domingo, 28 de junho de 2015

Hume, ceticismo, mundo externo e vida comum




Na Seção XII da Investigação Acerca do Entendimento Humano, intitulada Da Filosofia Acadêmica ou Cética, Hume leva a cabo uma reflexão acerca do ceticismo, encerrando seu livro. Nela o filósofo declara que ninguém jamais alguma vez encontrou alguém desprovido de opiniões e princípios sobre temas referentes à ação ou à especulação. Assim ele se refere ao cético pirrônico, numa interpretação segundo a qual o pirronismo propugnaria a suspensão universal do juízo.

Ora, segundo Hume, há um ceticismo antecedente, o qual afirma que se deve duvidar universalmente do conjunto de nossas opiniões e princípios anteriores para que se possa encontrar princípios evidentes por si mesmos, idéias claras e distintas, dos quais se possam deduzir verdades através do simples raciocínio. 

Embora o filósofo escocês duvide da possibilidade da dúvida universal, da existência e da utilidade de princípios evidentes por si mesmos (como se daria a passagem do intuitivo para o discursivo?), ele considera que a prescrição de um ceticismo como atitude prévia à investigação filosófica é salutar e útil.

Entretanto, há um ceticismo que é conseqüente à investigação filosófica, no qual se chega à conclusão de que todo o entendimento é falho e falso, derivando daí a doutrina de que não se pode alcançar princípios seguros e verdadeiros, devendo-se portanto suspender o juízo universalmente. Hume admite que a maioria dos argumentos desses céticos extremados é irrefutável e passa, a seguir, a examinar alguns deles.

O filósofo inicia seu exame com o argumento cético acerca da existência do mundo exterior que é considerado por muitos autores contemporâneos como o problema central e distintivo do ceticismo moderno. 

Segundo Hume, impelidos pelo instinto, os homens comuns e os animais tomam como certa a existência do mundo exterior que continuaria existindo ainda que eles não mais estivessem no mundo. Assim, uma cadeira permaneceria invariável na existência ainda que ninguém a tomasse como percebida. Contudo, como se pode garantir tal coisa se tudo o que temos são percepções na mente?

Mesmo que digamos filosoficamente que o que temos são percepções causadas por objetos externos, as dificuldades não são solucionadas. Como se pode provar tal relação causal? Poderia alguém objetar que o que causa as percepções não são objetos externos mas um espirito desconhecido ou uma causa ainda mais desconhecida. 

A suposta conexão entre as percepções e os objetos externos seria uma questão de fato e, portanto, objeto da experiência. Mas esta não tem presente a si nada além de percepções, sendo a presumida conexão totalmente desconhecida. Apelar para Deus seria tolice, pois se o mundo exterior está em questão, não se poderia encontrar argumentos para defender sua existência.

O resultado a que se chega com a exposição de tais argumentos é o de que a opinião fundada no instinto é irracional e que a opinião fundada na filosofia é inconclusiva e sem poder de convencimento. Encontramo-nos diante de uma diaphonia, ou seja, não há como decidir entre as duas posições. De um lado temos um instinto irracional que não resiste a um questionamento filosófico mínimo, e de outro temos uma resposta filosófica que não convence. 

Devemos então aplicar aqui a epoché (suspensão) cética? Mas aplicar a suspensão do juízo acerca da existência do mundo externo tornaria impossível a vida cotidiana. A certeza indiscutível da existência do mundo é uma das bases principais da conservação dos seres vivos em geral e do homem em particular.

Da mesma forma, as dúvidas céticas acerca do entendimento levam à uma diaphonia. De um lado se tem uma tendência mecânica injustificada racionalmente - o hábito - e do outro temos uma tentativa de inferência racional que não se sustenta. Se falhamos em justificar racionalmente a indução e o hábito se revela como um instinto irracional, então não deveríamos suspender o juízo acerca de nossos raciocínios baseados na experiência? Contudo, a epoché nesse caso não levaria à inação e à morte?

Hume responde asseverando que as ocupações e necessidades da vida diária dissipam as dúvidas céticas. Os princípios são vencidos pela natureza. Ninguém jamais cairá na inação por conta da validade irrefutável das críticas do ceticismo. As dúvidas partirão no momento mesmo em que se apresentar para o homem uma única necessidade básica para sua conservação.

“Mas, uma vez que os céticos abandonam as sombras e se defrontam com os mais poderosos princípios da nossa natureza – decorrentes da presença dos objetos reais – que movem nossas ações e sentimentos, seus princípios desvanecem como fumaça e equiparam o mais resoluto cético ao mesmo nível dos outros mortais.” 

Hume é um cético que reconhece que as dúvidas do ceticismo extremo, embora irrefutáveis, não conseguiriam sobrepor-se à natureza instintiva do homem. Em outros termos, o filósofo escocês é cético com relação ao próprio ceticismo. Assim, as dúvidas céticas revelariam os limites de nosso entendimento bem como os limites do próprio ceticismo. 

Dessa forma, Hume apresenta o que ele chama de ceticismo moderado ou acadêmico. O primeiro aspecto deste se revela na humildade e na consciência das limitações intrínsecas ao entendimento. Os homens em geral são dogmáticos e detestam a dúvida, aferrando-se às suas opiniões e sendo intolerantes com as alheias. 

A simples consciência da fragilidade de nosso entendimento quebraria em tais dogmáticos sua pretensiosa segurança e os faria hesitar na sua obstinação. Na verdade, o sábio é aquele que desconfia de seus próprios saberes e é consciente de que o que conquistou é pouco frente às complexidades da natureza.

O outro aspecto do cético moderado, que advém das críticas pirrônicas, é limitar as investigações aos objetos que mais se adaptam à capacidade limitada do entendimento humano. Embora a imaginação tenha a tendência a se perder naquilo que é remoto e extraordinário, deve-se trazê-la de volta à vida cotidiana através do ceticismo moderado. 

Devemos nos ater aos assuntos da prática e experiência cotidianas e para chegarmos a tal decisão,“nada pode ser mais útil do que nos convencer de vez da força da dúvida pirrônica e da impossibilidade de que algo pode libertar-nos dela, exceto o forte poder do instinto natural.”

Hume se coloca como o cético moderado e defende um conhecimento que se circunscreva aos limites estreitos de nosso entendimento, ao invés de voar nas alturas das especulações metafísicas. Circunscrevermo-nos aos limites de nosso entendimento nada mais é do que nos limitar à vida cotidiana.

O medo de que as dúvidas céticas pudessem levar à inação e o conseqüente problema de se insular a vida prática da vida filosófica, não nascem na filosofia de Hume. As dúvidas céticas mostram os limites e as incertezas de nossa racionalidade ao mesmo tempo em que revelam sua própria fragilidade diante dos instintos naturais.

Evidentemente a interpretação de Hume do pirronismo é controversa. Ele atribui aos pirrônicos um dogmatismo negativo na doutrina de que se deve suspender universalmente o juízo. De fato, os pirrônicos não pensavam assim. Como Jonathan Barnes apontou, o pirrônico podia ter crenças, desde que não fossem dogmáticas, ou seja, que não fossem afirmações categóricas com respeito ao mundo, mas simples impressões. 

Além disso, a epoché tem seu alcance determinado por questões que causem inquietação ao indivíduo em particular. Somente a estas questões, não à todas, se aplica a epoché cética. O alcance da suspensão, com o objetivo de levá-lo à ataraxia (imperturbabilidade) será determinado por aquilo que perturba o indivíduo.

Uma vez afastado o perigo da inação e do insulamento e demarcado os limites da investigação humana, quais serão, para Hume, os conhecimentos ao alcance do homem? Serão aqueles já citados anteriormente: as relações de idéias e as questões de fato

As primeiras tratam das relações de quantidade e número, sendo passíveis de prova e de demonstração. As últimas tratam de questões empíricas e se fundam na relação de causa e efeito e somente podem ser decididas pela experiência (o empirismo será uma metodização da vida cotidiana). Quaisquer pretensões ao conhecimento que não se encaixem nas duas categorias acima citadas serão rejeitadas como sofismas e ilusões.


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