domingo, 17 de fevereiro de 2013

Curtas considerações sobre Prometheus



"Mortal after all." 

David, sobre os Engenheiros


Prometheus se move em dois eixos interligados. Em seu primeiro eixo, algo como sua estrutura geral ou espinha dorsal, o filme é formado pelo confronto de duas idéias, uma delas apenas sugerida, sendo a outra explicitada pelos eventos relacionados ao segundo eixo.

As duas idéias que se confrontam no eixo fundamental são duas teologias: a teologia secularizada e a teologia tradicional. A primeira delas, derivada sem dúvida das teorias ufológicas do "antigo astronauta" nada mais é do que a atribuição da origem humana a seres inteligentes provenientes de outros planetas que, de um jeito ou de outro, deram origem à vida na Terra e, por conseguinte, seriam nossos reais criadores.

Chamo essa teoria de "teologia secularizada" por se tratar de um discurso tradicionalmente pertencente ao âmbito das religiões, centrado na determinação da natureza humana a partir de suas relações com entes divinos, mas que, hodiernamente, é traduzido em termos científico-materialistas.

Obviamente, a idéia que rivaliza com a teologia secularizada é justamente o discurso original sobre o homem proveniente das religiões, o que chamo teologia tradicional.

Esta última é somente ventilada, nunca totalmente expressa em seus termos próprios, mas apresentada no conflito interior da Dra. Elizabeth Shaw, que resolutamente carrega uma cruz ao pescoço. A partir desse fato, somos informados de que a teologia tradicional que dominará o horizonte religioso do filme será aquela do cristianismo.

Mas se a teologia tradicional é uma sombra constante no filme, a teologia secularizada é desenvolvida no segundo eixo, aquele da ação e dos acontecimentos. Sendo seu ponto de partida científico-materialista, a ação não poderá se dar a não ser no nível daquilo que pode ser tratado dentro desses limites.

Ora, a tradução materialista da pergunta sobre a origem do homem só pode ter uma resposta materialista, isto é, a origem do homem, um ser biológico submetido às leis da matéria, só pode ter sua origem em entes eles também materiais. Se é assim, onde estão os deuses?

Logo no início da película, uma nave sobrevoa uma grande cachoeira - "O Espírito de Deus pairava sobre as águas" - em um planeta aparentemente carente de vida. Um humanóide - "Façamo-lo à nossa imagem e semelhança" - toma um recipiente - símbolo sempre de possibilidades contidas, de poder para fazer algo - e toma o conteúdo. O humanóide passa por um processo de degeneração que o conduz à morte e seus restos são lançados nas águas da cachoeira e la´começa um processo químico que culmina com a criação da vida.

O tema do sacrifício da divindade que dá origem ao mundo é bastante conhecido em diversas tradições religiosas, bastando citar o sacrifício de Purusha nos Vedas e o sacrifício do Cordeiro imolado antes de todos os séculos e o sacrifício de Cristo na cruz que salva o mundo renovando todas as coisas.

Eis que aparecem os deuses da teologia secularizada: os Engenheiros. Eles não criam como Deus cria - ex nihilo - , mas manipulam o que já existe. O próprio nome já indica suas limitações. O engenheiro cria engenhos, é um artífice e, como tal, usa aquilo que o precede, aquilo que já existe. Ele só recombina elementos já dados, como o DNA.

Mas se o eixo das ações e acontecimentos nessa teologia secularizada se concentra na origem biológico-material do homem, ele se desenvolve de uma forma estranha e, por isso mesmo, notável. Se se fala em vida, se fala de parentalidade e, por conseguinte, de procriação. Mas há esterilidade e rejeição da prole em quase todas as relações estabelecidas no filme. A começar pelo empresário que financia a expedição, Peter Weyland.

Ele tem uma filha, é certo, Srta. Vickers, mas a renega e prefere chamar de filho um robô, David, que, evidentemente, também é estéril. Weyland é o homem materialista dedicado ao lucro, ao sucesso, à "construção de um mundo melhor" como diz o slogan de sua empresa. É a tentação humana de criar o Paraíso pelos meios materiais.

Mas há um problema. O homem é mortal e essa realidade, para quem se considera um herdeiro de um titã, o Prometheus mitológico, é inaceitável e angustiante. Seu único objetivo na expedição e na busca pela origem do homem é o prolongamento de sua própria vida. Seu horizonte é o da mera perpetuação dos dias. Escondido em um compartimento da nave, ele é a sombra manipuladora que torna possível a expedição, mas submete tudo a seus fins.

Ao final do filme, Vickers ainda tenta trazer o pai à realidade, reafirmando a transitoriedade da vida. Weyland, o incapaz de olhar para além de sua própria existência, renega a filha de novo. A origem renega o originado. Weyland prefere David, o sintético, produto da engenhosidade humana e não de uma lei biológica que antecede e submete o homem. 

David, uma versão nova de HAL - "Don't do it Dave. - aparece como o infiltrado a mando de Weyland. Ele ama Lawrence da Arábia, quer ser como ele, pinta o cabelo com o louro de Peter O'Toole do filme clássico. Parece ser leal, mas como seu herói histórico, é um agente estrangeiro movendo forças desorganizadas e desordenadas contra a autoridade local estabelecida.

David quer destronar seus senhores - "Todo filho quer ver seu pai morto." - , aí então será livre. Se Weyland quis tomar o fogo dos deuses para superar a própria mortalidade, David quer furtar o fogo divino para destruir os deuses. Zeus deve matar Cronos e tornar-se o senhor dos deuses.

É interessante notar que é David que conhece a língua dos Engenheiros. Não são os homens que conhecem a língua ancestral, mas sua invenção, a máquina, que sabe como comunicar-se com os deuses. Mas o que David diz, seja o que for, desagrada os deuses e estes destróem seus filhos biológicos e seus netos sintéticos. 

Mais uma vez, a origem rejeita o originado. Como no Gênesis, D'us se desagrada da corrupção moral da humanidade e um dilúvio se abate sobre ela. Mas Noé encontra graça diante de D'us e Ele o poupa assim como aos casais de animais reunidos na Arca.  Refaz-se a criação com as sementes da era anterior. A vida continua, sob a égide da vontade divina.

Contudo, não parece haver aliança possível com os Engenheiros. Eles rejeitam e querem destruir sua criação.  

A Dra. Elizabeth Shaw também é estéril e rejeita sua prole. De uma forma profana e blasfema, acontece com ela um milagre semelhante ao ocorrido na Bíblia. A infértil dá à luz a um rebento pela ação milagrosa de D'us. No caso materialista, pela ação dos Engenheiros. É certo que é David que põe uma gota da substância misteriosa dos Engenheiros, mas ainda assim essa gota provém dos deuses secularizados.

Cumpre notar que a iniciativa de David é sinistramente significativa. Ele inicia um novo mundo, a destronação de seus pais, pela criação de um novo ser, pela recombinação da natureza de seus pais. Elizabeth, no entanto, rejeita essa prole que se mostra monstruosa e destruidora. Rejeição de novo.

Elizabeth é a personagem que mais claramente vive o conflito das duas teologias, busca a origem material do homem, mas, mesmo assim, permanece usando sua cruz ao peito. Ela conhece o significado da mortalidade, seu pai morrera infectado pelo Ebola. Contudo, não conhece a procriação, já que é estéril.

David tira-lhe a cruz antes de anunciar sua gravidez. Nesse momento, é o triunfo da manipulação, a construção de um novo mundo, a destronação do deus antigo, a vitória do última do materialismo realizada por um ser que ultrapassa a própria biologia, um robô. É um milagre negro.

O rebento desse novo mundo exige o sacrifício de sua mãe, assim como o nosso nascimento exigiu o sacrifício do Engenheiro. O ser que nasce é um ser que vive somente pela morte, é uma vida que se forma como parasita e que destrói seu hospedeiro.

A Dra. Shaw sobrevive e, diante da rejeição dos Engenheiros que pretendem devastar a Terra com sua nave repleta de cápsulas daquela misteriosa substância, suplica ao piloto de Prometheus que impeça essa tragédia. O preço, naturalmente, é a morte.

Então, Prometheus avança contra os deuses, impede a destruição num ato de sacrifício. Ao contrário de Weyland que só busca prolongar seus dias indefinidamente, Janek,, o piloto, sacrifica sua vida generosamente pelo futuro da humanidade. 

Única sobrevivente, Elizabeth tem ainda de enfrentar a ira do Engenheiro remanescente. Contra ele ela usa a monstruosidade a que deu à luz e esta infecta-o fazendo nascer, como parasita, o proto-alien. A criatura se volta contra o criador, como já acontecera com a tripulação de Engenheiros na nave e o destrói.

Elizabeth toma de volta sua cruz. Em outros termos, encerram-se as ações e acontecimentos do segundo eixo do filme, o desenvolvimento da teologia secularizada, com a retomada da teologia tradicional. O retrato da vida que a teologia secularizada apresenta define-se como um quadro cruel de esterilidades e rejeições, um jogo de incubações e destronamentos sem fim ou propósito no qual impera a morte.

Elizabeth insiste, quer encontrar um sentido nesse jogo biológico-materialista absurdo, por isso parte para o planeta de origem dos Engenheiros. Contudo, ela parece saber que essa teologia tem seus limites, afinal ela coloca explicitamente a questão de que se algo biológico é a origem última do homem, então qual a origem desse ser biológico? 

A cruz permanece em seu pescoço como a intuição de que não é nesse nível materialístico que se encontra a resposta, mas em algo cuja dimensão ultrapassa a história, mas que, não obstante, se manifesta concretamente no tempo como bem indica a última declaração da Dra. Shaw: "É Ano Novo do Ano do Senhor de 2094."


Um comentário:

R. Oleniski disse...

Edward Feser escreveu, alguns meses depois de mim, um post interessante sobre Prometheus.

Temos coincidências bem como diferenças interessantes na interpretação do filme.

Eis o link:

http://edwardfeser.blogspot.com.br/2013/05/the-theology-of-prometheus.html