MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 39
Continuando a reflexão sobre os princípios matéticos, Mário Ferreira dos Santos retoma o tema do khaos. O khaos, como dito anteriormente, é o repositório de todas as potencialidades que ainda não se efetivaram ou que não se efetivarão. Enquanto ainda não atualizadas concretamente, as potencialidades podem ser contraditórias, como estar sentado e estar em pé são potencialidades contraditórias reais de um homem. Um homem não pode estar sentado e em pé ao mesmo tempo, mas ele possui simultaneamente as potencialidades de estar em pé e estar sentado antes de se decidir por alguma delas.
O filósofo distingue dois tipos de potencialidades: potência objetiva e potência subjetiva. A potência subjetiva é aquela já inscrita em um ente concreto, em um sujeito (no sentido de subjectum, o que subjaz ou que está "por baixo"). Por exemplo, um homem tem potência subjetiva para realizar cálculos matemáticos. A potência objetiva é aquela que não está presente em nenhum ente concreto, em nenhum sujeito, mas que existe como pura possibilidade sem nenhuma atualidade.
O khaos reúne todas as possibilidades simultaneamente e sem contradição justamente porque ainda não está ordenado. O khosmos, por seu turno, inclui tudo aquilo que possui atualidade, o que já é ordenado e efetivo. Nele não pode haver a contradição, já que algo não pode ser X e não-ser X simultaneamente. O princípio de não-contradição só vale para aquilo que já se efetivou, para aquilo que já se afirmou na realidade concreta.
Mateticamente, diz Mário Ferreira, o princípio de não-contradição significa o termo que afirma o que afirma e que não pode negar o que afirma enquanto afirma. A lei do cosmos é: um termo afirma o que afirma. Ao se efetivar, aquilo que se efetiva afirma sua própria existência e, por conseguinte, o conjunto de características que o definem e que estão contidas sinteticamente em seu logos (λόγος).
Aqui cabe tecer alguns comentários. Tudo aquilo que é, na medida em que é, pelo tempo em que é, afirma um conjunto de positividades que formam seu próprio modo de ser na realidade. Mas, ao afirmar algo, ele também nega tudo aquilo que não é ele mesmo. Eis um ponto a ser compreendido, cremos, dialeticamente. Ser X significa ser tudo aquilo que pertence a X, e negar tudo aquilo que está fora de X e que, portanto, não é X. Não é possível ser X sem negar tudo aquilo que é não-X.
Isso não significa, contudo, que a natureza de X é definida negativamente por tudo aquilo que X não é. Seria impossível definir qualquer coisa a partir de tudo aquilo que ela não é, pois é indefinida (potencialmente infinito) a extensão das coisas que não são X. Ademais, como saber o que é X por aquilo que não é X, se não sabemos o que nega ou não X? Assim, a afirmação precede ontologicamente a negação no sentido de que é somente pela afirmação que X se coloca na realidade com todas as suas positividades, e é a partir delas que X se distingue de tudo aquilo que não é X.
O que o filósofo brasileiro almeja nesse ponto tão abstrato é, cremos, apontar para a experiência mais básica que todo ser humano tem da sua própria realidade e da realidade de tudo o que o cerca. Qualquer coisa que seja, ao existir, pelo simples ato de existir, só pode existir como algo definido. Embora possamos abstrair intelectualmente a existência como ato de existir deixando de lado a especificidade daquilo que existe, na realidade concreta isso tudo é inseparável.
Tomemos um cavalo. Podemos abstrair o fato de que se trata de um cavalo e pensar somente no que significa existir. Muitas coisas existem e, do ponto de vista do mero ato de existir, todas as coisas existem da mesma maneira. O sapo existe tanto quanto o cavalo. A partir desse ângulo, sapo e cavalo não são diferentes, pois separamos intelectualmente o tipo de ser que o cavalo é e o tipo de ser que o sapo é e nos fixamos somente no fato simples de sua existência. Ocorre que, por mais acertada e válida que seja essa separação em si mesma, o fato concreto é que o cavalo não pode existir a não ser como cavalo. Ele não pode ter uma existência sem pertencer a nenhuma espécie de coisa (classe, tipo, gênero, o termo aqui importa pouco).
O cavalo concretamente existente não pode existir sem afirmar um conjunto de positividades que pertencem ao modo de ser dos cavalos. Ao ser cavalo, ele não pode ser qualquer outra coisa que não seja própria do modo de ser do cavalo. Ser cavalo já é negar ser sapo. Evidentemente, essa negação não precisa ser formulada em uma sentença. Não se trata aqui de afirmações ou de negações verbais, mas sim de afirmação e negação no sentido ontológico de ser e de não-ser. Não se trata, tampouco, de duas realidades separadas, ser e não-ser, mas sim de aspectos de uma só e mesma realidade.
Sendo cavalo, o cavalo afirma um conjunto de positividades próprias do ser cavalo. Tudo o que está contido no modo de ser de um cavalo é afirmado, posto na realidade pela existência efetiva do cavalo. Nada que não esteja contido no modo de ser do cavalo é afirmado, posto na realidade pela existência efetiva do cavalo. Um par de asas não é posto na realidade pela existência de um cavalo. Mas um par de asas é posto na realidade pela existência de uma águia. O cavalo só afirma as positividades daquilo que pertence ao ser de um cavalo. Ele só afirma o que está na lei do cavalo, no seu logos.
Mário Ferreira pode, então, dizer que o logos de algo afirma tudo o quanto ele afirma e nega tudo quanto ele nega. É característica do logos afirmar um conjunto determinado de positividades. Ao afirmá-las, o logos necessariamente exclui aquilo que nele não está contido. Tudo isso parece tautológico, mas é preciso atentar menos à formulação verbal e mais à experiência concreta que todos temos da presença real dos entes à nossa volta.
As coisas existem, estão presentes, impõem-se a nós e às outras coisas. A sua presença é sempre a presença de um conjunto de características que as distinguem das demais. Não há neste mundo uma existência puramente genérica, sem nenhum conjunto de positividades definidoras. Tudo o que há neste mundo se apresenta com uma gama limitada de características, definidas e ordenadas por uma lei própria, um logos. Nada há de mais concreto que isso. É o logos que fundamenta a ordem que testemunhamos no mundo, e é o que o torna inteligível.
Tudo o que é ordenado possui, diz Mário Ferreira, uma estrutura triádica, dado que a ordem exige necessariamente que haja pelo menos dois elementos que são ligados por um logos analogante. O cosmos é ordenado porque apresenta termos que são analogados por um logos, uma lei interna, que afirma o que afirma e nega o que nega. A lei é o que constitui a tectônica de qualquer ente. O nada, considerado como termo, possui também um logos: o vazio, a ausência de qualquer coisa.
O ponto em questão merece esclarecimentos. Parecerá ao leitor que a tese de Mário Ferreira sobre o nada entra em contradição com o que foi dito antes, pois se o logos afirma o que afirma, como pode haver logos naquilo que é justamente a negação de toda afirmação? O filósofo brasileiro não dá maiores explicações sobre esse ponto que, na verdade é tocado somente en passant. Não obstante, cremos ser interessante tentar formular alguma hipótese interpretativa.
Obviamente, Mário Ferreira não está dando ser ao nada. O nada é a absoluta ausência de qualquer modo de ser. Igualmente óbvio é o fato de que ninguém tem a experiência do nada. Então, como "conhecemos" o nada? Pela negação contínua de todo e qualquer ser. Simplesmente tomamos a possibilidade concreta da ausência de um ser e a expandimos hiperbolicamente para todo e qualquer ser. Não temos uma experiência do nada, e chegamos a algum entendimento do nada somente por uma via negativa. Em outros termos, chegamos ao conceito de nada negativamente e não positivamente, como fazemos com qualquer ente.
Não é dizendo o que o nada é positivamente que o alcançamos pelo pensamento, mas dizendo negativamente o que ele não é. Não se trata do pensamento de algo e sim da negação de todo e qualquer algo. A estranheza que esse pensamento nos causa provém do fato de que nosso intelecto busca sempre o que há de inteligível nas coisas. O inteligível é aquilo que constitui a natureza de algo e que o torna compreensível ao intelecto humano. O nada não possui uma natureza positiva, ele não é algo. Então, não o atingimos por aquilo que ele é, pois o intelecto busca sempre o ser.
O pensamento que trata do nada é, para usar uma expressão platônica, um pensamento bastardo. Não tratamos o nada de modo direto, como se estivéssemos diante de um objeto adequado à nossa capacidade intelectiva. Nós o tratamos de modo indireto, como tratamos a ausência de algo determinado. Dizer que algo está ausente é dizer que a coisa não está presente ali. Não é apontar diretamente para uma presença, para algo. É apontar indiretamente para o não-ser com a linguagem do ser.
A ausência não é um ente, não é algo. A ausência é uma possibilidade não realizada de algo realmente existente. Se dizemos que o cavalo não está no estábulo, apontamos para o fato de que a possibilidade da presença do cavalo no estábulo não se realizou. A ausência, por conseguinte, não existe a não ser em relação ao cavalo. É o cavalo real que é a referência da ausência, ele é a única razão para falarmos de uma ausência. O cavalo é um ente real, e estar ausente do estábulo é uma condição que se refere a ele somente. A ausência não é algo como o cavalo é algo. Ela é o modo como nos referimos à possibilidade não realizada do cavalo estar no estábulo.
Ora, se estendermos essa ausência para todas as coisas, teremos uma idéia do nada. Não a idéia de uma entidade real e existente. Teremos somente um modo indireto de nos referirmos à possibilidade não realizada da existência de todas as coisas. O nada só é alcançável pelo pensamento, e mesmo assim só de forma indireta e negativamente. Enquanto uma idéia, o nada possui um traço definidor: a ausência.
Se nossa interpretação dessa passagem específica de Mário Ferreira estiver correta, é somente nesse sentido que podemos dizer que o nada possui um logos: o nada é uma ausência absoluta. Não se trata certamente do logos de um ente positivo e existente, mas sim do logos que se refere negativa e indiretamente à possibilidade da existência que não foi efetivada universal e absolutamente.¹ A linguagem humana, embora voltada e adequada ao ser, é capaz de se referir ao não-ser, não como algo ou como uma possibilidade efetivada, mas negativamente como uma possibilidade que não se efetivou, uma ausência de ser.
O filósofo brasileiro havia definido anteriormente termo como tudo o quanto é capaz de receber alguma definitização. Tudo o que tiver algum traço distintivo será um termo. O nada é um termo, pois apresenta um traço: a ausência absoluta. O nada não é e não pode ser um ente. Não há o nada, não houve e nem jamais haverá o nada. Ele é uma impossibilidade de existência. Não obstante, negativamente, o nada possui um traço distintivo que o define: a ausência.
No capítulo II, Mário Ferreira assevera que "nós, quando pensamos o nada, não criamos o nada. É apenas a idéia de alguma coisa, esvaziada de sua presença. Nós apenas postulamos uma idéia da qual esvaziamos toda positividade." E no capítulo VI, o filósofo afirma que o "nada pode ser um termo, pois indicia a definitização da ausência, da ausência total de positividade." O nada não indica qualquer entidade efetiva ou possível, indica apenas a concepção abstrata de uma ausência universal.
O termo só afirma o que afirma e nega o que nega. Isso não carece de demonstração, dado que é uma asserção evidente. É uma afirmação óbvia como são óbvios todos os postulados matéticos. A sua obviedade se deve ao seu caráter absolutamente fundamental. A Matese é o conhecimento das razões eternas de todas as coisas.
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¹Mário Ferreira não usa esses termos, mas talvez pudéssemos falar de "logos do negativo" ou "logos negativo". O inconveniente seria a possibilidade de confusão que seu uso poderia engendrar.
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