MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 80 (itálicos no original)
No capítulo XI de sua obra Sabedoria dos Princípios, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos invoca as teses do filósofo jesuíta espanhol Francisco Suarez sobre a Matese. Seguindo Tomás de Aquino, Suarez declara a sapiência (ou sabedoria) é um hábito que não é natural por si mesmo, pois implica certo grau incoativo, dado que seus atos não provém da razão, mas são apreendidos imediatamente pela luz natural. Isto é, há um hábito dos princípios cuja característica é justamente captar os princípios de forma imediata e não por meio de raciocínio.
Cabe um curto comentário de esclarecimento. Grosso modo, a faculdade racional (Razão) é constituída pela capacidade de abstrair e formular linguisticamente conceitos abstratos, compor juízos afirmativos ou negativos e encadeá-los em raciocínios com o objetivo de extrair de seu conteúdo informativo uma conclusão igualmente informativa. É, portanto, um processo discursivo, realizado em etapas, para as quais é necessário haver premissas que são deduzidas de outras premissas, ou são sabidamente verdadeiras, ou ainda, são imediatamente evidentes.
O hábito dos princípios de que fala Suarez não pode ser raciocinativo, pois refere-se aos princípios mais gerais possíveis, sendo condição de possibilidade de qualquer raciocínio e não conclusões derivadas de outras premissas logicamente anteriores. Mário Ferreira enfatiza amiúde o caráter evidente e imediato desses princípios, o que justifica a citação de Suarez na medida em que este concebe o hábito dos princípios como uma captação imediata da verdade dos princípios mais altos.
Não obstante, tradicionalmente não é a Metafísica que trata dos primeiros princípios? Suarez responde que a Metafísica não trata dos princípios enquanto princípios. Mário Ferreira assevera que esta é uma diferença fundamental: a Metafísica versa sobre princípios como conclusões (de um processo de abstração). O hábito dos princípios, por seu turno, diz Suarez, não é discursivo como a Metafísica, e trata os princípios enquanto princípios.
Suarez declara que a Metafísica não torna mais evidentes os objetos do hábito dos princípios, pois seu ato é evidentemente distinto do daquele, e a Metafísica apoia-se também em princípios para a sua própria certeza. Quando muito, os objetos metafísicos proporcionam nova evidência aos objetos do hábito dos princípios sem aumentar intensivamente a sua certeza. Novamente, a Metafísica fica subalternada à Matese enquanto sabedoria dos princípios.
A Metafísica, continua Suarez, versa sobre os primeiros princípios explicando a razão dos próprios termos que os compõem. Nela se estuda que há o ente, a substância, o acidente, o todo e a parte, ato e potência que constam dos primeiros princípios. E tais objetos de estudo são conhecidos por si mesmos, por meio do conhecimento de seus termos. Os primeiros princípios mostram-se verdadeiros, à luz natural, imediatamente e por si, não havendo aí perigo de engano, posto que seu conhecimento é participação da luz divina. A Matese versa exatamente sobre tais primeiros princípios acima mesmo da Metafísica, diz Mário Ferreira dos Santos.
Tratando da Matese como sabedoria, no capítulo XII, o filósofo afirma que Tomás de Aquino, embora não focalmente, mas incidentalmente, distinguiu dois sentidos de sabedoria. O primeiro sentido seria o de uma virtude intelectual que procede de um juízo da razão, e o segundo sentido seria o de um dom de Deus, uma cointuição divina. Por conseguinte, o primeiro seria inferior ao segundo, pois a ciência divina não é raciocinativa, mas simples e absoluta.
Há, portanto, uma sapiência que alcança os princípios por revelação religiosa e há uma sapiência que os alcança através de uma revelação pela luz natural. A virtude intelectual da sapiência, todavia, diz Mário Ferreira, já é um salto que ultrapassa o intelecto, dado que é a captação imediata das leis e dos princípios. Resta agora precisar qual é o lugar da Matese dentro do esquema do saber.
Como dito anteriormente, a ciência versa sobre as conclusões, e como a Matese versa sobre os primeiros princípios, cumpre afirmar que a Matese não é uma ciência no sentido estrito do termo. O que é propriamente científico são as conclusões deduzidas dos princípios. A ciência, portanto, é subordinada aos princípios. A Matese é um saber que não pode estar subordinado a nenhum outro saber humano, por isso Mário Ferreira prefere denominá-la sophia.
"Como desejamos que daqui por diante o conceito de ciência seja circunscrito às conclusões, teríamos que dizer, em primeiro lugar, que a Matese, como não trabalha primacialmente com as conclusões, mas com os princípios, ela não é propriamente uma ciência. A Matese é uma sabedoria." (p.78)
Já que trata dos primeiros princípios, naturalmente a Matese é também Teologia e Metafísica. Mas teologia natural, isto é, fundada na razão e não na revelação religiosa. Enquanto encara a divindade como objeto de estudo, a Matese é Teologia, enquanto encara os princípios, a Matese é ela mesma. Sendo um saber arquitetonicamente subordinante, ou seja, um saber a que todos os saberes humanos se subordinam, a Matese é sabedoria dos princípios adquirida pela via humana, não pela via divina. A Matese distingue-se formalmente da Metafísica e da Teologia na medida em que seus objetos de estudo são os princípios enquanto princípios e as leis enquanto leis.
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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":
https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html
http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html
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