domingo, 3 de janeiro de 2010

Chesterton e a moral revolucionária




"Os homens tentaram transformar o verbo transitivo 'revolucionar' em um verbo intransitivo. O jacobino poderia indicar não somente o sistema contra o qual se rebelava, mas também (e isso era o mais importante) o sistema contra o qual ele não se rebelava, o sistema sobre o qual ele depositava confiança. Mas o novo rebelde é um cético e não vai confiar inteiramente em nada. Ele não tem lealdade; então ele não poderá jamais ser um verdadeiro revolucionário. E o fato de que ele duvida de tudo se mostra realmente quando ele pretende denunciar tudo. Pois toda denúncia implica uma doutrina moral de algum tipo; e o revolucionário de hoje duvida não somente da instituição que ele denuncia, mas também da doutrina pela qual ele denuncia. (...) Em suma, o revolucionário moderno, sendo infinitamente cético, está sempre engajado em minar suas próprias minas. Em seu livro sobre política ele ataca os homens por pisotearem a moral; em seu livro sobre ética ele ataca a moralidade por pisotear os homens. Assim, o homem revoltado moderno se tornou praticamente inútil para todos os propósitos da revolta. Por se rebelar contra tudo ele perdeu seu direito de rebelar-se contra qualquer coisa."

G.K. CHESTERTON, Orthodoxy, pags.46/47 (tradução própria)

O que o ensaísta e escritor britânico G.K. Chesterton denuncia aqui é a impossibilidade de um revolucionário moderno defender realmente a revolução a partir de qualquer ponto de vista ético minimamente válido. E isso é simples de se entender, uma vez que entre suas idéias está a relatividade desses mesmos valores, considerados como mera fachada ideológica usada pelas classes dominantes para a opressão das classes dominadas.

Se realmente os valores nada mais são do que expressões e reflexos culturais diretos de uma infraestrutura econômica, então a partir de quais valores é possível defender uma transformação radical dessas mesmas relações e sobre qual ponto ético deverá girar a roda da revolução? Pois se o revolucionário é cético acerca da validade absoluta das afirmações e dos juízos morais, então não há motivos para que qualquer pretendida opressão seja interrompida ou para que qualquer injustiça seja reparada. Não há justiça a ser feita. Há mera facticidade, mero acaso. Uns oprimem e outros são oprimidos e é só.

Que motivo pode o revolucionário fornecer para a mudança dessa situação senão aquele do desejo meramente egoísta e tirânico de tomar ele mesmo o lugar do opressor? É claro que ele enfeitará sua retórica com palavras como liberdade e emancipação. Mas para ele elas não podem ser mais que palavras vazias, flatus voces como diriam os medievais. Chesterton não o aponta explicitamente, mas o nihilismo é a marca do revolucionário que ele critica. Ele luta por valor nenhum além de seu próprio egoísmo. Não reconhece universalidade alguma nos valores mais caros da humanidade. Ele os usa como meros fantoches para seus ardis enganadores.

Como Popper indicou em suas obras sobre política, a única moral que o revolucionário poderia defender é aquela do futuro, aquela que ele pretende conhecer "cientificamente" de antemão como a ética dos vencedores no inexorável processo histórico que conduzirá ao Éden terrestre. "A força que está por vir é o direito", diz o revoltado moderno. O revolucionário vive de "futurismo moral". Ele pretende que a moral que ele defende seja a moral que prevalecerá, como um fato científico, no fim da História. Mas como um mero "fato científico" pode fundamentar uma moral? E se uma pretensa lei histórica indicasse que a moral do futuro seria escravagista? Dever-se-ia assim mesmo defendê-la e lutar para instaurá-la?

Eis mais uma conseqüência da idéia de que valores são meras fachadas de interesses de classe. A moral futura não será nada além da expressão dos vencedores do inescapável processo histórico e não um valor absoluto e inegociável para a dignidade humana. O revolucionário floreia esse futuro com expressões morais e valores agradáveis e de ampla aceitação. E em nome desse futuro edênico pretensamente inexorável ele se permite toda e qualquer ação imoral aos olhos da sociedade vigente. Inverte-se a ordem natural das coisas. O presente é substituído e regido pelo futuro.

Nechaiev e Trotsky eram unânimes em dizer, que qualquer ato ou prática são legítimos, desde que contribuam para a revolução. Todo escrúpulo ou resistência moral à utilização de atos torpes é considerado como obstáculo que pode retardar o processo revolucionário e, por fim, é creditado à resistência fútil das classes dominantes ameaçadas pela revolução.

O revolucionário não pode se basear em valores para defender suas atividades. Na verdade, ele é a última pessoa que deveria ser ouvida quando se trata de moralidade, pois ninguém pode dar aquilo que não tem.

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