quinta-feira, 9 de julho de 2020

Chuang Tzu, Confúcio e a retidão do Tao


上德不德,
是以有德
"A retidão não é reta,
 Por isso, é retidão." (tradução minha)

TAO TE CHING, 38

"O sábio ultrapassou todas as distinções inerentes aos pontos de vista exteriores. No ponto central onde ele se encontra, toda oposição desapareceu e se dissolveu em um perfeito equilíbrio."

RENÉ GUÉNON, Aperçus sur l"ésoterisme islamique et le Taoïsme, p.118 (tradução minha)

O livro de Chuang Tzu relata a história de Shu-shan "sem dedos", um homem que teve um dos pés cortados, e que foi visitar Confúcio em sua casa. Chegando lá, Confúcio o recebeu grosseiramente, dizendo que o homem havia sido descuidado, que havia descumprido uma lei e recebido o castigo devido. O que Shu-shan poderia esperar procurando-o agora, depois de tudo isso?

O homem respondeu que não havia compreendido seu dever e havia sido descuidado demais com seu corpo e que, por isso, perdeu seu pé. Não obstante, ele viera até Confúcio porque ainda havia nele algo de mais importante que o pé que fôra cortado e desejava manter isso. Shu-shan acrescentou que não há nada que o Céu não cubra e nada que a Terra não sustente. Ele achou que Confúcio seria como o Céu (天) e como a Terra (地). Como ele saberia que o mestre agiria daquela forma?

Confúcio compreendeu sua falta, desculpou-se e solicitou que o homem entrasse em sua casa para que ele pudesse expôr aquilo que havia aprendido. Shu-shan, porém, virou as costas e foi embora. Confúcio disse a seus discípulos: "Sejam diligentes, meus alunos. Shu-shan, apesar de ter tido seu pé cortado, ainda busca aprender a fim de consertar sua conduta anterior. Muito mais devem buscar aqueles cuja retidão (德) ainda está intacta!"

Shu-shan contou a história a Lao-Tzu: "Aquele Confúcio certamente não alcançou o estágio da perfeição, não é? Por que ele veio estudar com o senhor? Ele está em busca da ilusão da fama e da reputação e não sabe que o homem perfeito encara essas coisas como grilhões."

Lao-Tzu disse: "Por que não o faz ver que vida e morte são a mesma coisa, que o aceitável e o inaceitável estão sobre a mesma corda? Não seria bom libertá-lo de suas algemas e de seus grilhões?" Shu-shan respondeu: "Quando o Céu castiga alguém, como é possível libertá-lo?"

O relato de Chuang Tzu, um dos três sábios fundadores do Taoísmo, repete o tema do homem cujo pé foi cortado como punição por uma transgressão. Simbolicamente, Shu-shan representa o homem que falhou no cumprimento das normas exteriores e comuns pelas quais todos são julgados na sociedade. Ele carrega publicamente a marca de seu desajuste e de seu crime, e é desprezado e vilipendiado por todos.

Shu-shan visita Confúcio e é repreendido pelo mestre justamente por sua inadequação às normas. Do que adiantaria agora, quando ele já havia se tornado um réprobo, procurar Confúcio? Ele deveria ter feito isso antes, a fim de que não desrespeitasse as normas e não fosse castigado como consequência de seu descuido. Shu-shan responde que, de fato, não compreendera seu dever e fora descuidado a ponto de receber a mutilação como castigo. No entanto, havia mais valor nele do que essa falha e Confúcio deveria ser como o Céu e a Terra, tudo acolhendo. Um mestre que não é capaz de perceber isso não pode ser realmente um mestre.

Em outros termos, Confúcio só enxergou Shu-shan no nível do cumprimento exterior da norma e o rejeitou. Seu horizonte é limitado, e só entende sua própria função como mestre a partir da manutenção da norma exterior. Mas a resposta de Shu-shan faz Confúcio perceber que errara ao tratar o homem daquela forma e, desculpando-se, ele o convida a ser seu discípulo. Ocorre que Shu-shan percebeu algo fundamental em Confúcio e não tem mais interesse no mestre.

Confúcio, então, retorna aos discípulos e diz a eles que aquele homem, mesmo tendo errado, buscava endireitar o seu caminho. Mais ainda deveriam ser atentos aqueles cuja retidão é irrepreensível. Novamente, Confúcio entende o episódio em termos da manutenção da norma exterior, do dever e da reputação que a obediência angaria diante dos homens. "Atenção à conduta!", é o que diz o mestre a seus aprendizes. A irrepreensibilidade é o valor a ser cultivado e preservado.

Sendo Chuang-tzu um mestre taoísta, o problema suscitado no episódio com Confúcio receberá sua resposta no diálogo posterior de Shu-shan com o grande mestre taoísta Lao-Tzu, autor do Tao Te Ching.*. Shu-shan considera que Confúcio não alcançara o estado do homem perfeito, pois seu horizonte era ainda o da fama e da reputação, exterioridades que não são mais do que grilhões para o homem realmente perfeito. Lao-Tzu indaga Shu-shan se não seria o caso de libertar Confúcio desses grilhões mostrando a ele que a vida e a morte, o aceitável e o inaceitável são uma mesma e só realidade.

O mestre ancião fala aqui da sabedoria que ultrapassa todas as oposições porque se instala no eixo do Tao (道), e não de uma equivalência superficial e vulgar entre retidão e engano, virtude e vício. O supremo Tao é retidão justamente porque não é reto como retos são os homens, de forma participativa e limitada. O Tao é retidão justamente porque não é reto como os homens são retos, mas como a fonte última e ilimitada de toda a retidão.

As normas exteriores enraízam-se em preferências e oposições, mas o sábio habita no centro absolutamente equânime das dez mil coisas. O sábio ultrapassa as exterioridades das normas porque ultrapassou as preferências e os apegos dos homens comuns. Confúcio ainda não compreendeu o Tao e, por isso, seus julgamentos permanecem no reino das oposições. Shu-shan considera não ser possível libertá-lo de suas amarras, pois ele recebeu um castigo do Céu.
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*Conta-se que, após a queda do reino de Chou, Lao Tzu partiu para o oeste montando um boi. O guarda do portão, Yin-hsi, soube que o sábio se aproximava, pois um vapor subia do leste. Chegando Lao Tzu, o guarda o barrou e pediu que deixasse seu ensinamento por escrito. Lao Tzu escreveu o Tao Te Ching, entregou-o ao guarda e partiu.

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