sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Comentário curto ao Mênon de Platão (parte 1)


"Aos olhos de Platão, todo exercício dialético, precisamente por ser uma submissão às exigências do Logos, exercício do pensamento puro, desvia a alma do sensível e permite a ela que se converta na direção do Bem. É um itinerário do espírito na direção do divino."(tradução minha)

PIERRE HADOT, Exercices spirituels et philosophie antique, p. 47

O diálogo Mênon, de Platão, inicia diretamente com uma questão formulada pelo próprio Mênon e endereçada a Sócrates: "a virtude (ἀρετή) pode ser ensinada?" Se não for ensinada, é possível adquiri-la pelo exercício ou, se nenhuma das duas opções for verdadeira, a virtude é dada aos homens por natureza ou por algum outro meio? Sócrates responde que até há pouco tempo os tessálios eram tidos como sábios, graças aos ensinamentos do sofista Górgias. Em Atenas, entretanto, Sócrates afirma, a sabedoria parece ter partido da cidade, pois não há quem possa responder à questão formulada por Mênon.

Sócrates admite que, igual a seus concidadãos, ele também não sabe o que seja a virtude, e nem encontrou quem o soubesse. Mênon, espantado, indaga como isso seria possível, dado que Sócrates havia encontrado Górgias quando o sofista esteve em Atenas. O filósofo desconversa dizendo que não possui boa memória e que não recorda o que achou à época das preleções de Górgias. Em seguida, pede a Mênon que recorde as idéias de Górgias sobre o tema ou que apresente as suas próprias concepções que, como Mênon admite, são as mesmas do mestre sofista.

Mênon aceita a sugestão de Sócrates e enuncia a sua definição de virtude. A virtude masculina é ser capaz de gerir os assuntos da cidade, fazendo o bem aos aliados e mal aos inimigos, e guardando-se ele mesmo de sofrer os males que infringe a seus inimigos. A virtude feminina é bem administrar a casa e ser obediente a seu marido, e as virtudes das crianças, dos anciãos, do homem livre e do escravo são diferentes em cada caso. 

Começa, então, o exame dialético da primeira definição de virtude. A estrutura é simples: uma definição é proposta pelo interlocutor de Sócrates, e este a confrontará com perguntas e objeções que tentarão mostrar o quão ela é inadequada ao objeto em discussão. Sócrates começa o seu exame ironizando Mênon, dizendo que em lugar de uma virtude, recebera um enxame de virtudes. Falando em enxames, se ele, Sócrates, perguntasse a Mênon o ser (οὐσία) das abelhas e este respondesse que são muitas e de diversas formas, não seria cabível a pergunta se as abelhas, sendo muitas e diversas, diferem todas quanto a serem abelhas ou quanto a outras características, como tamanho e beleza?

A questão posta por Sócrates remete ao ponto central da discussão: encontrar a unidade formal que subjaz a todos os exemplares. Perguntar o que é algo é perguntar sobre aquilo que torna a coisa o que ela é e a distingue de todas as demais. Enumerar os exemplares de algo não é dizer o que é esse algo. Sócrates tentará fazer Mênon entender que a sua resposta é inadequada porque sequer é uma resposta à questão realmente posta. A pergunta não foi acerca dos tipos de virtude que há e sim acerca daquilo que torna uma virtude uma virtude. Isto é, o que unifica todos os exemplares de virtude e que permite que cada um seja identificado como uma virtude. Qual é a unidade que subjaz à multiplicidade?

Mênon responde que, no que tange ao serem meramente abelhas, elas não diferem umas das outras em nada. Sócrates avança e declara que o mesmo se dá com as virtudes. Embora muitas em quantidade, todas possuem um caráter único. O termo utilizado por Sócrates, em grego, é εἶδος (eidos), que significa "o visto", "imagem", "forma", "tipo", "espécie". O termo assume no diálogo uma acepção que vai além das referências à visão sensível, e remete à capacidade de perceber um padrão formal por trás das coisas vistas. 

Mênon ainda não compreende o pensamento de Sócrates, e este indaga se o mesmo que acontece com a virtude, de ser una possuindo muitos exemplos, acontece também com a saúde, a força e o tamanho. Mênon admite que, naquilo que distingue a saúde de todas as outras coisas, a saúde é a mesma não importa quem a possua. Mênon responde positivamente e concorda que o mesmo se dá com a força e o tamanho. 

Aristóteles, na Metafísica, afirma que Sócrates é o inventor da indução e da definição universal. A indução é a apreensão de uma generalidade a partir de exemplos ou de instâncias singulares. E a definição universal é a formulação verbal daquilo que constitui a espécie de uma coisa. Partindo de exemplos de virtude, Sócrates tenta conduzir Mênon a conceber a unidade formal que subjaz a cada uma das virtudes e que as torna o que elas são. A definição do que é virtude, por seu turno, expressará verbalmente essa unidade em suas características essenciais e indispensáveis.

A primeira indução que Sócrates emprega parte dos exemplos de virtudes na tentativa de encontrar a unidade formal entre as virtudes. Mênon não consegue entender o que o filósofo pretende, e Sócrates emprega uma segunda indução mostrando que o que acontece com a força, com a saúde e com o tamanho deve acontecer também com virtude. Se Mênon admite que a força, a saúde e o tamanho têm cada um sua própria unidade que concede sentido aos seus exemplares (a força é a mesma não obstante se a aplicamos a homens ou a mulheres, por exemplo), então o mesmo deve se dar com a virtude. 

Reticente, Mênon não consegue admitir que uma mesma virtude seja aplicável ao homem e à mulher, ao jovem e ao idoso. Sócrates insiste um pouco mais e insta Mênon a dizer o que Górgias considerava ser a virtude. Mênon obedece e enuncia a segunda definição de virtude: a capacidade de comandar os homens. Sócrates critica a definição exposta indagando se é a mesma a virtude da criança e a do escravo. Obviamente que não, pois a criança não comanda ninguém e muito menos o escravo comanda seu mestre. Portanto, a definição não se aplica a todos os casos.

Mênon é obrigado a concordar que a sua definição não é boa. Sócrates sugere uma emenda: a virtude não seria comandar os homens com justiça (δικαιοσύνη)? Parece ser verdade, pondera Mênon, pois a justiça é virtude. Mas, pergunta Sócrates, a justiça é virtude ou uma virtude? Isto é, a justiça é uma entre outras virtudes ou é a virtude enquanto tal? Novamente Mênon é obrigado a admitir que a sua definição é errônea, pois evidentemente há outras virtudes como a coragem (ἀνδρεία), a temperança (σωφροσύνη) e a sabedoria (σοφία). A justiça é uma entre outras virtudes, e permanece o problema da unidade que subjaz a todos os exemplos de virtude.

Sócrates recorre a uma terceira indução. A redondez é uma figura ou é a figura? Se for a figura, então toda figura é redonda, o que é evidentemente falso. A redondez é uma entre outras figuras, mas o que é figura permanece em aberto. Do mesmo modo, se alguém perguntasse o que é cor e tivesse como resposta que cor é branco, seria fácil notar que as outras cores não são branco. Há uma unidade subjacente que torna cada cor uma cor, e essa unidade não pode ser quaisquer das cores que há.

É mister remontar das diversas figuras àquilo que as torna todas figuras. O que está sendo buscado é "o mesmo em todas essas coisas", a unidade que fundamenta a multiplicidade. Sócrates se propõe a definir o que é figura. O objetivo de definir o que é figura é oferecer um exemplo de apreensão do eidos a fim de conduzir indutivamente Mênon a compreender como definir o que é a virtude. Sócrates define a figura como o único ser que sempre acompanha a cor. A definição não convence Mênon, pois se alguém não souber o que é cor, não entenderá o que é figura. 

Sócrates recua e admite definir a figura com termos que sejam de conhecimento de Mênon, como  as noções geométricas de limite, extremidade e sólido. A definição será: figura é o limite do sólido. Uma definição só pode ser enunciada utilizando termos cujos significados já sejam compreendidos por quem a enuncia ou para quem ela é enunciada. A definição de figura depende da compreensão prévia de um conjunto de termos: limite, extremidade, sólido e superfície.

Mênon convence Sócrates a definir o que é cor, e o filósofo afirma que o fará segundo o modo de Górgias, o sofista. Sua definição é a de que a cor é uma emanação de figuras de dimensões proporcionadas à visão. Mênon fica satisfeito com a definição e a considera melhor do que a definição de figura dada por Sócrates. Este, no entanto, faz ver a Mênon que a mesma definição de cor serviria também para definir o que é o som, o odor e coisas do mesmo gênero. 

A questão é que uma definição que serve a tantos fenômenos tão diferentes não é capaz de apontar o que distingue especificamente esses fenômenos uns dos outros. Não é possível compreender o que distingue a cor do som com a definição formulada à moda de Górgias. Ela é genérica demais e não desce àquilo que torna a cor o que ela é e a distingue de todos os demais fenômenos, como o som ou o odor. Já a definição de figura formulada por Sócrates enuncia o que distingue especificamente a figura de todos os outros objetos estudados pela geometria.

Sócrates diz que é trágico que Mênon rejeite a sua definição de figura e abrace a definição de cor à moda dos sofistas. O filósofo o incentiva a oferecer uma nova definição da virtude tendo em vista os exemplos já fornecidos de unidade formal da multiplicidade. A quarta definição da virtude concebida por Mênon é "regozijar-se com as coisas belas e poder alcançá-las". Em seguida, Sócrates inicia a crítica dialética da definição apresentada. 

A primeira pergunta é se aqueles que buscam o belo estão buscando coisas boas. Mênon responde que sim, e Sócrates indaga se parece a seu interlocutor que todos os homens buscam o bem. Mênon não concorda e afirma que há quem busque coisas más. Sócrates pergunta se alguns homens buscam as coisas más mesmo sabendo que são más ou as buscam acreditando serem boas, embora sejam na realidade más. Para Mênon há os dois casos. 

No caso dos que buscam as coisas más sem saber que são más, na realidade buscam o bem, diz o filósofo. Mênon é obrigado a concordar. No segundo caso, aqueles que querem as coisas más sabendo que são más estariam desejando a infelicidade e a miséria. Sócrates indaga se há realmente quem queira ser infeliz. Novamente, Mênon é obrigado a recuar e a admitir que não há quem busque as coisas más sabendo que são más. Todos buscam o bem, mesmo considerando erroneamente o que é mal como bom. 

A segunda parte da definição diz que a virtude implica poder alcançar as coisas belas. Mas isso se refere ao poder e não ao querer, pois todos podem querer igualmente ser virtuosos. A distinção está no poder, já que alguns são melhores que os outros, e não no querer, no qual todos seriam iguais. Se for assim, então a virtude é poder alcançar coisas boas, tais como saúde e riqueza, ouro e prata, honra e postos de comando na cidade. Mênon concorda. 

Sócrates pergunta se não seria necessário acrescentar à definição o complemento "de maneira justa", pois não parece ser virtuoso simplesmente poder alcançar coisas boas não obstante os meios empregados. Mênon admite a complementação de Sócrates e este só tem o trabalho de fazer o seu interlocutor enxergar que "justiça" é uma virtude, assim como "piedade" ou "prudência". Por conseguinte, Mênon definiu a virtude utilizando em sua definição uma virtude. Uma definição não pode incluir aquilo mesmo que está sendo definido por ela.

Mênon define as ações virtuosas utilizando-se de virtudes como a justiça. Isto é, não só não definiu o que é virtude em seu eidos, como supôs a justiça como sendo uma virtude sem saber o que é virtude. Não é possível definir algo tomando uma de suas partes como se fosse o todo. Não é possível definir a virtude tomando uma das virtudes como se ela fosse a definição de todas as virtudes. Sócrates força Mênon a admitir que não sabe ainda o que é virtude.

Confuso, Mênon campara Sócrates a um feiticeiro ("góēs", γόης), pois este o havia enfeitiçado com suas palavras a ponto de conduzi-lo à aporia (Ἀπορία, "sem saída"). Segundo a historiadora Sarah Iles Johnston, em sua obra Restless Dead: Encounters Between the Living and the Dead in Ancient Greece, o góēs tinha como função invocar e apaziguar os mortos, mas também podia enviar os defuntos contra os inimigos de seu cliente por meio das katadesmoi, placas de maldição de chumbo depositadas em cemitérios. Em seguida, Mênon compara Sócrates a uma arraia cujo ferrão paralisa a sua presa. O filósofo aceita a comparação desde que ele também seja vítima do veneno da arraia, pois encontra-se tão paralisado quanto Mênon, e não sabe dizer que coisa é a virtude. 

Aqui se apresenta a famosa ironia socrática. O filósofo e historiador da filosofia antiga Pierre Hadot, em sua obra Exercices spirituels et philosophie antique, define a ironia nos seguintes termos:

"Essa máscara socrática, é a máscara da ironia. Se nós examinamos os textos de Platão, de Aristóteles ou de Teofrasto, nos quais aparece o termo eironeia, podemos deduzir que a ironia é uma atitude psicológica segundo a qual o indivíduo busca parecer inferior ao que é: ele deprecia a si mesmo. No uso e na arte do discurso, essa disposição se manifesta por uma tendência a fingir dar razão ao interlocutor, a fingir adotar o ponto de vista do adversário. A figura retórica consistirá, então, em empregar as palavras ou em desenvolver discursos que o ouvinte esperaria sobretudo encontrar na boca do adversário." (p. 110, tradução minha, itálicos no original)

Afetando nada saber, Sócrates escolhe como parceiro de discussão geralmente um especialista em determinada atividade e, admitindo as definições do interlocutor acerca de sua especialidade, Sócrates faz perguntas que pouco a pouco vão demonstrando a ignorância de seu interlocutor acerca da matéria na qual pretensamente ele era um especialista. É exatamente o que Sócrates faz com Mênon: afetando não saber o que é a virtude, o filósofo incentiva Mênon a propor sua definição de virtude, e por meio de uma sequência de perguntas bem escolhidas, Sócrates demonstra que seu parceiro de discussão não sabe o que é virtude. E o próprio Mênon admite que muitas vezes fez discursos sobre a virtude, mas que agora não sabe mais o que ela é.

Mênon, refutada sua quarta definição da virtude, pergunta se é possível que alguém procure e encontre aquilo que não sabe o que é. A questão levantada é capciosa, e parece ter como objetivo interditar o prosseguimento da discussão. Se não é possível conhecer algo que já não se conhece de antemão, então todo o debate travado até aqui foi inútil e todo debate posterior será necessariamente infrutífero. Refutado em todas as suas tentativas de definir o que é a virtude e incapaz de seguir os exemplos de unidade formal na multiplicidade fornecidos por Sócrates, Mênon tenta impugnar a própria discussão pondo em dúvida a possibilidade mesma do conhecimento.

Sócrates declara que a questão de Mênon é erística, ou seja, que não tem outro objetivo senão "vencer" a discussão a qualquer custo. Não obstante, ela precisa ser respondida. Em vez de responder com um argumento, Sócrates apela para os sacerdotes e para os poetas que, como Píndaro, ensinam que a alma é imortal e que renasceu inúmeras vezes, conhecendo este mundo e o Hades. O conhecimento, então, não seria o aprendizado de algo novo e nunca visto, mas sim uma anamnese (ἀνάμνησις, "rememoração") dos conteúdos já aprendidos em outras vidas. Como as coisas são semelhantes, não é de se espantar que a rememoração de uma coisa conduza à rememoração de muitas outras. É a isso que usualmente os homens chamam de aprendizado.

O argumento erístico, diz Sócrates, não deve sequer ser considerado, pois ele tornaria os homens preguiçosos e indolentes, e são justamente esses os tipos de homens que gostam de ouvir tais argumentos. Por outro lado, a evidência dos sacerdotes torna os homens diligentes e inquisidores. Sócrates declara que confia nesse argumento e que, baseado nele, deseja retornar à busca pela definição da virtude. 

Mênon, porém, pede ao filósofo que o ensine o que é a anamnese. Sócrates considera a solicitação traiçoeira, já que o que foi dito é justamente que não há ensino, somente rememoração. Assim, ao ensinar a Mênon o que é a anamnese, Sócrates estaria entrando em contradição com sua própria afirmação. Mênon diz que não visa embaraçar Sócrates com seu pedido, e pede que ele mostre de alguma forma o que é a anamnese. O filósofo aceita e solicita que seja trazido a ele um dos escravos que acompanham Mênon para que responda às suas perguntas.

Diante da dúvida de Mênon sobre a capacidade de se saber aquilo que não se sabe, Sócrates apela não à dialética, pois isso seria uma petitio principii, pois o que está em jogo é justamente a capacidade humana de captar o eidos da coisa considerada. Isto é, o problema migra da dialética para a questão do fundamento do conhecimento ou da possibilidade do conhecimento. A única saída é oferecer não um argumento, mas uma demonstração performativa da capacidade humana de conhecimento.

Como Mênon não compreende o apelo ao divino, a saída é performativa, isto é, mostrar que é possível conhecer expondo um espetáculo explícito de conhecimento, uma exibição incontestável do poder de conhecimento: alguém conhecendo aquilo que ainda não conhecia. A única forma de fundamentar a possibilidade do conhecimento é manifestar explicitamente o conhecimento acontecendo. Por isso o escravo será tão importante, pois ele não sabe nada de geometria. Não pode ser acusado de saber antes o que exibirá saber por meio das perguntas a ele dirigidas pelo filósofo. Sócrates, o goes, conhece a psicagogia (guiamento das almas) de conduzir a alma a retornar a conhecimentos anteriores a esta vida.

(continua na parte 2)
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O texto do Mênon utilizado neste comentário foi o da edição da Editora PUC-Rio/Loyola, bilíngue, belamente traduzido pela professora Maura Iglésias, do departamento de Filosofia da PUC-Rio. 

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