"O ser existente é aquele que existe fora de suas causas, que tem real atualidade, que está no exercício pleno de si mesmo, na sua atualidade e na sua potencialidade. É, portanto, singular já que nada pode ser termo de ação das causas, ser capaz de existência, senão o que é singular. Portanto, o indivíduo é um ente que não pode, pela mesma razão, ser dividido em muitos."
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 81
Os temas do universal, da abstração e da contração tratados por Mário Ferreira dos Santos no capítulo XI conduziram à exposição das posições fundamentais que caracterizam o realismo moderado*. O problema que permanece é saber se há algum modo de existência dos universais fora dos indivíduos que os instanciam concretamente. A resposta parece ser negativa se assumimos que a existência pertence somente aos singulares, a este ente, hic et nunc, irrepetível, e que exerce sua própria natureza independentemente dos outros seres.
Pedro é um indivíduo humano. Enquanto indivíduo, ele é uma possibilidade irrepetível que se atualizou, e que vai se esgotar tão logo tenha se extinguido. Enquanto humano, ele compartilha com João a humanidade, a unidade ontológica que constitui essencialmente os seres humanos, uma possibilidade repetível indefinidamente nos indivíduos. Quando nosso intelecto capta essa unidade, tem-se o universal, o esquema eidético-noético que pode ser predicado de todos os humanos.
O universal, portanto, não existe no sentido em que Pedro ou João existem. É certo que os indivíduos possuem as propriedades essenciais de sua espécie, e é certo também que a espécie jamais existe como um ente singular. A forma eidética da humanidade não é, e nem pode ser, um mero nada. Então, alguma realidade ela deve possuir antes da existência dos indivíduos que a instanciam no mundo. Caso contrário, tudo seria reduzido a singularidades.
Os singulares não são compreendidos a não ser pelas características que eles compartilham com outros singulares. Não há, e nem pode haver, uma ciência de Pedro, uma "Pedrologia", pois não há uma "pedreidade" que seja compartilhável por outros seres. Pedro é diferente de qualquer outro humano, e este Pedro é diferente daquele Pedro. A singularidade de Pedro é indizível em termos gerais.
Ora, se todos os seres fossem absolutamente singulares, como queriam os nominalistas, seria impossível haver qualquer pensamento teórico, filosófico ou científico, como nos casos da Lógica, da Matemática, da Ontologia e da Matese. Tudo seria singularizado ao ponto que estaria confutada de antemão qualquer atribuição de um mesmo nome ou conceito a mais de um singular. A própria linguagem estaria impossibilitada, já que sempre nos referimos a características comuns aos entes.
Não obstante, é igualmente impossível negar que os seres exibem semelhanças, e que estão estruturados segundo determinadas formas, tipos ou espécies. Captamos noeticamente esses esquemas eidéticos fundamentais nas coisas, e é isso que permite que compreendamos o mundo à nossa volta. Assim, se por um lado não conseguimos atribuir aos universais uma existência individual, por outro temos de admitir alguma realidade para o esquema eidético, que não pode ser um absoluto nada.
O universal, na qualidade de esquema eidético-noético, é um ente de razão, e existe somente no intelecto. Fosse exclusivamente isso, não passaria de uma criação de nosso espírito. Todavia, possui fundamento na coisa, dado que reproduz um eidos compartilhado por uma determinada espécie ou tipo de seres. Então, há uma realidade que antecede e fundamenta ontologicamente a própria existência dos singulares. Onde se dá a realidade dos universais? Na mente divina, responderam alguns filósofos. Caso contrário, o nada seria a sua origem.
"A humanidade só existe enquanto existe uma humanidade individual (ex sistere, dar-se fora de suas causas). Sem a humanidade individual, ela seria aptitudinalmente uma forma em uma mente, já que seria impossível ser absolutamente nada. Necessariamente, há uma mente que antecede à do homem, porque se a humanidade há, ela não era absolutamente nada, mas algo que antecedia à do homem, já que este começou." (p.75)
O ente concreto, embora seja incomunicável naquilo que é singular, em alguma medida tem de se comunicar como parte de um Todo, a exemplo dos membros de um ser vivo. O aspecto afirmativo dessa incomunicabilidade é a sua singularidade, ele é este ente e não aquele outro. O aspecto negativo é que ao ser este ente, ele não pode ser aquele outro. Mário Ferreira observa que a incomunicabilidade não pode ser o princípio de individuação, isto é, aquilo pelo qual algo se torna um ente individual.
Ser incomunicável é uma propriedade do indivíduo que se fundamenta no aspecto afirmativo da singularidade. Não é a incomunicabilidade que torna algo um indivíduo. É o indivíduo que por ser singular não é comunicável. Pedro é incomunicável porque é este ente, não é este ente porque é incomunicável. A individuação é positiva, põe algo na realidade, constitui a natureza de algo. Portanto, seu princípio não pode ser uma negação como a incomunicabilidade. A incapacidade de ser comunicável é o outro lado do fato positivo fundamental de ser um indivíduo. A afirmação precede ontologicamente a negação.
Além da incomunicabilidade, o indivíduo se caracteriza pela unidade (é um Todo), pela indivisibilidade (deixa de existir se for dividido), pela distinguibilidade (distinto de todo e qualquer outro ente) e pela irredutibilidade (não pode ser identificado à sua espécie e nem ao seu gênero). Pedro é um indivíduo que se distingue de João, e que compartilha da mesma humanidade de João sem ser idêntico a ela. Pedro é um synolon (σύνολον), um Todo informado e indiviso, concreto, com uma estrutura hilética e uma estrutura eidética, no qual se enraízam todas as suas potencialidades, as que já foram atualizadas, as que serão e as que não serão atualizadas jamais.
Alguns tomistas defendem que o princípio de individuação é a materia signata quantitate, isto é, a matéria assinalada pela quantidade. Mário Ferreira discorda dessa tese, e levanta dúvidas sobre se Tomás de Aquino a teria realmente defendido. De todo modo, ele diz, a matéria não pode individuar porque a quantidade é um acidente necessário das coisas já informadas, é um fator cooperante da individuação. A matéria assinalada pela quantidade fornece às coisas materiais as suas medidas.
Que a quantidade seja necessária à individuação não se discute. A pergunta é se ela é suficiente para individuar os entes. Pedro e João certamente são numericamente distintos. Pedro é um e João é um. Cada um deles possui suas medidas próprias: João é mais alto que Pedro, etc. Tais aspectos quantitativos, em que pese serem necessários, segundo Mário Ferreira, já seriam distintos em Pedro e em João por causa da individuação, e não o contrário.
Não é a quantidade enquanto tal que individua, pois a quantidade aqui (em Pedro) e a quantidade ali (em João) já se encontram individuadas. A quantidade é um acidente necessário do composto, e contribui para a individuação sem ser o seu princípio. O que individualiza é o composto. A matéria e a forma, consideradas ontologicamente, são fatores de universalidade, não individuam as coisas. Entretanto, quando consideradas ônticamente, ou seja, enquanto matéria e forma presentes neste composto (Pedro, por exemplo), são fatores cooperantes da individuação.
Na Tese 62 da Filosofia Concreta, Mário Ferreira explica que a aquilo por meio do qual uma coisa é singular, esta e não aquela, é a heceidade (haec, haecceitas), a unicidade que é incomunicável. As coisas têm em comum a unicidade formalmente, porém não a unicidade que singulariza. Os seres se determinam pelo gênero, pela espécie, pela individualidade e encontram sua última determinação na unicidade.
Em outros termos, o filósofo mostra que há uma contração na estrutura da realidade que vai do mais geral até o individual. O Ser é a generalidade mais universal possível, cabendo a todo e qualquer ente pelo mero fato de ser, sem determinar nada em seu conteúdo. Os seres encontram suas determinações, seus limites primários, no gênero ao qual pertencem (animal, por exemplo). E, dentro do gênero, são determinados pela espécie (racional), e na espécie são determinados pela unicidade que os torna indivíduos (Pedro).
A individualidade é a determinação última, e, por isso mesmo, é incomunicável. Não existe e nem jamais existirá outro Pedro a não ser este Pedro. Não existe uma "Pedreidade" a ser compartilhada por outros homens. João não pode ser Pedro e vice-versa. Isso demonstra a distinção entre o indivíduo e a sua essência. Pedro repete a humanidade, o arithmos que também é compartilhado com João, mas o seu esquema concreto, que torna Pedro este (haec), é seu arithmos individual e irrepetível. "Os seres ontologicamente (no logos do ente) se repetem, mas são ônticamente (como entes) únicos".
Na Tese 167 da Filosofia Concreta, é dito no mesmo espírito que a essência de uma singularidade distingue-se do seu quid (quididade, essência), e que a natureza de uma coisa individual é o conjunto de todas as leis e de sua heceidade, o arithmos de sua singularidade. Ao ser este (haec), a essência e a existência se identificam ônticamente sem que se identifiquem ontologicamente. O ato de existir de Pedro é a efetivação de um indivíduo possível (Pedro). Somente nesse sentido, uma essência individual se identifica com uma existência individual.
A sutileza consiste em encarar o indivíduo sob dois ângulos diferentes. Considerado ônticamente, no plano deste ente, a essência de Pedro é totalmente individualizada em Pedro, de tal modo que é possível falar de uma "essência individual" que pertence única e exclusivamente a Pedro. Assim, a essência de Pedro é ele mesmo existindo como Pedro. Considerado ontologicamente, a essência de Pedro não é idêntica a ele no sentido de que Pedro é um indivíduo que repete (ou imita) uma Forma, a humanidade, que é repetida igualmente por outros (João, Maria, Carlos, etc.).
O termo essência (ou o ser da coisa) adquire dois sentidos diversos, porém intimamente ligados. No primeiro, refere-se à Forma, ao esquema eidético, que é repetido nos indivíduos, e que fornece a eles os aspectos determinantes de sua espécie, do tipo de ser que eles são. No segundo, refere-se à individualidade, a este ente singular que é irrepetível e incomunicável, no qual a espécie está contraída, e da qual se distingue ônticamente, mas não ontologicamente.
Os dois modos são reais e válidos, não havendo contradição entre eles. Por um lado, o indivíduo só pode existir repetindo (sendo uma instância de) uma espécie. Pedro só existe como ser humano. Por outro lado, o ser humano (a humanidade) só pode existir nos indivíduos que exemplificam concretamente o que é o ser humano. Os seres humanos são sempre Pedro, Maria, Carlos, etc. A essência de Pedro corresponde, portanto, a esses dois sentidos. Convém distingui-los sem jamais separá-los absolutamente quando consideramos o indivíduo.
Retornando ao livro A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro sumariza sua tese afirmando que "cada coisa individualiza-se por si mesma, e não precisa de nenhum princípio de individuação, senão a sua própria entidade. (...) Não há princípio de individuação fora do próprio ser. A individuação de um ser começa no próprio ser, começa na sua individualidade. Não se pode colocar esta matéria de outro modo." (p. 84)
A matéria assinalada pela quantidade é um fator de individualidade, mas não pode o ser exclusivamente. Se há seres imateriais individuais (anjos, por exemplo), então a matéria somente contribui, por meio da distinção quantitativa, na individuação dos seres materiais. A individualidade de Deus não é material ou quantitativa, ela se segue de sua absoluta infinitude. Não pode haver outro que seja igualmente infinito, caso contrário haveria uma contradição. Sob essa ótica, Deus é o indivíduo perfeito.
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Capítulos anteriores de A Sabedoria da Unidade: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
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