sexta-feira, 27 de julho de 2018

Sócrates, religião grega, os oráculos e os deuses



"Você realmente pensa que é notável que Deus decida que é melhor para mim morrer agora? Não percebe que até o momento eu jamais concederia a qualquer um que ele tivesse vivido uma vida melhor que a minha? Isto é, nada poderia ser mais agradável do que saber que eu vivi minha vida inteira respeitando os deuses e agindo moralmente no trato com os homens."

SÓCRATES, segundo XENOFONTE, Apologia


Sócrates foi condenado no ano de 399 A.C. a beber cicuta após ser julgado culpado de três acusações: impiedade para com dos deuses da polis (no caso, Atenas), introdução de novos deuses (o famoso daimon socrático) e corrupção da juventude. A questão de se a condenação foi justa ou não é de difícil solução, pois os testemunhos acerca da vida do filósofo restringem-se à comédia de Aristófanes, um adversário, e aos relatos e diálogos escritos por dois de seus discípulos, Xenofonte e Platão.

Questão ainda mais espinhosa, embora relacionada à primeira, é a de saber, em meio a tudo o que seus alunos escreveram sobre o seu mestre, o que realmente pensava Sócrates e o que é adição de Platão ou de Xenofonte. Este último, além de diálogos socráticos, escreveu uma Apologia (defesa de Sócrates no tribunal ateniense) e um livro de memórias, onde testemunha ditos e feitos de seu professor.

Xenofonte era um aristocrata e militar ateniense, admirador de Esparta, que aventurou-se na Pérsia em 401 A.C. com os famosos Dez Mil (mercenários gregos a serviço de Ciro, o jovem), em uma tentativa frustrada de golpe contra o Grande Rei. O relato de como ele liderou esses soldados de Cunaxa, na Babilônia, até Trebizonde, às margens do Mar Negro, passando pelo território hostil do Império Persa e sempre acossado por inimigos, constitui seu fascinante livro Anabasis.

Ao defender seu mestre, Xenofonte enfatiza as qualidades morais de Sócrates, sua temperança, seu auto-controle, sua disciplina, sua piedade e sua honestidade. Em particular, ele relata como Sócrates era piedoso para com os deuses e como respeitava os oráculos e os videntes. Independente da acuidade do relato de Xenofonte, revela-se aí um traço importante da religiosidade grega.

Na sua Apologia, Xenofonte relata que Sócrates é arrogante diante do júri porque tem a certeza de que viveu a melhor das vidas, de respeito devido aos deuses e de abstenção de injustiças contra os homens, e de que os deuses o estão poupando das agruras e das mazelas da velhice. É o tempo certo (kairós) de morrer.

Sócrates reconhece a injustiça de sua condenação, mas a voz divina (daimon) que o guia o impede de formular uma defesa adequada, pois, qual melhor defesa pode haver do que uma vida inteira de retidão? Por outro lado, na vida do sábio, mesmo a injustiça torna-se um desfecho providencial para uma vida feliz. Em outros termos, há uma providência divina que arranjou as circunstâncias nas quais Sócrates, como realização e encerramento adequados de uma vida feliz e virtuosa, abandonará este mundo antes de sofrer a decadência e debilidades características da velhice.

O que, aos olhos de muitos de seus discípulos, pode parecer patente injustiça e infelicidade, Sócrates encara como manifestação do favor dos deuses que, além de prover o fim de sua existência no momento adequado, ainda concederam-no uma morte com o mínimo de desconforto. Se ele fosse inocentado e libertado, o que o esperaria seria a decadência e os sofrimentos da senilidade e, provavelmente, uma morte desconfortável e dolorosa.

Sócrates havia sempre sido visto cumprindo seus deveres religiosos nas festas e cultos cívicos e, quanto à acusação de introduzir novos deuses, relata Xenofonte, ele somente admitia, como qualquer outro grego, que os deuses falavam por meio de vozes, presságios, oráculos e videntes. E a evidência de que a piedade de Sócrates era verdadeira era que, quando um de seus alunos consultou o oráculo de Delfos sobre Sócrates, o deus respondeu que não havia ninguém mais livre, mais justo e mais prudente.

Na religião grega, como Walter Burkert assinala em seu Greek Religion, o vidente (mantis) nem sempre fala em um estado psíquico alterado (entheos, algo como"o deus dentro"), em ekstasis, durante o qual fala na qualidade de veículo dos deuses, como no caso da pythia (sacerdotisa) do oráculo (manteion) de Delfos ou das sacerdotisas do oráculo de Zeus em Dodona, embora a mensagem sempre seja de origem divina. O êxtase produz um comportamento anormal e fala estranha (a mania, loucura divina). A resposta da pythia, para ser compreendida pelo consultante do oráculo, necessitava de uma tradução para a fala comum, efetuada, em versos homéricos, pelo prophetes.

Particularmente antigo é o oráculo dos mortos (Nekromanteion) em Éfira. Constitui-se em um complexo quadrado com muros de alvenaria poligonal de três metros de largura dentro do qual há um corredor de acesso completamente escuro, onde há salas de incubação, de jantar, de purificação e de sacrifício cruento que, ao final de um labirinto de muitas portas, conduz à câmara central, abaixo da qual fica uma cripta abobadada que representa o mundo dos mortos.

Na ausência de escrituras reveladas, os sinais aparecem como uma forma proeminente de contato com a esfera do divino e parte importante da piedade comum. O vidente, então, diz Burkert, é o protótipo do sábio, pois cabe a ele interpretar os sinais e os presságios, como o vôo dos pássaros e o exame das vísceras de animais sacrificados.

Decisões de todo tipo eram submetidas aos oráculos e aos videntes, desde viagens até fundação de cidades. Curiosamente, decisões militares também eram tomadas a partir do exame das vísceras de vítimas sacrificadas, como atesta o piedoso Xenofonte que, no comando dos Dez Mil, no território hostil do império persa, decidia se iria ou não ao combate somente depois de consultar os videntes que acompanhavam seu exército.

Xenofonte, em seu livro de memórias, garante que Sócrates não somente era piedoso e acreditava nos deuses, como também defendia que aquilo que, nas questões humanas, não era passível de ser decidido ou previsto por meio da razão, deveria ser buscado nos videntes e nos oráculos. O general não sabe se assumir um comando será uma vantagem e nem o político sabe se tornar-se governante será o melhor para ele. Nesses casos, é preciso consultar os videntes.

Sócrates considerava superstição julgar que o resultado e as consequências das decisões estão completamente inseridos  no campo da previsão e do julgamento humanos, não havendo nada que fosse reservado ao divino. Não obstante, consultar os oráculos para assuntos perfeitamente inteligíveis pela mera mera razão humana também seria superstição.

Ademais, Xenofonte diz que Sócrates não dedicava-se à ciência natural, como os filósofos anteriores que buscavam conhecer as coisas divinas no Cosmos. Tais coisas seriam obviamente incognoscíveis e a multiplicidade de teorias conflitantes desses filósofos manifestaria justamente essa realidade. Ao contrário, Sócrates dedicava-se somente às questões humanas, aquelas que podem fazer o homem bom, como a natureza de cada virtude, do certo e do errado, do Estado e do governante.

Rogava somente aos deuses para que estes o concedessem o que é bom, pois só eles saberiam o que realmente é bom para os homens. Considerava que os sacrifícios pequenos advindos de recursos parcos eram tão valiosos quanto aqueles advindos de grandes recursos. Pois seria pouco adequado aos deuses tomarem mais gosto nos grandes sacrifícios do que nos pequenos.

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