quarta-feira, 15 de julho de 2015

Épicos, Pûranas e Tantra na tradição hindu



''Aqueles que refugiam-se em mim, ó Arjuna, ainda que de nascimento pecaminoso – mulheres, Vaisyas, até mesmo Sudras – também alcançam o mais alto objetivo.
Fixa tua mente em mim, sede meu devoto, sacrifica a mim e curva-te diante de mim reverentemente. Tendo disciplinado o eu dessa forma e tendo a mim como objetivo supremo, virás a mim somente.''

BHAGAVAD GITA,  IX, 26, 30-32,34


O professor Thomas J. Hopkins, em seu estudo The Hindu Religious Tradition, afirma que em torno do século III antes de Cristo, novos e importantes gêneros de literatura fizeram sua aparição no cenário espiritual hindu. Entre os mais importantes exemplos desses escritos estão os famosos épicos Mahabharatta e Ramayana.

Os dois textos tratam, basicamente, de histórias de guerreiros e reis, feitos heróicos e peripécias militares. Contudo, às narrativas iniciais foram adicionadas séries de textos de diversas origens e temas, tornando os épicos verdadeiros compêndios de literatura e de mitologia.

O mais importante e mais longo dos épicos, o Mahabharatta, conta com cerca de cem mil versos, o que o torna o maior poema da história humana, muitas vezes mais extenso que a Ilíada e a Odisséia combinadas. Sua forma final teria sido alcançada em torno do século II da era cristã.

A história, em suas linhas básicas, acompanha os conflitos entre duas casas guerreiras aparentadas: pandavas e kauravas. Em Kurukshetra acontece a grande batalha entre as duas casas, os kauravas liderados pelo rei cego Dhritarashtra e entre os pandavas, o grande Arjuna, auxiliado por seu auriga, o príncipe Krishna.

O Mahabharatta, segundo Hopkins, apesar de ser um épico Ksatryia, trouxe diversos elementos religiosos e influentes doutrinas espirituais à lume, tais como o papel mais preponderante das divindades que formariam o cerne o teísmo personalista hindu ainda em desenvolvimento, Shiva e Vishnu, como também a possibilidade de ação no mundo sem a geração de karma.

Rudra-Siva já aparece, como visto em posts anteriores, como o deus supremo no Svetasvatara Upanisad. O princípio de transferência que permitiu que um deus do panteão védico se identificasse com a face pessoal de Brahman privilegiou inicialmente a Shiva, o deus yogue e senhor das austeridades que vivia no topo do Himalaya com sua sakti Parvati.

No Mahabharatta, entretanto, é Vishnu que irá se tornar o centro da devoção teísta, bhakti, por meio do famoso Baghavad Gita, ''a canção do Senhor'', um dos livros do grande épico. Ele inicia-se com o príncipe Arjuna, sentado em seu carro de guerra diante das hostes kauravas em Kurukshetra.

Diante da perspectiva do massacre que irá se seguir, o qual implicará na morte de seus parentes, Arjuna fraqueja. Ele não quer lutar. A seu auriga, o príncipe Krishna, um avatar de Vishnu, Arjuna confessa que não deseja matar seus parentes e que não quer tomar parte naqueles eventos desastrosos.

Declara que irá se deixar matar por seus inimigos, sem oferecer qualquer resistência, recusando-se a matar quem quer que fosse. Krishna responde ao príncipe que é seu dharma ir à guerra e que, se ele está tão preocupado com seus parentes, é esse abatimento e esse desejo de abster-se da luta que lançarão vergonha sobre sua família.

Arjuna insiste argumentando que se, afinal, matar é errado e traz um karma desfavorável ao homem, por qual razão ele deveria dedicar-se a cumprir seu dharma se este implica na morte de outrem? A longa resposta de Krishna, que perfaz o resto da extensão do livro, faz uso de duas importantes doutrinas: o karma-yoga e o bhakti-yoga

O antigo ideal da libertação através do conhecimento, jnana-yoga, ainda é louvado, mantendo-se assim a ortodoxia tradicional. Contudo, a salvação vem da devoção a Deus, o bhakti-yoga. A devoção a Krishna é um caminho inédito de salvação aberto a todos os estratos da sociedade – mulheres, homens, sudras, castas superiores, puros, retos, impuros e desviados.

As formas anteriores de salvação não são renegadas, mas ao lado delas o Bhagavad Gita oferece o que é declarado como a melhor via, a mais fácil e mais aberta a todos os que se juntarão em devoção ao Senhor. A verdadeira renúncia é o karma-yoga, a renúncia aos frutos da ação. E esta está intimamente ligada ao bhakti-yoga, uma vez que o que aquilo que se renuncia é entregue ao Senhor.

O que importa é a devoção com a qual o dharma é cumprido e não o seu mero cumprimento. O verdadeiro renunciante é aquele que ao cumprir seus deveres dhármicos, entrega ao Senhor Krishna todos os frutos de suas ações em profunda e total devoção a Ele.

Mas os épicos não são os únicos escritos importantes que floresceram na tradição espiritual hindu posterior. O desenvolvimento do teísmo personalista, que já se encontra no Svetasvatara Upanisad e no Bhagavad Gita, toma maior impulso através de um conjunto de escritos conhecidos como Pûranas (Antigos) produzidos na época das versões finais dos épicos.

Tais escritos, como os épicos, eram coleções de materiais em versos transmitidas fora das escolas védicas. O propósito desses textos era contar sobre os tempos antigos e, por isso, continham informações sobre cinco tópicos principais: a criação do universo, a recriação cíclica do universo,a genealogia dos deuses e dos sábios, as eras do mundo e seus governantes e a genealogia dos grandes reis.

O bojo de todos os Pûranas é produto dos desenvolvimentos teístas durante o primeiro milênio de nossa era. Como o repositório primário dos novos ensinamentos religiosos, os Pûranas se tornaram as principais escrituras do teísmo hindu. São tais textos, muito mais diretamente que os Vedas, que determinam a maioria do pensamento e da prática hindu até o presente.

Uma das mais importantes e mais famosas doutrinas dos Pûranas é o do ciclo cósmico dos quatro Yugas: Satya-Yuga, Treta-Yuga, Dvapara-YugaKali-Yuga. Cada Yuga é uma era dentro do contínuo processo de afastamento da fonte original.

Mais tarde, as novas seitas vaishnavas e shaivistas, adoradores de Vishnu e Shiva respectivamente, por volta do século V D.C., começaram a produzir textos rituais conhecidos como Agamas. É em tais escritos que aparecem pela primeira vez princípios e práticas de Tantra.

Tantra é um termo elusivo e de diversos significados. Hopkins, contudo, crê ser possível definí-lo como um conjunto de doutrinas não-védicas que enfatizam a existência no homem de uma série de poderes divinos dormentes que poderiam ser ativados e experienciados por meio de procedimentos rituais específicos.

O homem seria um microcosmo do Universo e conteria em si mesmo todas as realidades cósmicas. É somente por meio da prática, sadhana, que o homem pode ativar tais poderes e transformar o corpo humano em um corpo cósmico.

Os tântricos adoram a Devi em todas as suas formas, Durga, Camundi, Kali, etc. A deusa é sempre a Sakti, o poder feminino e criador de tudo, o complemento ativo do deus supremo que é sempre a inteligência passiva.

Ela é Maya, o poder mágico da criação e da ilusão, a manifestação feminina de Brahman, a Divina Mãe, a criadora e destruidora deste mundo, a força divina em ação. Os seguidores da Sakti são conhecidos como Saktas. As doutrinas do saktismo são eminentemente tântricas.

Segundo seus adeptos, o Tantra é a religião para o Kali-Yuga, quando a disciplina do homem é fraca e as vias espirituais tradicionais são ineficazes ou inadequadas. Advoga-se, então, não a negação ou a supressão das qualidades naturais - incluindo aí os impulsos sexuais - mas seu uso como meios rituais.

Todavia, certos ritos tântricos oferecem riscos e não são recomendados ou permitidos a todo e qualquer devoto. A ativação dos cakras por meio da Kundalini, a mais avançada forma de sadhana tântrica, por exemplo, é reservada para aqueles já muito purificados, os Dvyas, devotos nos quais predomina a guna Sattva

Para os Viras, nos quais predomina a guna Rajas, a sadhana adequada é a Cakra-puja, que compõe-se do uso dos cinco elementos proibidos pela tradição espiritual ortodoxa: vinho, carne, peixe, grão tostado e intercurso sexual. A outra classe de homens mais inferiores, Pasu, está proibida de praticar seja a Kundalini, seja a Cakra-puja, pois tais sadhanas seriam mortais para os despreparados.

O Pasu deve purificar-se pelos meios naturais de abstenção, ascese, disciplina e devoção total à Deusa na forma que lhe agradar. Por essa via, ele pode alcançar uma consciência profunda de Sua presença dentro de si mesmo.

Hopkins assevera que esse cenário espiritual ainda conhecerá desenvolvimentos ulteriores importantes, mas que, em essência, serão essas as diversas configurações religiosas que formarão o mosaico do hinduísmo até os dias de hoje.

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