Para um intelectual inserido no cenário científico e filosófico do século XVII a questão acerca da determinação dos fundamentos de um conhecimento seguro era o principal problema teórico a ser resolvido.
A tradição física aristotélico-escolástica se deteriorava e seus procedimentos, critérios e métodos eram severamente questionados pelos proponentes da Nova Física, Galileu e Descartes, que pretendiam, sob bases ontológicas matemático-geométricas, fornecer um retrato verdadeiro da Natureza. Ao mesmo tempo a confiabilidade das faculdades cognitivas humanas era minada pelos argumentos pirrônicos resgatados do esquecimento ainda no século XVI pela publicação das obras de Sextus Empiricus.
O que se seguiu foi uma crise epistêmica sem precedentes que ficou conhecida como crise pyrrhoniénne. Para os intelectuais envolvidos nas discussões científico-filosóficas da época, uma solução deveria ser encontrada para salvar a possibilidade de algum conhecimento do mundo. O que estava em jogo era a própria possibilidade de uma física.
Alguns pensadores da época aceitaram o desafio e formularam uma alternativa teórica que ao mesmo tempo aceitava a força dos argumentos céticos contra o conhecimento da natureza verdadeira dos fenômenos e preservava a possibilidade de um conhecimento físico de ordem hipotética. Esses pensadores ficaram conhecidos como "céticos mitigados".
Em um post anterior, escrevemos sobre as idéias de um dos expoentes dessa escola científica, o frade mínimo Marin Mersenne. Entretanto, um outro pensador, contemporâneo e amigo de Mersenne, o padre, filósofo, matemático e cientista Pierre Gassendi, também defendeu idéias pertencentes ao “ceticismo mitigado” e apresentou suas teorias científicas como a melhor explicação do mundo das aparências sem, no entanto, advogar nenhum conhecimento da realidade por trás das aparências.
Contra as pretensões de Galileu e Descartes, Gassendi defendia um ceticismo radical acerca da possibilidade de determinação da realidade última dos fenômenos. O único conhecimento possível é aquele que nos dá a experiência do comportamento manifesto dos corpos e que pode ser verificado através de suas predições. Se o mundo físico é, em realidade, feito de átomos ou não, a ciência jamais poderá averiguá-lo.
O argumento fornecido por Gassendi para justificar sua posição, desde cedo usado em suas polêmicas antiaristotélicas, afirma que as qualidades dos corpos nada mais são do que aparências sensíveis. Se o mel me parece doce, só posso disso inferir que o mel me parece doce, e não que o mel é doce. De nossas percepções jamais poderemos inferir essências, naturezas ou definições reais dos fenômenos. O que Gassendi nega aqui é o poder da abstração aristotélica de conhecer a essência de um objeto qualquer.
Se há um ceticismo justo, segundo Gassendi, ele deve se restringir à dúvida com relação à possibilidade de se encontrar razões necessárias e suficientes para o nosso conhecimento dos fenômenos que tornariam impossível o erro. Porém, nada pode ser dito contra a pretensão de conhecer as aparências e de construir teorias adequadas à observação e à predição e que não tomem para si a tarefa de explicar causalmente o que nos é fornecido pelos sentidos.
A ciência de Galileu pareceu a Descartes incompleta e desordenada, uma vez que o físico pisano não apresentava as causas primárias da natureza, se restringindo a explicar fenômenos particulares sem alicerçar nada sobre fundamentos sólidos. Descartes, por seu turno, pretendia fornecer bases seguras, claras e distintas, para fundamentar o edifício do conhecimento. Gassendi e Mersenne se afastam de ambos por sua recusa em crer que haja possibilidade de tais fundamentos metafísicos serem encontrados e propõem uma física que somente pode ostentar um caráter hipotético.
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