apegos dos homens comuns. Confúcio ainda não compreendeu o Tao e, por isso, seus julgamentos permanecem no reino das oposições. Shu-shan considera não ser possível libertá-lo de suas amarras, pois ele recebeu um castigo do Céu.
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*Conta-se que, após a queda do reino de Chou, Lao Tzu partiu para o oeste montando um boi. O guarda do portão, Yin-hsi, soube que o sábio se aproximava, pois um vapor subia do leste. Chegando Lao Tzu, o guarda o barrou e pediu que deixasse seu ensinamento por escrito. Lao Tzu escreveu o Tao Te Ching, entregou-o ao guarda e partiu.
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