domingo, 31 de maio de 2015

Hinduísmo, religião, dever e ortopraxis




"Uma situação de tal tipo pode parecer a um estrangeiro um terreno fértil para o ressentimento social ou rebelião. Vista de dentro, contudo, a resposta foi justamente o oposto disso. Embora a identidade de casta hereditária tornasse a mobilidade social impossível dentro do tempo de vida individual, os princípios do Karma e do renascimento não somente explicavam a condição presente de um homem como também oferecia a esperança de um avanço futuro. O meio para semelhante avanço era a performance apropriada do Dharma, que agora significava a série inteira dos deveres atribuídos por casta. Somente se a identidade de casta fosse aceita e suas respectivas obrigações fossem fielmente cumpridas haveria a chance  para um status mais alto e melhor oportunidades  em vidas futuras. Os valores de casta e os deveres eram dessa forma internalizados e reforçados, tornando a conformidade presente não só suportável, mas desejável."

THOMAS J. HOPKINS, The Hindu Religious Tradition, p. 85

Segundo o professor Thomas J. Hopkins - do Departamento de Estudos Religiosos do Franklin & Marshall College - em seu The Hindu Religious Tradition, a tendência teísta personalista não foi a única reação do brahmanismo ortodoxo frente às doutrinas e movimentos heterodoxos surgidos no século VI A.C.. Paralelamente, cresce a importância das questões relacionadas ao Dharma, ou seja, o dever que emana do lugar de cada homem no mundo.

A maioria da população estava longe de poder alcançar o objetivo último da libertação como postulado pelos Upanisads e seus problemas encontravam-se majoritariamente na vida cotidiana e comum. Por essa razão, doravante, a ortodoxia brahmânica buscará definir uma ortopraxis, um conjunto de normas para cada uma das castas bem como para cada época da vida.

Tradicionalmente, os quatro grandes objetivos da vida são: Kama, Artha, Dharma e Moksha. Kama refere-se aos prazeres sexuais e conjugais, Artha aos deveres de governo e de liderança, Dharma refere-se aos deveres de cada homem de acordo com sua casta e Moksha é a libertação final.

Após o século VI A.C., crescem os conjuntos de textos concernentes ao Dharma. O mais importante deles é o Dharma Sastra. Nele se encontram as famosas Leis de Manu. O centro do ensinamento desses livros está na doutrina do Varna-Asrama Dharma. Varna refere-se às castas, Asrama aos estágios da vida e Dharma aos deveres inerentes à cada casta e à cada estágio da vida.

Os textos sobre o Dharma, apesar de reconhecerem o fim último da libertação, Moksha, enfatizam o dever social. O dever de cada homem é determinado tanto por sua casta quanto pelo estágio da vida em que se encontra. As quatro varnas são: Brâhmanes, Ksatryias, Vaisyas, Sudras, como determinado pelo Rig-Veda no texto do sacrifício de Purusha, e os quatro estágios da vida são brahmacharin (estudante), grihastha (chefe de família), vanaprastha (morador na floresta) e sannyasa (renunciante).

O Brâhmane, o sacerdote, tem como dever o estudo, o ensino, o sacrifício, assistência ao sacrifício, a oferta e a aceitação de dons. O Ksatryia, o guerreiro e governante, tem como dever proteger o povo, ofertar dons, sacrificar e estudar os Vedas. Vaisyas, os comerciantes e criadores de gado, tem como dever proteger seus animais, comerciar, estudar os Vedas e cultivar a terra. Os Sudras não têm direito ao estudo dos Vedas e nem podem realizar sacrifícios, restringindo-se a servir às três primeiras varnas das quais depende econômica e ritualmente.

Os estágios da vida iniciam-se com o brahmacarya ou ''vida de estudante''. O jovem é iniciado no upanayana e abandona a casa paterna entre os oito e os doze anos para viver com um mestre. Durante os próximos doze anos, o jovem vai aprender os Vedas e os demais livros sagrados, participar dos rituais, mendigar a comida de seu mestre e atuar como seu servo. Ele aprende rituais, deveres, valores e padrões de conduta de sua casta. Durante todo o seu período de estudante, ele deve permanecer puro e casto.

Ao final desse período, o jovem retorna à sua casa, seus pais escolhem uma esposa e ele se torna um chefe de família, grihastha, o segundo estágio da vida ortodoxa hindu. Há uma grande valorização desse estágio da vida nos textos dhármicos, pois preservação da sociedade inteira depende dos chefes de família. Eles cuidam de suas famílias, têm filhos, preservam a herança espiritual sustentando ascetas e mestres.

O jovem torna-se um grihastha em torno dos vinte anos através do casamento. Uma esposa adequada é escolhida para ele - geralmente de idade entre oito e dez anos, embora o casamento só seja consumado na puberdade dela –, da mesma casta ou de uma das castas superiores. O casamento é obrigatório.

Por mais valorizada que seja, a vida matrimonial não era o objetivo mais alto a ser perseguido na vida. Moksha permanecia o mais importante objetivo a que um hindu poderia dedicar-se. Entretanto, para a maioria das pessoas, a vida de casado é o limite de sua vida presente: elas casam, sustentam uma família, cumprem todos os seus deveres sociais, realizam seus rituais prescritos e acabam suas vidas como chefes de família.

Algumas poucas pessoas estão preparadas para os dois estágios superiores da vida, vanaprastha e sannyasa. ''Quando um chefe de família vê sua pele enrugar-se e seu cabelo embranquecer e vê os filhos de seus filhos, ele pode conduzir a si mesmo à floresta'' (Manu, VI, 2).

O ''morador da floresta'' é um eremita que retira-se da vida de chefe de família e se isola na floresta em busca da libertação (Moksha). Por um tempo ainda realiza os rituais e sacrifícios, mas aos poucos estes deverão ser substituídos por disciplinas ascéticas interiores. Alimenta-se com plantas da floresta ou com uma dieta bastante rígida obtida basicamente da mendicância. Na realização de exercícios ascéticos, o eremita crê poder libertar-se ou ao menos aproximar-se desse objetivo.

Contudo, há ainda um último estágio de vida hierarquicamente reservado àqueles com os mais altos padrões de pureza e de dedicação: o renunciante. A vida de renunciante inicia-se com um ritual formal no qual o iniciado renuncia a todos os laços mundanos, incluindo aqueles do matrimônio e da família.

Ele realiza um último sacrifício, abandona os apetrechos desses ritos e afirma: ''eu não pertenço a ninguém e ninguém pertence a mim''. Faz votos de total abstinência, de veracidade, de não-violência, de afastamento das riquezas e desconsideração pela própria saúde. 

Calçando apenas sandálias, tanga, manto ocre, uma jarra para água, um bastão e uma tigela para mendigar, o renunciante afasta-se de toda companhia dos outros. Silêncio, meditação, Yoga e não-violência compõem sua vida.

Com o tempo, subcastas foram adicionadas ao esquema original de quatro castas, incluindo-se aí os párias ou intocáveis. O processo de desenvolvimento dessas doutrinas dhármicas chega a seu estágio final por volta dos últimos séculos do primeiro milênio da era cristã.

Para Hopkins, as doutrinas do Dharma e do Karma deram as bases de uma sociedade que, embora estivesse nela ausente a mobilidade social, sustentou-se sem grandes conflitos graças à perspectiva de melhores renascimentos alcançáveis pelo cumprimento diligente dos deveres sociais.


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