terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Dostoievski e o ascetismo demoníaco


"Em suma, tudo depende dos senhores e da convicção em que devem estar de que agiram bem - convicção da qual logo amanhã estarão definitivamente de posse, segundo o espero. É por isso, entre outras coisas, que estão reunidos e que, partilhando das mesmas idéias, formaram livremente uma organização a fim de se auxiliarem mutuamente e, sendo preciso, a fim de se vigiarem mutuamente. Foram chamados a reformar uma sociedade decrépita e apodrecida: esse pensamento lhes deve estimular constantemente a coragem. Os seus esforços devem sempre procurar fazer com que tudo desabe - tanto o Estado quanto a sua moral. Só nós ficaremos de pé, nós que desde muito estamos preparados para tomar posse do poder. Anexaremos os indivíduos mais inteligentes, e quanto aos imbecis, serão por nós cavalgados. Isso não os deve chocar. Teremos que reeducar a geração atual para a tornar digna da liberdade. Ainda restam milhares de Chatov. Organizar-nos-emos para dirigir o movimento: seria uma vergonha, da nossa parte, não nos apoderarmos do que praticamente se nos oferece."

Discurso de Piotr Stepanovitch Verkhovensky, líder do grupo revolucionário socialista, após o assassinato de Chatov em Os Demônios de FIODOR DOSTOIEVSKI

Esse discurso, sem dúvida, poderia ter saído dos lábios de Sergei Nechaiev, o revolucionário niilista russo que assassinou um dissidente em novembro de 1869 e inspirou Dostoievski na criação de Piotr Stepanovitch. Nechaiev foi também o autor do nefasto Catecismo Revolucionário onde preconizava que todos os fins, mesmos os mais torpes, são justos se conduzem à revolução.

No Catecismo, Nechaiev afirmava que o ser inteiro do revolucionário está "devorado por um único propósito, um único pensamento, uma única paixão - a revolução. De coração e de alma, não somente por palavras, mas por ações, ele cortou toda a ligação com a ordem social e com o mundo civilizado inteiro; com as leis, boas maneiras, convenções e moralidade desse mundo. Ele é seu impiedoso inimigo e continua a habitar nele com apenas um propósito: destruí-lo."

O revolucionário é um homem totalmente dedicado, para quem sentimentos como amor gratidão, misericórdia, amizade e honra devem ser afastados. E até mesmo ódio e vinganças pessoais devem ser imperiosamente afastadas em nome do sucesso da revolução e da destruição de toda a ordem vigente.

As inclinações pessoais e os desejos do revolucionário não podem jamais se sobrepor aos interesses da atividade revolucionária, sendo sua moral e regra de vida realizar tudo, por qualquer meio concebível, que contribua para a conquista de seu objetivo único. O revolucionário está morto para si mesmo para que a revolução viva.

Se Nechaiev não houvesse sido preso, o jovem dissidente morto por ele certamente teria sido só o primeiro. Piotr Stepanovitch, o Nechaiev dostoievskiano, por seu turno, tem consciência de que Chatov é somente o primeiro e que milhares deveriam futuramente ter o mesmo destino.

O Catecismo prosperou e fez inúmeros discípulos que se dedicaram com afinco a eliminar seus próprios Chatov onde quer que os encontrassem. As valas comuns, Gulags e campos de extermínio do século XX o testemunham com eloqüência muda.

É um dado incontestável declarado por todas as religiões tradicionais: o homem necessita de ascese. É de sua natureza mais profunda. Entretanto, é também fato conhecido a todas as religiões a possibilidade da ascese maléfica.

Uma leva o homem a morrer para si mesmo, a esvaziar-se, a tornar-se nada para alcançar o Todo, o Absoluto. A outra leva o homem a morrer para seus desejos imediatos, para concentrar-se inteiramente na busca de um ideal de poder e de destruição, fruto da insatisfação de um exílio ontológico confusamente discernido a partir de uma imagem invertida do céu.

Left hand path, ascese do demônio.

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