domingo, 7 de fevereiro de 2021

Leibniz, Deus e a imortalidade da alma

"Em verdade, pareceu a mim indigno cegar nosso espírito por meio de sua própria luz, a filosofia. Então, eu dei a mim mesmo a tarefa de me aplicar ao exame das coisas, com tanto mais ardor quanto eu menos suportava ser desviado, pelas sutilezas dos inovadores, do maior bem da vida, a saber, a certeza da eternidade após a morte, e a esperança que a bondade divina manifestar-se-á aos bons e aos inocentes." (tradução minha)

G.W. LEIBNIZ, Profissão de fé da natureza contra os ateus 

No ano de 1669 foi publicado um opúsculo do filósofo, físico e matemático alemão G.W. Leibniz (1646-1716) intitulado Profissão de fé da natureza contra os ateus, no qual o pensador pretendia a um só tempo provar, com dois argumentos curtos e elegantes, a existência de Deus e a imortalidade da alma. A primeira parte do opúsculo afirma que não é possível dar a razão dos fenômenos corporais sem um princípio incorporal, isto é, Deus e a segunda demonstra a imortalidade da alma em um sorites contínuo.

Leibniz inicia seu texto com uma introdução acerca dos progressos obtidos pela ciência de seu tempo, aquela que pretendia explicar os fenômenos do mundo a partir somente da figura e do movimento, ou seja, mecanicamente. Ocorre que essa pretensão desaguou facilmente no ateísmo, pois muitos consideraram poder explicar toda a realidade física sem nenhum recurso a um princípio divino derradeiro. A análise que Leibniz empreende em seguida pretende mostrar que figura, grandeza movimento não podem ser deduzidas do conceito de corpo, necessitando para a sua existência a realidade de uma causa incorpórea, Deus.

Se tais qualidades não podem ser deduzidas da mera definição de corpo, então é necessário que haja uma razão para elas estarem nos corpos. "Pois a razão de toda a maneira de ser deve ser deduzida seja da coisa mesma, seja de uma coisa extrínseca", assim formula Leibniz o princípio da razão suficiente. Tudo aquilo que existe, possui sua razão em si mesmo ou a recebe de outro, isto é, aquilo que existe deve ser explicado pela própria coisa ou por algo externo a ela. 

Note-se que Leibniz não utiliza o termo causa, pois a causa é um tipo de razão para a existência de algo, mas nem toda a razão é causa. Por exemplo, a razão da existência do filho é o pai, que é sua causa externa. Contudo, não é necessário assumir de antemão que tudo tenha uma causa, embora tudo tenha uma razão que a explica. A razão do filho é o pai, e a razão de Deus é sua própria natureza de Ser necessário.¹

A definição de corpo é existir no espaço. Do fato de que um corpo está no espaço podemos deduzir que ele possui figura e grandeza. Seria impossível um corpo existir no espaço sem ocupar um lugar que corresponde exatamente à sua forma e à sua grandeza. Se é necessário deduzir a partir do conceito mesmo de corpo que um corpo determinado tenha figura e grandeza, não é absolutamente necessário deduzir do conceito de corpo que um corpo determinado possua esta ou aquela grandeza e esta ou aquela figura. 

O conceito de corpo só implica que o corpo possua alguma figura e alguma grandeza, mas não define quais figuras (quadrado, redondo) nem quais grandezas (maior ou menor). É mister haver uma razão para essas diferenciações dos corpos, caso contrário seria necessário admitir que essas diferenciações vieram do nada. Do nada, nada sai. A matéria não pode ser a razão dessas diferenças, já que é indiferente em si mesma à forma ou à grandeza. 

Leibniz aventa duas hipóteses: ou bem o corpo quadrado, por exemplo, foi desde a eternidade quadrado ou tornou-se quadrado pelo choque com outros corpos. Mas se o corpo quadrado é quadrado desde toda a eternidade, e essa forma não é deduzida da natureza de corpo em geral, então nenhuma razão foi dada para que ele não fosse esférico ou triangular. A eternidade, por si mesma, não é causa de nada. 

A segunda opção seria da mudança da forma de um corpo pelo choque com outros corpos. Nesse caso, se um corpo muda a forma de outro, por qual razão ele tinha essa primeira forma? Se for pelo choque, então por qual razão ele tinha aquela forma? Por exemplo, se um corpo triangular tornou-se quadrado pelo choque com algum outro corpo, então a forma triangular também tem de ser explicada pelo choque com outro corpo. Se o corpo era esférico antes de se tornar triangular, então a esfericidade também tem que ser explicada pelo choque. E assim por diante, ad infinitum. 

Até o momento, no entanto, só foram tratadas as qualidades figura e grandeza, mas os contemporâneos de Leibniz utilizavam também o movimento para explicar mecanicamente o mundo. Da mesma forma que antes, é necessário determinar se movimento pode ser deduzido do conceito de corpo. Um corpo necessariamente ocupa um espaço, o que implica que ele poderia ou poderá estar em outro. Deriva-se assim que o corpo possui mobilidade, mas isso nada diz acerca de seu efetivo movimento. Possuir mobilidade implica somente poder estar em um lugar diferente do inicial. Nada pode ser daí deduzido quanto a um movimento efetivo.

Ao contrário, deixado a si mesmo o corpo permaneceria em repouso para sempre. Duas alternativas são aventadas: todos os corpos sempre estiveram em movimento desde toda a eternidade ou todos os corpos são postos em movimento por um corpo contíguo e em movimento. Semelhantemente ao que foi dito anteriormente, afirmar que o corpo possui movimento desde a eternidade não é fornecer uma razão para que ele não estivesse em repouso desde toda a eternidade.

Se os corpos são movidos por outros corpos contíguos, então cada corpo é movido pelo anterior, e este pelo anterior, e este pelo anterior, ad infinitum. Se cada corpo possui movimento por causa do anterior, então nenhum corpo possui o movimento propriamente, pois o recebe sempre de seu anterior. Uma cadeia infinita de causas nada explica.

Ora, dado que não é possível deduzir do conceito de corpo as qualidades de figura, de grandeza e de movimento, e que não é possível que tais qualidades não tenham uma razão, e que as alternativas aventadas foram refutadas, é necessário assumir que há uma causa incorpórea para essas qualidades. Essa causa incorpórea é a mesma para todas as coisas, como demonstra a harmonia do movimento dos corpos. A razão pela qual o ser incorporal escolhe estas e não aquelas figuras e grandezas, estes ou aqueles movimentos, não se pode explicar a não ser por sua inteligência e por sua sabedoria, pois as coisas são manifestamente belas. Esse reitor do mundo inteiro é Deus.

Na segunda parte do opúsculo, o filósofo alemão ataca a questão da imortalidade da alma. As teses se seguem umas às outras na forma de um argumento sorites. As premissas do argumento estão em itálico:

O espírito humano é um ser do qual alguma ação é o pensamento;

Do ser do qual alguma ação é o pensamento, alguma ação é uma coisa imediatamente sensível sem imaginação de partes;

Leibniz explicita as duas primeiras premissas asseverando que o pensamento é uma coisa imediatamente sensível, pois o espírito se sentindo pensar  é imediato a si mesmo. O filósofo alemão trata da imediatidade da percepção do pensamento naquele que pensa. Quando estou  pensando, sinto imediatamente (sem medium, sem meio, diretamente) que estou pensando. Isto é, o ato de pensar não pode ser estranho àquele que pensa. Nesse sentido, aquele que pensa se sente pensando.

O pensamento, assevera Leibniz, é uma coisa sensível sem imaginação de partes. Eis um ponto que necessita de comentário. Por experiência, sabemos que pensamos quando pensamos.  O pensamento, diz o filósofo, é justamente esse je ne sais quoi que sentimos quando sentimos que pensamos. O pensar, portanto, é imediatamente acompanhado de um "sentimento" de que estamos pensando, pouco importa o conteúdo do pensamento. Esse sentir não tem partes, é completamente uno. 

Aquilo no que pensamos, o conteúdo do pensamento, possui partes. Se penso em uma figura histórica como Marcus Titius, tenho não somente uma imagem de Titius, que é composta de partes imaginativas, como também, e isso é o crucial, sinto que fixei minha atenção nesse personagem. Essa atenção não tem imaginação de partes. De novo, o ato de pensar Marcus Titius é acompanhado imediatamente pelo "sentimento" de que estou pensando, e a atenção fixada nesse pensamento não possui partes, muito embora o conteúdo do pensamento (Titius) possua partes.

Continuando o argumento, Leibniz afirma que:

Isso do qual alguma ação é uma coisa imediatamente sensível sem imaginação de partes, possui alguma ação que é uma coisa sem partes;

Cumpre comentar esta última premissa. Se a ação de pensar não tem imaginação de partes, como ficou estabelecido nas duas primeiras premissas, então aquilo que pensa possui uma ação que não possui partes. O ato de pensar é completamente uno, sem partes. O que tem partes é o conteúdo do pensamento, como Titius. Se é assim, então aquilo que pensa possui nele mesmo a capacidade de uma ação completamente una, sem nenhuma parte. A atenção fixada no personagem histórico Marcus Titius é uma ação completamente una e sem partes.

Prossegue Leibniz:

Isso do qual alguma ação é uma coisa sem partes, tem alguma ação que não é um movimento;

A ação de pensar é una, não pode ser movimento, pois o movimento exige partes.

Isso do qual alguma ação não é um movimento não é um corpo;

Isso que não é um corpo não está no espaço.

Isso que não está no espaço não é móvel.

Isso que não é móvel é indissolúvel.

A dissolução só existe naquilo que tem partes. Dissolver é desfazer a união das partes de um todo. Aquilo que não é móvel não tem partes. É, portanto, indissolúvel.

Isso que é indissolúvel é incorruptível.

Tudo o que é incorruptível é imortal.

Então, conclui Leibniz, o espírito humano é imortal. Como se queria demonstrar.
...

¹ Leia também: Νεκρομαντεῖον: Leibniz, razão suficiente e o Ser necessário (oleniski.blogspot.com)

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