sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Nicolau de Cusa e a Possibilidade Absoluta

"O mais excelso nível da reflexão contemplativa é a Possibilidade em si mesma, a Possibilidade de toda possibilidade, sem a qual nada possui a capacidade de ser contemplado. Pois, como a contemplação seria possível sem a Possibilidade?"

NICOLAU DE CUSA, De Apice Theoriae

Em um curto diálogo intitulado De Apice Theoriae, de 1469, o cardeal e filósofo neoplatônico renascentista alemão Nicolau de Cusa trata da questão da natureza divina. Os personagens do diálogo são um Cardeal (suponho que o próprio Cusano) e seu jovem amigo, também sacerdote, de nome Pedro. A conversa inicia quando os dois se encontram após o Cardeal haver passado longo tempo em meditação.

Pedro pergunta ao Cardeal qual havia sido o objeto de sua meditação naquele tempo, e o prelado responde que nem São Paulo, alçado ao terceiro Céu pôde compreender o Incompreensível. Pedro, então, indaga: "O senhor está buscando o quê?". Para a confusão do jovem, o Cardeal responde "você está certo". A resposta parece ser um gracejo, mas o prelado esclarece que está jogando com os sentidos de quid, no latim. Quid pode significar "o quê", como era o sentido original da pergunta, ou significar "o que é", o sentido empregado na resposta.

Em outros termos, o Cardeal não está buscando algo, mas sim o que é a natureza do objeto de sua contemplação, Deus. A questão seguinte é saber se há como conhecer a quididade (quidditas), o "o que é?", a natureza de Deus. Muitos tentaram no passado e fracassaram. O próprio Cardeal passou anos meditando sobre o tema, tendo compreendido que a quididade está para além de toda cognição e antes de toda variação e de toda a oposição.

Agora, porém, o Cardeal compreendeu que a quididade que existe em si e por si mesma é o ser subsistente invariável de toda e qualquer substância, de tal modo que só há uma quididade e uma só base de todas as coisas. Isto é, Deus é a realidade última e fonte de tudo o que há. Ocorre que, o Cardeal prossegue, se há a realidade última e fonte de todas as coisas, obviamente ela era possível. E se há uma possibilidade, ela não pode estar separada da Possibilidade em si mesma. 

Ora, o Cardeal conclui, a quididade divina é a própria Possibilidade Absoluta sem a qual nada existe ou pode existir. Nenhum outro nome é mais adequado a Deus, posto que Ele é a possibilidade última e fundante de tudo o que há e pode haver. A possibilidade é inegável, pois está em tudo e no cotidiano. Sabemos que podemos beber, podemos andar, podemos comer, etc. É óbvio que aquilo que é impossível não pode existir. Igualmente, ninguém duvida que sem possiblidade nada pode existir, possuir, agir ou sofrer ação.

As possibilidades dos entes relativos só podem advir de uma Possibilidade que as reúne todas e é seu fundamento: a Possibilidade Absoluta, pois não há e nem pode haver nada mais alto do que ela que possibilita todas as coisas. Ela é a quididade e a base de todas as coisas que existem, que podem existir e daquelas que não existem e nem existirão. Sendo a realidade mais excelsa, os santos a chamaram de Luz, porque a luz é em si mesma invisível e só se manifesta nas coisas que ilumina. Ausentando-se a luz, as coisas somem de vista.

Assim, a luz é condição da visibilidade das coisas, embora jamais apareça tal como é, da mesma forma que a Possibilidade Absoluta é a condição de existência de todas as coisas, sem que jamais ela se manifeste tal como é. Os diversos seres não são mais do que modos de manifestação dessa Possibilidade que é a mesma em todos eles. Os poderes que as coisas manifestam só são diferentes em modos e em graus, tendo todos origem na Possibilidade Absoluta que se mostra mais perfeitamente naquilo que é mais forte.

Em tudo o que vemos, vemos modos de manifestação de uma só e mesma Possibilidade. O intelecto capta aquilo que compreende. Diante de algo que ultrapassa os poderes de compreensão do intelecto, como a Possibilidade Absoluta, a mente, de certo modo, ultrapassa essas limitações tal como um garoto percebe que uma pedra é mais pesada do que ele é capaz de carregar. A mente vê o que o intelecto não pode compreender.

Nenhuma dúvida pode pairar sobre a Possibilidade Absoluta, já que toda dúvida tem de ser possível para ser formulada. Nada pode ser adicionado a ela e nada pode ser subtraído. Não há o que possa ser mais perfeito do que ela, pois tudo é precedido pela possibilidade. Se alguém buscasse a possibilidade da unicidade, facilmente perceberia que em todo número e em toda pluralidade somente o poder da unicidade se manifesta, dado que todo número não é mais do que um modo de manifestação da unicidade.

Tendo chegado ao final do seu discurso, o Cardeal enuncia doze teses que servirão a Pedro como um memorandum daquilo que foi dito.

I. Nada pode ser adicionado à Possibilidade, já que ela é a possibilidade de tudo.

II. Existe efetivamente só o que pode existir. Isso significa que a existência nada adiciona à possibilidade de existir. A existência como isto ou aquilo não adiciona nada à Possibilidade.

III. Nada pode existir antes da Possibilidade. Tampouco pode existir algo que seja mais perfeito, simples, claro, conhecido, verdadeiro, suficiente, forte, estável, etc. E como a Possibilidade antecede todas as possibilidades de ser isto ou aquilo, ela não pode existir como as coisas, nem ser nomeada, percebida, imaginada ou compreendida. 

IV. A possibilidade de ser isso ou aquilo é uma imagem da Possibilidade Absoluta. Todas as coisas são manifestações da Possibilidade.

V. Assim como a mente de Aristóteles se manifesta livremente por meio de seus livros, a Possibilidade se manifesta em todas as coisas.

VI. Embora não haja nada além da Possibilidade, o ignorante não sabe disso. A mente enxerga dentro de si mesma a Possibilidade. Assim, todas as coisas existem para a mente e a mente existe para enxergar a Possibilidade.

VII. A possibilidade de escolher, o poder do livre arbítrio, não cessa e nem envelhece como o corpo. A Possibilidade se manifesta no poder da mente.

VIII. As coisas inteligíveis são captadas pela mente, e são ontologicamente anteriores aos objetos sensíveis. A mente vê a si mesma, e vê que é uma imagem da Possibilidade por meio de sua própria possibilidade.

IX. Tudo o que a mente vê do objeto material são seus acidentes. Aquilo que é material possui comprimento, largura e profundidade. Esses três acidentes sempre se encontram juntos. A mente enxerga no objeto material triuno a Possibilidade, e essa triunidade se manifesta também em coisas mais elevadas, como revelou Santo Agostinho.

X. A Possibilidade se manifesta de modo mais certo na possibilidade de fazer do artífice, na possibilidade de ser feito daquilo que será feito e na possibilidade da união indissolúvel entre os dois primeiros. Ou seja, o artífice só pode produzir algo porque tem a possibilidade de fazer, aquilo que ele faz tem a possibilidade de ser feito, e o processo de fazer reúne indissoluvelmente os dois. O mesmo se dá com relação à sensação, à visão, ao gosto, à intelecção, à volição, à escolha, à contemplação, e a todas as obras boas e virtuosas.

XI.  Não pode haver outro Princípio que não a Possibilidade. Todos os que falaram diferentes disso não perceberam como a Possibilidade se manifesta em diferentes modos de ser, sejam genéricos ou específicos. Onde não há Possibilidade não há base, como no caso do defeito, do erro, do vício, da fraqueza, da corrupção e da morte, que não possuem ser justamente por não se manifestar neles a Possibilidade.

XII. O Deus Uno e Trino é a Possibilidade, sendo Cristo Sua mais excelsa manifestação. E Cristo conduz à contemplação da Possibilidade, a felicidade que unicamente satisfaz o supremo desejo da mente.

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Νεκρομαντεῖον: Nicolau de Cusa (oleniski.blogspot.com)

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