segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Garrigou-Lagrange e Pierre Duhem sobre a compatibilidade entre física e metafísica

                                          Garrigou-Lagrange estudando em sua cela.

O filósofo e teólogo neoescolástico francês Reginald Garrigou-Lagrange (1877-1964) discute, em um apêndice, ao final de sua obra Dieu, son Existence et sa Nature, as possíveis consequências metafísicas de uma interpretação realista dos princípios da inércia e da conservação da energia. 

Em questão está a possibilidade de harmonização entre os supracitados princípios físico-matemáticos e as exigências racionais do princípio metafísico da causalidade. A fim de resolver o aparente dilema, o dominicano expõe suas dúvidas ao físico, matemático, historiador e filósofo Pierre Duhem que, por sua vez, as responde utilizando-se de suas teses acerca dos domínios respectivos da teoria física e da metafísica.

Para Duhem, as teorias físico-matemáticas não são mais do que classificações naturais, isto é, estruturas hierarquicamente ordenadas de equações que descrevem o comportamento manifesto das grandezas físicas sem alcance da natureza última dos fenômenos. Por essa razão, o conflito divisado por Garrigou-Lagrange não pode ser mais do que aparente, pois os princípios em questão não pertencem aos mesmos níveis da realidade.

Garrigou-Lagrange apresenta o problema da seguinte forma:

“Nota sobre o valor dos princípios de inércia e da conservação de energia.”

Tratamos diversas vezes (p. 239, 249-256, 260) desses dois princípios e do problema de sua conciliação com o princípio da causalidade.

De acordo com o princípio da causalidade, não há nenhuma mudança sem uma causa; portanto, uma causa é necessária tanto para a mudança que ocorre durante o movimento quanto para a transição do repouso para o movimento em si. Se assim não fosse, um impulso mínimo e finito poderia produzir um movimento perpétuo no vácuo, no qual haveria sempre de novo, uma passagem perpétua da potência ao ato. Uma potência finita poderia mover durante um tempo infinito, um estalo de dedos dado há dez mil anos produziria ainda hoje o seu efeito e o produziria para sempre. Semelhante movimento não teria necessidade de ser mantido, não possuiria termo, e nem fim no sentido metafísico da palavra. Como isso não contrariaria os princípios de causalidade e de finalidade?

O princípio da inércia, no entanto, afirma: a matéria não pode, por si mesma, pôr-se em movimento ou modificar o seu estado de movimento. Um corpo em movimento, se nenhuma causa externa agir sobre ele, mantêm indefinidamente um movimento retilíneo uniforme.

Se se objeta que os fatos parecem contradizer o princípio da inércia, que uma bola lançada  sobre um plano horizontal bem polido pára depois de um certo tempo, que um trem, tendo  adquirido sua velocidade normal, pára se o vapor não agir sobre os pistões, o físico responde que   a cessação do movimento é devida ao atrito da bola sobre o plano, das rodas sobre os trilhos e também à resistência do ar.

É demonstrado que o atrito e resistência são as únicas causas da cessação do movimento? Está cientificamente provado que um movimento dado não desacelera por si mesmo? 'Já foi experimentado em corpos subtraídos à ação de qualquer força, exige Poincaré [A Ciência e Hipótese, p. 112-119], e, feito isso, como sabemos que tais corpos não foram sujeitos a qualquer força?' Como, sem exceder os limites de sua ciência, o físico poderia sustentar que a moção divina não é necessária para que um corpo lançado no vazio mova-se para sempre?

O princípio da conservação de energia é enunciado da seguinte maneira: 'A energia total (atual e potencial) de um sistema de corpos subtraído à toda ação externa permanece constante.'  Tal princípio está necessariamente relacionado ao precedente, e equivale a dizer que é impossível que o movimento venha a cessar. Ele desaparece em uma forma e reaparece em outra, como o movimento de um projétil não cessa a não ser engendrando calor, e o próprio calor produz movimento local. A equivalência é constatada com o corretivo fornecido pela lei de degradação da energia.

Isso significa que um determinado estalo de dedos dado há dez mil anos ainda tem seu efeito hoje como resultado de transformações de energia e sempre vai ter, sem que a energia tenha a necessidade de ser renovada? É suficiente admitir que essa energia é conservada por Deus, como  queria Descartes, e que a moção divina é exercida apenas no passado, na origem do mundo? Como, sem exceder os limites do seu conhecimento, o físico poderia afirmar que a moção divina não é necessária para que a energia transforme-se perpetuamente? É claro que a energia não permanece individualmente a mesma, não é o mesmo movimento que passa de um corpo a um outro, pois é este movimento, o movimento deste corpo. Também a atividade humana é relativamente constante na face da terra e, no entanto, ela não permanece individualmente a mesma, ela é renovada, uma vez que os homens nascem e morrem. Aristóteles já dizia: corruptio unius est generatio alterius, a matéria não perde uma forma a não ser para receber outra. O que pode ser traduzido em termos modernos relacionados com a energia: uma forma de energia não desaparece sem outra apareça. 

Quer isto dizer que a forma que desaparece é a causa primeira e toda suficiente daquilo que se segue? De modo algum. A ciência experimental, que estuda apenas as relações constantes  entre os fenômenos não pode pronunciar-se a favor ou contra a necessidade da intervenção de uma primeira causa invisível para a transformação de energia. Mas do ponto de vista metafísico, um movimento não dá origem a um outro movimento a não ser com o concurso invisível do primeiro Ser, causa de todo o ser enquanto ser, o Primeiro motor, a causa suprema da atividade das causas segundas. Da mesma forma, do ponto de vista metafísico, um movimento local não pode perpetuar-se no vazio, não pode ser uma perpétua passagem de potência a ato, sem a intervenção invisível do Ato puro, a causa suprema de toda a atualização. Para sustentar, com Descartes, que é suficiente que Deus conserve o movimento, é necessário entender por essa expressão que Deus continua a mover.

Somente assim podem ser conciliados os princípios mecânicos de inércia e de conservação de energia com o princípio metafísico de causalidade. Qualquer conciliação que rejeita a necessidade de intervenção da causa primeira resta ilusória.

O físico não tem como resolver esse problema, ele não pode pronunciar-se positivamente sobre o valor da solução que lhe dá metafísica tradicional. Ele só precisa reconhecer que semelhante solução não se opõe em nada àquilo que a física tem o direito de afirmar sobre o valor de seus próprios princípios na ordem fenomênica.

Sobre este último ponto, temos o prazer de reproduzir uma carta do senhor Pierre Duhem, da Academia de Ciências, onde ele concordou em resumir para nós as ideias principais da sua bela obra A Teoria Física. Rogamos que aceite nossa gratidão, a expressão do nosso respeitoso reconhecimento."

Tendo apresentado suas impressões sobre o problema da conciliação entre os princípios da física-matemática e o princípio metafísico da causalidade, Garrigou-Lagrange reproduz a concisa resposta de Pierre Duhem:

"Meu Padre,

Devo-lhe uma explicação para alguns termos ambíguos da minha carta anterior, e, particularmente, para o nome axioma ou o chamado axioma que dei ao princípio da inércia.

Começo por explicar que eu tomo as palavras Matemática, Física e Metafísica no sentido em que os entendem, em geral, os nossos contemporâneos, não no sentido de Aristóteles e dos escolásticos.

Nessas circunstâncias, a lei de inércia não existe para o matemático. Os princípios da ciência dos números e da geometria são os únicos que ele têm que admitir. Ele não se ocupa dos princípios da Mecânica e da Física. Se acontece de estudar os problemas que lhe colocam o mecânico e o  físico, ele o faz sem preocupar-se com a via pela qual eles foram levados a formular tais problemas.

Considero, portanto, o princípio da inércia somente como ele é para o físico.

Então, podemos afirmar tudo o que pode ser afirmado de todos os princípios das teorias físicas e mecânicas.

Esses princípios fundamentais ou hipóteses (no sentido etimológico da palavra) não são axiomas, isto é, verdades auto-evidentes.

Não são também leis, isto é, proposições gerais que a indução retirou diretamente das lições da experiência.

Pode ser que certas verossimilhanças racionais ou certos fatos de experiência no-las tenham sugerido. Mas tal sugestão nada possui de demonstração. Ela não lhes confere, por si mesma, nenhuma certeza. Do ponto de vista da lógica pura, os princípios básicos das teorias físicas e mecânicas não podem ser considerados a não ser como postulados livremente propostos pelo espírito.

A partir do conjunto desses postulados, o raciocínio dedutivo infere um conjunto mais ou menos remoto de consequências que são consistentes com os fenômenos observados. Esse acordo é tudo aquilo que o físico espera dos princípios por ele postulados.

Tal acordo concede aos princípios fundamentais da teoria alguma verossimilhança. Mas ele nunca pode dar-lhes a certeza, porque nunca podemos demonstrar que, sendo outras premissas tomadas como princípios, não deduzir-se-iam daí consequências que concordariam igualmente bem com os fatos.

Além disso, não se pode jamais afirmar que não serão um dia descobertos novos fatos que não concordam com as consequências dos postulados que foram assentados como os alicerces da teoria. Fatos novos que obrigarão a deduzir, de novos postulados, uma nova teoria.

Essa mudança de postulados ocorreu repetidas vezes durante o desenvolvimento da ciência.

A partir dessas observações, duas consequências:

1. De nenhum dos princípios da teoria mecânica e da física, foi possível ou será possível  afirmar categoricamente que ele é VERDADEIRO.
2. De nenhum dos princípios subjacentes à teoria mecânica e à física, pode-se dizer que é FALSO enquanto não tenham sido descobertos fenômenos em desacordo com as consequências da dedução da qual esse princípio é uma das premissas.

O que eu disse aplica-se, em especial, ao princípio da inércia. O físico não tem direito de dizer que é certamente verdadeiro. Mas ainda menos tem o direito de dizer que é falso, uma vez que nenhum fenômeno até agora forçou a construção de uma teoria física a partir da qual seria excluído esse princípio (se ignorarmos as circunstâncias em que intervêm o livre arbítrio do homem).

Tudo isso é dito permanecendo no campo do físico, para quem os princípios não são afirmações de propriedades reais dos corpos, mas as premissas de deduções cujas consequências devem concordar com os fenômenos todas as vezes em que uma vontade livre não intervém para perturbar o determinismo destes.

A esses princípios da física, podemos e devemos fazer corresponder certas proposições que afirmariam certas propriedades reais de corpos? - À lei da inércia, por exemplo, devemos fazer corresponder a afirmação de que existe, em qualquer corpo em movimento, uma certa realidade, o impetus, dotado de tais e tais características? - Essas proposições estendem-se ou não estendem-se aos seres dotados de livre arbítrio? Esses são problemas para os quais o método do físico está inabilitado a tratar e que ele deixa à livre discussão dos metafísicos.

A essa liberdade do metafísico, o físico somente poderia opor-se em um caso: aquele onde o metafísico formulasse uma proposição que contradissesse diretamente os fenômenos ou que, introduzida a título de princípio na teoria física, conduzisse a consequências em contradição com os fenômenos. Neste caso, haveria motivos legítimos para negar ao metafísico o direito de formular  semelhante proposição.

Eis, meu Padre, o resumo do que eu diria se eu escrevesse, sobre o princípio da inércia, o artigo que gentilmente deseja ...                       P. DUHEM"

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