segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XI - universal, abstração e contração)


"Deve-se distinguir o universal metafísico, um em muito, do universal lógico, um de muitos. O primeiro é predicado in essendo; o segundo é apenas in praedicando, atribuído ao ente. O universal é um em muitos, e de muitos. Esta definição desdobrada nos dá dois tipos de universal: universal metafísico, que é um em muitos, e o universal lógico, um de muitos."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 61

Mário Ferreira dos Santos analisa no capítulo XI de A Sabedoria da Unidade o tema do realismo moderado. A fim de compreendê-lo, em primeiro lugar, é preciso distinguir dois sentidos de universal, aquilo que está em muitos e aquilo que é de muitos. Se dizemos que João, Pedro e Maria são humanos, estamos atribuindo a universalidade de um conjunto essencial e permanente de características (a humanidade) a esses indivíduos. João, Pedro e Maria, a despeito de quaisquer diferenças individuais, são todos igualmente humanos.

Em um sentido, o universal está nesses indivíduos como sua constituição intrínseca, essencial e ontológica, isto é, como aquilo que define a sua natureza, o tipo de ser que eles são. Portanto, o universal corresponde aqui ao o que a própria coisa é. Ao identificarmos essa natureza comum presente em João, Pedro e Maria, concebemos no pensamento uma estrutura a que chamamos também de universal, e a atribuímos a João, Pedro e Maria como um predicado de muitos. 

A diferença é a mesma que distingue um esquema eidético de um esquema eidético-noético. O primeiro é ontológico, e constitui a própria coisa naquilo que ela é essencialmente. O segundo é uma captação pelo pensamento daquilo que é essencial na coisa. Sendo uma atitude mental que só se atualiza no intelecto, o universal que temos no pensamento não é idêntico ao universal que está nas coisas constituindo tornando-as o que elas são.

O universal de muitos, o esquema eidético-noético, só passa a existir no pensamento a partir do processo de abstração que permite separar mentalmente aquilo que pertence somente a este ou àquele indivíduo daquilo que pertence a todos enquanto membros de um mesmo tipo. Cumpre não esquecer que só é possível ao intelecto captar pela abstração e construir mentalmente o esquema eidético-noético do universal porque o universal já está nas coisas fundamentalmente.

O universal dado em nosso intelecto é uma tradução formal de uma realidade ontológica, e não o inverso. Não inventamos o universal a nosso bel-prazer e o impomos à realidade externa como se fôssemos os construtores do mundo. As coisas são o que são anteriormente a qualquer capacidade nossa de impor a elas o que quer que seja. O que fazemos é captar intelectualmente uma estrutura fundamental que nos antecede de muito.

Dito isso, não é possível negar que o universal que está nas coisas só aparece singularizado na realidade sensível. Ninguém jamais viu ou verá a humanidade andando na rua. Vemos João, Pedro e Maria andando na rua. Os singulares são o modo no qual o universal se manifesta na realidade. Não encontramos o ser humano em lugar algum. Encontramos somente humanos, ou mais precisamente, este ser humano ou aquele ser humano. 

O universal não entra na realidade como uma coisa aqui e agora, singularizada e individualizada. O universal é comparável a um parâmetro, a um conjunto estável de condições sob as quais algo pode vir ao mundo. Mário Ferreira não usa o termo, porém cremos ser admissível dizer que o universal é um condicionante (ou regra) que estabelece a forma segundo a qual algo pode entrar na realidade sensível. 

A consequência disso é que na realidade concreta não é possível separar o universal do singular a não ser pelo pensamento. João não pode existir separado de sua humanidade, o que não significa que ele seja idêntico à sua humanidade. Pedro e Maria são humanos também. A não ser que se queira negar à Maria e a Pedro a mesma humanidade de João, é preciso admitir que João não detém a humanidade como se fosse algo exclusivo dele. 

universal está singularizado neste indivíduo chamado João, e João não pode ser separado desse universal sem deixar de existir. O universal, contudo, não é um indivíduo e, portanto, não é uma coisa sensível e concreta. O singular expressa sensível e concretamente o universal. O universal constitui o tipo de ser que João é (ser humano), e João exemplifica individualmente o que é um ser humano. 

João não poderia ser João se não fosse humano, mas ser João não esgota o que é ser humano. Ninguém mais pôde, pode ou poderá ser João, este ser com tais e quais características individuais. Somente este João nasceu em tal data, em tal lugar, de tais pais, possui tal altura, gosta disso ou daquilo, etc. Esse conjunto de características reunidas em João é único e irrepetível

O indivíduo é uma possibilidade da realidade que se esgota tão logo seja realizada. Mas a desaparição de um indivíduo não significa a desaparição do universal. O universal, nesse sentido, é uma possibilidade inesgotável que se realiza em indivíduos que por natureza são possibilidades esgotáveis. Na realidade concreta, João não pode ser separado de sua humanidade sem deixar de existir, mas é perfeitamente possível separar intelectualmente João de sua humanidade, dado que João não esgota nele mesmo as possibilidades do ser humano.

Quando separamos pelo pensamento a humanidade de João, formamos o esquema eidético-noético de ser humano que pode ser predicado de muitos (Pedro, Maria, etc.), e que está efetiva e inseparavelmente presente em muitos (Pedro, Maria, etc.). Haveria uma inseparabilidade do universal no singular concreto, mas uma separabilidade formal no pensamento. Podemos pensar a humanidade separada de João, embora João não exista e nem possa existir separado da humanidade que constitui o seu ser.

Esse é um ponto crucial e fonte de muitos erros e de muitas confusões. Os universais não existem como indivíduos. Seria absurdo dizer que existe a humanidade ou o ser humano individualmente em algum lugar e em algum tempo, como uma coisa entre outras coisas. Individual e concretamente só existem os singulares, ou seja, este humano e aquele humano, João ou Pedro ou Maria, etc. Distinguimos pelo pensamento o universal que no singular está nele presente de modo inseparável.

A questão fulcral é que não podemos atribuir uma existência singular e individual ao universal somente pelo fato de conseguirmos separá-lo na nossa mente. A ilusão consiste em considerar que a humanidade teria de ser algo que existe de facto separadamente como uma coisa individual só pelo fato de podermos pensar na nossa mente a humanidade separadamente (deste ser concreto e singular chamado João). Tratar-se-ia, em outros termos, de um erro categorial, a atribuição imprópria das características de uma categoria da realidade à outra.

Se atribuíssemos existência separada à animalidade e à racionalidade, então nenhum ser humano (João, Pedro, Maria, etc.) jamais seria uma unidade real, pois a humanidade (animal racional) que o constitui seria uma composição de partes heterogêneas (animalidade e racionalidade) unidas de modo meramente acidental como as peças de um mecanismo juntadas de fora para dentro. Separamos mentalmente de modo estanque aquilo que na realidade concreta não é separável. Concretamente, João não se separa de sua humanidade. 

"O universal no indivíduo não se compõe com ele de nenhum desses modos, é nele o que ele é; não é possível dividir, realmente, um e outro, separar um e outro, só apenas noeticamente", diz Mário Ferreira. A realidade concreta é sempre uma contração do universal. O ente concreto, este homem hic et nunc, é integralmente João e humano, sem divisões ou separações. Nele está contraída a humanidade como a sua constituição fundamental. João é inteiramente humano, porém não é a humanidade enquanto eidos de todo e qualquer ser humano. 

Se, por um lado, a realidade concreta é uma contração do universal ao singular, por outro lado, a abstração, que nos permite conhecer os fundamentos das coisas concretas, é um processo que vai do singular ao universal. As coisas são instâncias ou exemplares de esquemas eidéticos que estão contraídos neles e que só podem aparecer na realidade concreta por meio dessas contrações. O intelecto humano, seguindo o caminho inverso, forma em si mesmo um esquema noético que corresponde ao esquema eidético presente nas coisas partindo justamente das contrações do universal que são os entes singulares.

O ser singular só pode ser compreendido pela inteligência na captação do universal que o constitui. Quando considerado na sua singularidade, ele é incompreensível, só pode ser conhecido intuitivamente e descrito parcialmente. Se compreendemos intelectualmente o que é João, então captamos e afirmamos a universalidade que o define: "João é humano". Ao fazê-lo, referimo-nos ao seu pertencimento essencial à espécie humana. Nada dizemos sobre João enquanto João.

Este João, hic et nunc, com todas as suas características individuais (idade, altura, gostos, vontades, ações, peso, nacionalidade, etc.) não pode ser definido por universais, quaisquer que eles sejam. É absolutamente verdade que João é humano e que essa é a sua definição enquanto humano. Mas essa mesma definição serve para todo e qualquer humano. João, naquilo que se refere à sua singularidade, que é irrepetível, não é compreensível pela inteligência que capta e constrói noeticamente universais.

O singular, considerado em sua singularidade, é objeto de intuição sensível, de experiência e de descrição parcial. Vemos João, ouvimos a sua voz, notamos a sua presença, descrevemos a sua aparência, conhecemos os seus gostos, testemunhamos as suas ações, sabemos de seu passado e de seus planos para o futuro, e assim por diante. Porém, jamais esgotamos todos os seus aspectos ou o definimos conceitualmente. 

Em suma, o realismo moderado consiste na afirmação tanto da presença fundamental do universal em muitos quanto da capacidade humana de captá-lo noeticamente e predicá-lo de muitos. Mário Ferreira considera que essa doutrina é certa e bem fundada apesar de algumas aporias ainda terem de ser respondidas por seus defensores. A questão que se levanta após as considerações feitas até aqui é se os universais possuem algum tipo de existência ante rem, ou seja, antes de se encontrarem nas coisas. 

No realismo moderado os universais são concebidos pelo pensamento sem serem meras criações, hipóteses ou invenções do espírito. Encarados sob aspecto do pensamento, os universais têm a existência noética do ente de razão com fundamento nas coisas (cum fundamento in re). Para saber qual tipo de existência os universais podem possuir para além do que diz o realismo moderado será necessário examinar o que é o ente, a entitas. Tal será feito nos capítulos seguintes. 
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