terça-feira, 4 de outubro de 2016

Popper, liberdade, tradição e princípios liberais

Popper ao lado de Friedrich von Hayek, expoente da Escola Austríaca de Economia 


"Todas as leis, sendo princípios universais, devem ser interpretadas a fim de serem aplicadas. Uma interpretação necessita de alguns princípios de prática concreta, os quais podem ser fornecidos somente por uma tradição viva. E isso aplica-se mais especialmente aos altamente abstratos e universais princípios do Liberalismo."

KARL POPPER, Public Opinion and Liberal Principles, in Conjectures and Refutations, p. 473

Em uma conferência realizada em um congresso de liberais acontecido em Veneza em 1954, na qual discutia os perigos e os mitos que circundam a chamada opinião pública, Karl Popper formulou oito princípios políticos liberais fundamentais. Tais princípios tinham como objetivo restringir o poder anônimo e irresponsável (pois não responde a ninguém) da opinião pública e, a um tempo, proteger a liberdade do indivíduo dos possíveis efeitos deletérios da associação dessa mesma opinião pública com o aparelho do Estado.

O primeiro desses princípios ou teses é a Navalha Liberal (referência à Navalha de Ockham) e afirma que o Estado é um mal necessário e que seus poderes não devem ser expandidos para além daquilo que é preciso. Aqueles que pensam que toda pessoa dever ter o direito de viver e que toda pessoa deve ter a exigência legal de ser protegida contra as investidas do poder dos mais fortes concordarão que o Estado é necessário para a garantia de semelhantes direitos.

É claro que, se o Estado deve realizar a tarefa de garantir os supracitados direitos a todos os cidadãos, ele deve ser capaz de realizar sua missão. Isto é, o Estado deve ter o poder de realizar a contento a sua tarefa originária. Para tanto, ele precisa ter mais poder do que qualquer cidadão individual ou qualquer grupo ou corporação pública.

O perigo óbvio é o abuso desse poder por parte do Estado. Medidas podem ser tomadas para minimizar esse perigo, como a criação de instituições que restrinjam os poderes estatais. Indubitavelmente, no entanto, nada pode garantir a eliminação completa desse perigo. Popper assevera que a proteção do Estado parece implicar não somente o pagamento de taxas, mas também uma certa cota de humilhação nas mãos da burocracia estatal. Resta saber se o preço não é alto demais.

A segunda tese versa sobre o caráter da democracia. Ela afirma que a democracia distingue-se da tirania por ser um tipo de sistema no qual um governo pode ser trocado sem o derramamento de sangue. Em outros termos, a democracia fornece uma estrutura institucional que permite que governos subam e desçam do poder de forma legítima e pacífica, sem a necessidade de revoltas ou de revoluções sangrentas. 

A tirania, sendo um governo de força, só pode ser apeada do poder pela força. E como não se espera que o tirano ceda seu lugar pacífica e espontaneamente, o único meio que resta para a mudança de governo é a ação violenta. 

A terceira tese ou princípio afirma que a democracia não age ou faz qualquer coisa. Os cidadãos da democracia, incluídos aí aqueles que participam do governo, é que agem ou fazem algo. Para Popper, a democracia não é mais do que uma estrutura na qual os cidadãos podem agir em uma forma mais ou menos organizada e coerente.

Na quarta tese é dito que os democratas não são democratas porque a maioria sempre tem razão. Não é preciso muito raciocínio para perceber que maiorias podem estar erradas e que frequentemente estiveram. As instituições da democracia não são perfeitas, só não são tão más quanto aquelas das opções conhecidas.

Não se pense, portanto, que, se a maioria dos cidadãos (a opinião pública) votar a favor de uma tirania, o democrata tenha diante de si uma grave inconsistência em sua visão sobre a democracia. O que realmente acontece é que a tradição democrática de seu país não era forte o suficiente.

E essa questão da tradição democrática conduz à quinta tese de Popper. Instituições, por mais virtuosas que sejam, jamais são suficientes em si mesmas para barrar abusos, pois qualquer instituição é passível de servir a propósitos inteiramente contrários àqueles aos quais destinava-se originariamente.

A única solução para esse problema é a existência de uma forte tradição que ampare e dê força às instituições. São as tradições que ligam as instituições às intenções e aos valores dos homens individuais. Na ausência dessas tradições, tudo pode ser subvertido e degradado.

Como consequência do que foi afirmado acima, a Utopia Liberal, isto é, um Estado racionalmente desenhado em uma tabula rasa isenta de qualquer tradição, é simplesmente uma impossibilidade. Se, por exemplo, tomarmos o princípio liberal de que as restrições à liberdade individual necessárias ao convívio social devem ser minimizadas e equalizadas tanto quanto possível, como aplicar concretamente semelhante princípio?

Segundo Popper, somente a existência de tradições e de costumes consolidados pode solucionar o problema da aplicação dos princípios abstratos do Liberalismo às situações concretas. Dado que qualquer princípio abstrato é universal e que as situações concretas são singulares, há que existir uma tradição de senso de justiça que guie a aplicação dos princípios.

A sétima tese afirma que os princípios do Liberalismo podem ser descritos como princípios de avaliação e de mudança das instituições e não de substituição das instituições existentes. Nesse sentido, o Liberalismo não é uma doutrina revolucionária (ao menos enquanto não se opõe a uma tirania) e sim evolucionária.

Por fim, a oitava tese defende que o elemento mais importante das tradições é o que se pode denominar como a estrutura moral (a estrutura legal institucional), que incorpora o senso tradicional de justiça e de lealdade ou o grau de sensitividade moral que a sociedade alcançou. É essa estrutura moral que possibilita a realização de um compromisso justo entre interesses em conflito.

Popper admite que essa estrutura não é imutável. Contudo, ela muda muito devagar. A destruição dessa estrutura tradicional (como almejada pelo nazismo) conduz ao nihilismo e ao cinismo. O seu fruto é o desprezo e a dissolução dos valores humanos. O fim da própria democracia.
...

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2 comentários:

Angelo disse...

Ola, Sr Oleniski,

E muito prazeroso ler o conteudo do seu blog. A cada leitura, um novo despertar da consciencia. Sempre bom ler as suas postagens acompanhado de uma xicara de cafe.

Tenha agradaveis dias pela frente,

Angelo.

vladimir rizzetto disse...

A conciência moral e a virtude são o esteio de uma sociedade e consequentemente, de uma nação, não é mesmo?
Um país em que seus costumes, tradições e religiosidade veem sendo solapados pelo relativismo jamais será uma grande nação.

Mais uma vez agradeço pela leitura agradável e edificante.

Saudações.