sábado, 9 de fevereiro de 2013

O ceticismo pirrônico I


                                         

"Os céticos tardios lançaram mão de Cinco Modos conducentes à suspensão que são nomeadamente estes: o primeiro baseado na discrepância, o segundo no regresso ad infinitum, o terceiro sobre relatividade, o quarto sobre hipóteses e o quinto sobre  raciocínio circular. Aquele baseado na discrepância leva-nos a achar que, com relação ao objeto apresentado, nasce, seja entre os homens comuns ou entre os filósofos, um interminável conflito devido ao qual nós somos incapazes seja de aceitar um lado ou rejeitá-lo e assim caímos em suspensão. O Modo baseado sobre o regresso  ad infinitum é aquele por meio do qual dizemos que aquilo que é aduzido como uma prova de uma a matéria proposta necessita de uma prova ulterior e esta necessita de outra e assim por diante ad infinitum, tal que o resultado é a suspensão, uma vez que não possuímos nenhum ponto de partida para nosso argumento. O Modo baseado sobre a relatividade, como nós já tratamos, é aquele segundo o qual o objeto tem tais e tais aparências com relação ao sujeito que julga e aos perceptos concomitantes, mas sobre sua real natureza suspendemos o juízo. Nós temos o Modo sobre as hipóteses quando os dogmáticos, forçados a recuar  ad infinitum, tomam como seus pontos de partida algo ao qual eles não estabelecem por argumento, mas o assumem como certo simplesmente e sem demonstração. O Modo sobre raciocínio circular é a forma usada quando a prova que deve estabelecer a matéria sob investigação requer confirmação derivada dessa própria matéria; nesse caso, sendo incapazes de assumir uma para estabelecer a outra, nós suspendemos o juízo sobre ambas."

SEXTUS EMPIRICUS, Hipotiposes Pirrônicas



A negação do conhecimento certo e infalível empreendida pelo ceticismo acadêmico encontrou resistência não somente entre as escolas filosóficas dogmáticas, mas também entre os céticos pirrônicos. Estes acusavam os acadêmicos de dogmatismo negativo, pois, se os estóicos eram dogmáticos porque afirmavam a possibilidade de um conhecimento certo e indubitável da natureza última das coisas, os acadêmicos eram igualmente dogmáticos porque negavam peremptoriamente a possibilidade de tal gênero de conhecimento.
                                               
Dissidente da Academia, Enesidemo, inspirado pela figura de Pirro de Élis, buscou formular um gênero de ceticismo que estivesse a meio caminho do dogmatismo afirmativo dos estóicos e de outras escolas e do dogmatismo negativo do ceticismo acadêmico. Ao invés de negar ou afirmar a possibilidade do conhecimento, o cético pirrônico suspendia o juízo acerca de toda “questão em relação à qual houvesse evidências em conflito, incluindo a questão sobre se podemos ou não conhecer algo”.

Sobre as ideias de Pirro de Élis (360  – 275 B.C.) pouco se sabe, pois não deixou qualquer escrito. Sabe-se, porém, com certa segurança, que esteve na Índia e isso leva a conjecturas acerca da influência de certas crenças indianas ortodoxas e heterodoxas no pensamento de Pirro. Essa influência talvez seja confirmada pelo fato de Pirro ter sido considerado, como R. G. Bury mostra na introdução às obras completas de  Sextus Empiricus, mais um moralista austero e ascético do que exatamente um teórico.

Seja como for, Pirro inspirou Enesidemo por sua postura de suspensão do juízo acerca de todos os assuntos. Enesidemo, nascido provavelmente em Creta, fez seus estudos em Alexandria e posteriormente juntou-se à Academia. Abandonou a escola platônica denunciando o que entendia ser o dogmatismo negativo de Arcesilau e Carnéades.e formulou uma série de dez argumentos chamados “tropos” ou “modos” em que tenta mostrar a incapacidade dos sentidos de descobrir a natureza das coisas que percebe.

Além desses argumentos, outros oito “tropos” sobre a causalidade foram formulados pelo pensador cretense, nos quais mostra as falácias envolvidas nas diversas doutrinas sobre a causalidade. Segundo o compilador  Sextus Empiricus, os dez tropos de Enesidemo são os seguintes:
                                               
"A tradição usual entre os antigos Céticos é que os “modos” pelos quais a “suspensão” é produzida são em número de dez; (...) O primeiro, baseado na variedade dos animais; o segundo nas diferenças entre seres humanos; o terceiro, nas diferenças entre os órgãos dos sentidos; o quarto, nas condições circunstanciais; o quinto, sobre posições, intervalos e locações; o sexto, nas misturas; o sétimo, sobre as quantidades e formações dos objetos subjacentes; o oitavo, sobre o fato da relatividade; o nono, sobre a frequência ou raridade de uma ocorrência; o décimo, sobre as disciplinas, costumes e lendas, as crenças lendárias e as convicções dogmáticas."

Os argumentos de Enesidemo têm como característica geral apontar diferenças entre fontes de conhecimento ou conflito entre as faculdades ou crenças a fim de evidenciar o pretenso caráter indecidível desses impasses e assim levar à suspensão do juízo com relação a tais problemas. Se os animais percebem as coisas de forma diferente dos humanos, se entre os homens há diferenças de percepção e os próprios órgãos dos sentidos são diversos, se as condições externas, a posição e as disposições internas influenciam nas percepções, se os objetos aparecem sempre juntos a outros objetos, são relativos uns aos outros e aparecem segundo frequências diversas, e se, por fim, as regras de conduta, as leis e as crenças conflitam entre si, então não há critérios para se decidir sobre a natureza última das coisas.

Ao final de sua apresentação dos argumentos de Enesidemo, Sextus Empiricus, compilador do ceticismo, afirma que “possivelmente os cinco modos serão suficientes contra as etiologias”. Esses argumentos, igualmente eficazes e mais econômicos, eram os cinco modos ou “tropos” cuja autoria foi atribuída a um certo Agripa que teria vivido mais ou menos um século após a morte de Enesidemo.
                                               
Os cinco tropos de Agripa destinam-se a mostrar que nenhuma argumentação pode estabelecer uma conclusão indubitável sobre qualquer matéria sob investigação e que, por esse motivo, deve-se suspender o juízo a respeito das mesmas. Os modos são geralmente atribuídos a Agripa, mas Sextus Empiricus não menciona qualquer autor determinado para esses argumentos, limitando-se a afirmar que eles eram usados pelos “céticos tardios”, como se verifica no trecho transcrito acima no início desta postagem.

Eminentemente de cunho lógico, esses tropos têm em comum a característica de minar qualquer tentativa de se fundar sobre bases indubitáveis uma argumentação ou uma demonstração sobre qualquer objeto de estudo. 

Como afirma o primeiro Modo, para toda a matéria sob investigação sempre existem pelo menos duas posições opostas (diaphonia) com razões equipolentes (isosthenia) e que causam no investigador honesto, incapaz de decidir entre qualquer uma das opções, um estado de espírito que o leva à suspensão do juízo (epoché). 

E se o investigador tentar fazer com que uma opinião repouse sobre uma premissa certa e indubitável, ele logo perceberá que esta suposta premissa indubitável deverá ser assumida por argumento ou por hipótese. Se for assumida por argumento ela deverá ser justificada por meio de uma premissa anterior da qual a primeira pode ser logicamente deduzida e a nova premissa deve, por sua vez também ser justificada por outra premissa da qual possa ser derivada e esta por outra e assim sucessivamente ad infinitum.

A fim de evitar esse regresso ao infinito, o investigador pode assumir como verdadeira a premissa que serve de base para seu argumento e interromper a indesejada cadeia de regressão das premissas. Para isso, contudo, ele deverá afirmar a sua verdade sem recurso a argumento, ou seja, sem demonstração. Se assim o fizer, terá caído no terceiro Modo e sua afirmação não será mais do que um dogma imposto, uma vez que nenhuma razão foi fornecida em seu apoio. 

Tomar a hipótese apenas como uma conjectura e então tentar confirmá-la por seus resultados seria não compreender o objetivo dos desses tropos de Agripa que é precipuamente demonstrar a impossibilidade de um conhecimento certo e infalível da natureza das coisas. A força desses argumentos está intrinsecamente ligada à concepção de um conhecimento verdadeiro a partir de premissas indubitáveis e não a um esquema hipotético-dedutivo.

O investigador pode ainda querer basear suas teses sobre o testemunho dos sentidos, mas nesse caso ele terá que decidir qual desses dados dos sentidos é fidedigno, pois estes parecem variar de acordo com a configuração do ambiente, com a constituição dos homens, dos povos e diferem até mesmo entre homens e animais. O caminho para uma fundamentação certa é dessa vez obstaculizado pelos argumentos apresentados nos dez Modos de Enesidemo, agora incluídos no corpo dos tropos de Agripa. 
                                               
O termo hipótese (hupothesis) é aqui tomado não no sentido moderno de conjectura, da qual se derivam consequências e predições testáveis por experimento. O sentido, no texto, está mais próximo de axioma, um fundamento de caráter evidente e indubitável do qual se pode demonstrar que a tese a ser provada é logicamente deduzida.

A última alternativa do investigador é buscar a justificação de sua tese não em uma afirmação dogmática de uma premissa e nem em um regresso infinito, mas num argumento que receba sua força de uma premissa cuja validade seja garantida por uma cadeia inferencial longa o suficiente para que o primeiro termo seja invocado de novo, desta vez ao final da cadeia, como garantia de todo o resto. Ora, isso nada mais é do que um raciocínio circular e sua validade não é em geral reconhecida nem pelos ditos “dogmáticos”. 

Aristóteles, por exemplo, condena expressamente  esse estilo de argumentação nos  Analíticos Posteriores e o autor dos tropos, Agripa ou não, parece concordar com a condenação dogmática. O raciocínio circular afiança a segurança de um argumento por meio da afirmação de uma premissa que, ao final de uma cadeia, será de novo afirmada para garantir a cadeia, o que não é diferente de se assumir dogmaticamente a verdade da premissa e assim não provar absolutamente nada. 

Como demonstra Aristóteles, quando se afirma a seguinte cadeia de condicionais “se A, então B; se B, então C”, afirma-se como conclusão que “se A, então C”. No caso de um raciocínio circular, C é substituído por A, o que resulta em “se A, então B; se B, então A”. A necessidade lógica obriga a afirmar que se no primeiro caso a conclusão seria “se A, então C”, o mesmo deve se dar no raciocínio circular. Como C foi substituído por A, a conclusão não pode ser outra que não “se A, então A”. Isso é o mesmo que afirmar a tautologia “A é A”, o que efetivamente é inútil para propósitos de prova.

O resultado do empreendimento do investigador honesto para justificar sua tese ou basear seu argumento em premissas seguras, sempre obstaculizado a cada passo dado por algum dos argumentos de Agripa, é a inevitável suspensão do juízo. 

A relatividade dos sentidos, a discordância acerca de todo e qualquer assunto, a impossibilidade de fundar um argumento numa regressão infinita, numa imposição dogmática ou numa circularidade tornam impossível afirmar qualquer conhecimento certo e infalível e conduzem ao caráter suspensivo do ceticismo. Entretanto, como já visto anteriormente, há diferenças importantes entre as pretensões do ceticismo pirrônico e aquelas do ceticismo acadêmico e é sobre elas que se concentra a obra de Sextus Empiricus.

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