sexta-feira, 8 de julho de 2011

Newton teólogo II: o ariano e o Apocalipse



Isaac Newton acreditava que o Cristianismo havia sido corrompido no quarto século pela introdução de uma doutrina herética segundo a qual Jesus seria da mesma natureza que Deus Pai (homoousios) e que, com o Espírito Santo, eles formariam uma trindade consubstancial e indivisível.

A doutrina trinitária trouxera para o seio da Igreja o maior dos pecados: o culto idolátrico. Cristo, então, se tornara um deus a ser cultuado com as mesmas honra e adoração devidas ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Um pecado de tal magnitude, Newton considerava, teve e ainda teria consequências funestas e terríveis.

Não é de se admirrar que esse evento se tornasse a pedra angular da interpretação newtoniana das profecias bíblicas. O físico inglês se dedicara ao seu estudo desde a década de 1670 e continuou a escrever inúmeros manuscritos sobre esses assuntos - e os revisou constantemente - pelos quase cinquenta anos que se seguiram. Após sua morte, um único volume conheceu publicação: Observations upon the Prophecies of Daniel and the Apocalypse of St. John.

Richard Westfall informa - em sua magistral biografia Never at Rest - que Newton considerava que a essência da Bíblia estava mais na profecia da história humana do que na revelação de verdades supraracionais sobre a vida eterna e que não havia em toda a Escritura "livro mais recomendado e mais guardado pela Providência " que o Apocalipse joanino. (Westfall, p.319)

Com o intuito de perscrutar seus segredos, Newton recolheu toda a informação possível e disponível à sua época para esclarecer o sentido das linhas proféticas da Bíblia. Seu rigor matemático o levou a introduzir uma metodologia rígida na interpretação das profecias que intentava torná-la livre das fantasias alegóricas e pessoais e aproximá-la, o máximo possível, do ideal de uma ciência demonstrativa.

Entre suas regras estão: "atribuir um único sentido a uma passagem; manter um único sentido para as palavras dentro de uma visão; dar preferência ao sentido que estiver mais próximo do sentido literal da palavra, exceto onde uma alegoria é claramente exigida; aceitar o sentido que se segue mais naturalmente do uso e da propriedade da lingugem e do contexto; preferir interpretações que, sem deturpação, reduzam as coisas a uma maior simplicidade; as interpretações devem aplicar-se aos mais importantes eventos de uma era, e não aos obscuros." (Westfall, p. 326)

Newton não concentrou-se em relacionar as profecias aos eventos de sua época, mas a julgar a história humana a partir de seu evento mais importante: a Grande Apostasia, iniciada no quarto século pela introdução da doutrina herética e idolátrica da divindade de Cristo, o que desviou os cristãos do culto do único e verdadeiro Deus.

A interpretação newtoniana é complexa e intrincada, extendendo-se por inúmeros manuscritos constantemente reescritos. Embora seja impossível reproduzí-la aqui em todos os seus detalhes, é possível apontar, por exemplo, que Newton interpretava a abertura dos sete selos no Apocalipse como sucessivas eras na história da Igreja. O sétimo selo revela o início da Grande Apostasia, em 381, quando Atanásio, apoiado pelo imperador Teodósio, consegue vencer os debates conciliares e estabelecer a doutrina trinitária.

Ali começa a adoração da Besta e de sua Imagem, ou seja, da Igreja e do Império. Iniciam-se as depravações, deturpações bíblicas, cultos heréticos, profanos e pagãos, nascem as superstições mais baixas, como a adoração das "relíquias carcomidas de desprezíveis plebeus" (Westfall, p.323), entre outras tantas abominações. Por causa desses pecados, seis ondas de invasões bárbaras assolam o Império, correspondendo às seis trombetas que soam depois do sétimo selo.

A verdadeira Igreja era daqueles que não se prostituíram na idolatria, um resto, pouquíssimas pessoas escolhidas por Deus, livres de interesse ou do assentimento submisso à educação recebida ou às autoridades temporais e que se põem diligentemente na busca pela verdade. Entretanto, a restauração final do verdadeiro culto a Deus não se daria ainda na sua época, mas duzentos anos depois, quando se completassem os 1260 anos de apostasia, cujo ápice se encontrava na quarta trombeta, no ano de 607 D.C.

Quando soar a sétima trombeta, Cristo retornará e porá fim ao período de apostasia, ressuscitando os mortos, recompensando os bons e castigando os réprobos. Os reinos do mundo serão dissolvidos e substituídos pelo verdadeiro Reino de Cristo, que dará fim à falsa igreja, institucionalizada, secularizada e idólatra. Arius e seus seguidores terão, enfim, vencido a luta contra a Grande Apostasia.

Newton, portanto, não via o "fim do mundo" como um evento cataclísmico que encerraria a história humana, mas como um restabelecimento da verdadeira e única religião em todo o mundo. Sua postura traz em si uma tintura milenarista, na qual o Reino de Cristo se instaura neste mundo.

Não se pode negar que a interpretação newtoniana só é de utilidade para aquele que compartilha de sua premissa central, a idéia de que a Grande Apostasia repousa na adoção da doutrina trinitária no quarto século. Para a maioria dos cristãos, romanos, ortodoxos, anglicanos e boa parte dos protestantes clássicos, esse partis pris é absolutamente inaceitável. A adoção do arianismo determina não só sua interpretação das profecias contidas nas Escrituras, mas também sua concepção de Deus e da escatologia final.

As consequências de suas crenças, contudo, não se limitam ao plano teológico-confessional. Uma das mais amargas foi a necessidade de permanecer privadamente herético num ambiente majoritariamente ortodoxo. Em outros termos, Newton teve sempre que disfarçar suas idéias arianas para viver no mundo protestante anglicano. Suas iradas invectivas contra os partidários do trinitarismo tinham que ficar restritas aos seus manuscritos pessoais ou, no máximo, serem proferidas na solidão de seu quarto.

Ironicamente, Newton pertencia ao Trinity College em Cambridge. Para assumir seu cargo como professor lucasiano em 1669, ele teve jurar conformidade com a Igreja Anglicana. Em 1675 ele foi instado pelas regras da faculdade a se ordenar clérigo. A situação era dramática para Newton, pois de um lado estavam suas inegociáveis convicções arianas e, de outro, a perspectiva de ser defenestrado da faculdade e perder todo o apoio material e financeiro que tornavam possíveis suas pesquisas.

Salvou-o, quase no último momento, um decreto real que dispensava da ordenação os professores do Trinity College. Assim, o físico e matemático permaneceu ali como professor, negando secretamente a mesma Trindade sob cuja proteção sua faculdade se colocava.


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