terça-feira, 28 de julho de 2015

"Os Três Estigmas de Palmer Eldritch" e a busca pelo divino



" 'God,' Eldritch said, 'promises eternal life. I can deliver it' "

PHILIP K. DICK, The Three Stigmata of Palmer Eldritch

"Os Três Estigmas de Palmer Eldritch" (1965) de Philip K. Dick apresenta temas recorrentes da obra do escritor americano: ilusão, realidade, drogas, futuro distópico, a difícil relação amorosa entre homem e mulher, religião, comunhão humana, etc.

A trama do livro é relativamente simples. Em um futuro indeterminado, a Terra tornou-se praticamente inabitável por causa do intenso calor. A ONU, com o fim de preservar a raça humana, seleciona compulsoriamente homens e mulheres para serem colonos agrícolas vitalícios em Marte. 

O tédio e o desânimo são o quinhão diário dos colonos em um ambiente hostil e inóspito. Para que a vida seja minimamente suportável, a ONU faz vista grossa para a venda ilegal de uma droga alucinógena chamada sugestivamente de Can-D. Trata-se de uma "droga de tradução" utilizada em grupo cujo efeito é criar uma ilusão conjunta e partilhada (a "tradução") onde os usuários experimentam uma espécie de fusão de suas personalidades.

A alucinação comum não é livre e tem como base o uso de cenários miniaturizados que imitam situações da Terra. Os usuários, por assim dizer, transportam-se para o ambiente em miniatura e assumem as identidades dos bonecos como se fossem reais. Aparentemente, diversos usuários podem, por assim dizer, "habitar" o mesmo boneco.

O tema da fusão ou comunhão de pessoas através de meios artificiais está presente também em uma obra posterior de Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968). Nela, através de um aparelho, os usuários identificavam-se com Mercer, um velho subindo um morro enquanto era alvejado por pedras. Em The Three Stigmata, a droga é o meio pelo qual essa comunicação profunda que ultrapassa os limites intrínsecos da individualidade humana é alcançada.

Como era de se esperar, a venda ilegal de Can-D é um grande negócio explorado secretamente por um empresário terráqueo (Leo Bulero). Ocorre que a situação sofre uma mudança dramática quando um viajante interestelar, Palmer Eldritch, traz consigo de sua longa viagem à Prox uma nova e mais potente droga, Chew-Z. 

O que diferenciaria Chew-Z de sua concorrente é que, aparentemente, o que ela produz não é uma ilusão e sim algo real. Em tese, ela facultaria a seu usuário a capacidade de criar uma realidade alternativa na qual tudo o que viesse a existir seria uma projeção da sua vontade. Semelhante à uma nova encarnação, cada um poderia tornar-se o que quisesse: homem, mulher, rico, pobre, novo, velho, animal, vegetal, inanimado, etc. 

A substância apresentada no livro de Philip K. Dick promete algo que vai além do desejo comum da geração que se alimentou de The Doors of Perception (1954) de Aldous Huxley: a droga poderia não somente dar acesso a dimensões da realidade ocultas aos sentidos normais, mas também moldar o mundo segundo a escolha de seu usuário. 

O controle da realidade é o centro da trama. Isso é Chew-Z (choose), a droga alienígena trazida à Terra por Palmer Eldritch: escolha livre de um mundo novo - não-ilusório -, real, uma "reencarnação", obedecendo aos desejos do usuário. Dito de outro modo, a droga dá controle sobre a realidade, não se restringe a criar uma ilusão subjetiva. O limite intrínseco da droga comum pode ser ultrapassado. A criação solipsista de mundos deve dar lugar à manipulação do próprio tecido da realidade, tema que reaparecerá em Flow My Tears, The Policeman Said.

Todavia, Palmer Eldritch é o malin génie de Dick. Ocultamente, ele é capaz de controlar os universos de quem faz uso da droga. Ele ameaça a  todos com a possibilidade de um mundo alternativo, criado e controlado por ele. Como o demônio de Descartes, ele manipula os mundos criados e pode manter cativo seus usuários. Aqueles que tomam a droga de Eldritch nunca sabem ao certo se o que experimentam é real ou não, se o efeito da mesma já passou ou se ainda está ativa em seus sistemas.

Desse modo, Eldritch é onipotente, onisciente e onipresente nos universos artificiais que controla. No fundo, ele é uma paródia de Deus. Não por coincidência, o livro é permeado por uma linguagem de origem religiosa, o que antecipa as experiências místicas sui generis pelas quais o próprio Philip K. Dick iria passar. 

Sob esse prisma, seria justo interpretar Palmer Eldritch também como uma imagem do Anticristo ou de Satanás. Deus promete a imortalidade. Nós cumprimos a promessa, é o lema da empresa de Eldritch. Como Satã, ele caiu na Terra vindo dos céus. Como o tentador, promete aos homens: sereis como deuses. Como o Anticristo, realiza portentos para enganar e transmitir a cada homem a "marca da Besta".

A sua marca, por sinal, são os estigmas que impõe a todos os que tomam Chew-Z. Na história do cristianismo, diversos santos, após um encontro sobrenatural com Deus, receberam em seus corpos as marcas da crucificação de Cristo, as chagas dos pregos nas mãos e a chaga da lança. O caso mais famoso se deu com o santo medieval Francisco de Assis, no século XIII, após a visão de um serafim crucificado.

Eldritch tem o braço direito mecânico, dentes metálicos e olhos artificiais. Todos aqueles que usam Chew-Z , sua Eucaristia profana, o sacramento pelo qual torna-se presente em todos os usuários através da comunhão, trazem no corpo seus estigmas. Tal qual São Francisco, após sua experiência sobrenatural, eles carregam as marcas do Salvador.

A salvação é a promessa de um mundo melhor aos expulsos de seu planeta. O paralelo com a Queda é explícito. Os homens erraram, pecaram, destruíram seu planeta, a Terra, e foram expulsos para o exílio em Marte, como Adão e Eva expulsos do Paraíso. O salvador apresenta-se para oferecer-lhes um retorno ao mundo edênico. Mas o que ele oferta é, literalmente, un paradis artifficiel.

A mortalidade reveste-se de imortalidade, dizem as epístolas paulinas. Eldritch promete um novo corpo, imperecível e imortal aqui e agora. Até mesmo o tempo passa diferente para o usuário de Chew-Z. Dias e séculos em seus universos ilusórios significam segundos ou minutos no tempo do mundo real.

Eldritch é tudo em todos nesses universos. Ubiquidade, atributo especificamente divino e um tema que seria explorado em outro livro de Philip K. Dick, Ubik. Todos os usuários trazem as suas marcas e, de certo modo, são Eldritch. Ele é a essência por trás da aparência e a Chew-Z opera a transubstanciação química.

Ao fim, torna-se claro que Eldritch não é mais sequer humano, mas um receptáculo vazio de uma entidade que dele se utilizou para chegar à Terra. Como um possesso, seu corpo foi tomado por uma inteligência de uma outra ordem que o controla a seu bel prazer. E esta, longe de ser Deus, busca simplesmente sobreviver, reproduzir-se naqueles que infecta e, inclusive, mudar de carcaça humana.

O livro de Philip K. Dick, certamente um de seus mais ricos em temas e intuições, foi escrito em uma época em que o autor fazia uso constante de substâncias como o LSD e parece indicar uma busca do divino por meios químicos ou artificiais. Por outro lado, a figura de Eldritch, um deus ambíguo e demiúrgico, exibe tintas gnósticas, o que anteciparia temas que seriam depois desenvolvidos no final da carreira de Dick, sob impacto de suas heterodoxas experiências químico-religiosas, na inacabada trilogia iniciada em Valis.

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