domingo, 29 de dezembro de 2024

Leibniz, Teodicéia e a defesa negativa dos mistérios divinos

"O mesmo se dá com os outros mistérios, sobre os quais os espíritos encontrarão sempre uma explicação suficiente para crer, mas nunca o tanto que é necessário para compreender. A nós é suficiente certo o que é (τί ἐστι), mas o como (tως) nos ultrapassa, e não nos é absolutamente necessário."

G. W. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, Discours de la conformité de la foi avec la raison, 56

O filósofo, matemático, físico e polímata alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) discute o clássico problema das relações entre a fé a e a razão no "Discurso de conformidade da fé com a razão", seção de sua famosa obra "Ensaios de Teodicéia", publicada em 1710. Ali é defendida a visão de que não há nenhuma incompatibilidade entre os conteúdos da revelação cristã e os ditames da razão humana, desde que bem compreendidos.

Leibniz compõe os ensaios da Teodicéia com o objetivo explícito de responder principalmente às questões acerca dessa matéria que foram levantadas pelo filósofo cético francês Pierre Bayle (1647-1706), autor do "Dictionnaire Historique et Critique". Conquanto não fosse um ateu, Bayle havia defendido a tese de que as objeções da razão às verdades da religião eram insolúveis. Alguma espécie de fideísmo era comum entre pensadores dos séculos XVI e XVII influenciados pelos escritos dos céticos pirrônicos gregos como Sextus Empiricus.*

Leibniz considera que a posição de Bayle é fruto de confusões conceituais que seriam dissipadas pelo esclarecimento dos âmbitos próprios da fé e da razão. Logo de início o filósofo argumenta que duas verdades não podem entrar em contradição. O objeto da fé é a verdade que Deus revelou de modo extraordinário, enquanto a razão é o encadeamento das verdades que o espírito humano atinge naturalmente sem a ajuda da luz da fé. Tem-se aí a definição da reta e verdadeira razão.

A tese leibniziana, em linhas gerais, repete a posição tradicional encontrada em pensadores escolásticos como Tomás de Aquino segundo a qual duas ordens de verdades não podem jamais entrar em contradição porque ambas têm origem em Deus. A razão humana pode conhecer com certeza uma série de verdades sobre Deus (a Sua existência, bondade, etc.) utilizando exclusivamente seus poderes naturais, enquanto outras verdades estão para além do seu alcance e necessitam do auxílio da Revelação divina nas Escrituras Sagradas (por exemplo, que Deus é uma trindade consubstancial). Havendo algo na fé que parece contrariar a razão, é sinal inequívoco de que um erro no raciocínio ou nas premissas foi cometido.**

"Consistindo no encadeamento das verdades", diz Leibniz, a razão tira conclusões mistas quando as verdades que encadeia são provenientes da experiência. Ela é pura e nua, distinta da experiência, quando as verdades são independentes dos sentidos. A fé, por seu turno, é comparável à experiência porque a Revelação está baseada no relato daqueles que presenciaram os milagres e na tradição digna de confiança, semelhante ao modo como fundamos nosso conhecimento da China na experiência dos que lá estiveram. Isso sem falar da ação sobrenatural do Espírito Santo que persuade e conduz as almas à fé sem que motivos sejam sempre necessários.

As verdades eternas da razão (metafísica, lógica, matemática geometria) são absolutamente necessárias, conhecidas a priori, e sua negação implica em contradição. As verdades positivas são aquelas que aprouve Deus impor à natureza, são conhecidas a posteriori, pela experiência, ou a priori pela consideração da conveniência, a razão pela qual Deus as escolheu em detrimento de outras igualmente possíveis. Essas verdades, embora não sendo necessárias no sentido geométrico, não são fruto do capricho, mas encontram o seu fundamento na escolha livre de Deus guiada pelo princípio do melhor.

Assim, a necessidade física está fundada numa necessidade moral. Consequentemente, a ordem da natureza, constituída pelas leis do movimento e por outras leis mais gerais, pode ser suspensa por Deus em atenção a razões superiores. É o que acontece nos milagres, quando Deus faz as coisas abandonarem seu curso costumeiro e apresentarem efeitos que sua natureza não comporta. Efeitos que são produzidos nelas graças àquilo que os escolásticos chamavam de potência obediencial.***

As verdades positivas são, portanto, contingentes, e negá-las não implica contradição, em que pese o fato de terem sido escolhidas por sua conformação ao princípio de conveniência. Convém que os mistérios divinos sejam contrários às aparências, mas não se encontrará nenhuma objeção a eles que seja uma demonstração rigorosa, fundada sobre princípios ou fatos inquestionáveis, e formada pelo encadeamento de verdades eternas, cuja conclusão certa e inquestionável comanda assentimento. 

Houvesse uma demonstração que contrariasse algum conteúdo da fé, então duas verdades entrariam em contradição. Mas as objeções que se apresentam usualmente contra a religião são calcadas na necessidade física ou moral, cujos objetos estão no âmbito daquilo que acontece ordinariamente e são fundados nas aparências. Além disso, nas discussões acerca desses temas, confunde-se amiúde os sentidos de explicar, de compreender, de provar e de sustentar. 

Os mistérios divinos podem ser explicados naquilo que é necessário para que se creia neles, sem que seja possível compreendê-los. É o que acontece na física quando certas propriedades sensíveis podem ser até certo ponto explicadas sem que sejam compreendidas. Tampouco há como provar pela razão pura, a priori, os mistérios da fé. Existem, contudo, motivos de credibilidade da fé que fornecem uma certeza moral que é capaz de ser sustentada contra objeções que não sejam demonstrativas.

Dito de outro modo, os mistérios da fé não são objeto de prova racional e nem de compreensão, embora possam ser explicados o suficiente para suscitar uma certeza moral capaz de sustentar-se contra o ataque de objeções que não sejam demonstrações a priori. Os mistérios nunca vão contra a razão, pois não contradizem as verdades eternas, mas estão acima da razão, são contrários às aparências, ao que costumeiramente testemunhamos na experiência.

As distinções realizadas acima fornecem Leibniz com os instrumentos necessários para responder a tese de Pierre Bayle de que os mistérios da fé são vulneráveis a objeções insolúveis. O que significa insolúveis senão que essas objeções seriam demonstrativas? Se o fossem, de fato os mistérios não conseguiriam sustentar-se contra um argumento que tivesse forma lógica válida e premissas reconhecidamente verdadeiras ou inferidas corretamente de premissas reconhecidamente verdadeiras. Contrariar uma demonstração seria afirmar que duas contraditórias são verdadeiras ao mesmo tempo, o que é absurdo.

O que Leibniz argumenta é que no caso de um silogismo disjuntivo no qual uma alternativa é a negação da outra, a alternativa que for verdadeira necessariamente demonstra que a outra é falsa. Se temos a disjunção A ou Não-A, e a alternativa A é verdadeira, então a alternativa Não-A é necessariamente falsa. Não fosse assim, A e Não-A seriam uma conjunção na qual ambas seriam verdadeiras ao mesmo tempo, o que implica contradição. Por exemplo, se uma objeção que negasse a divindade de Cristo fosse demonstrativamente verdadeira, então a afirmação da divindade de Cristo seria necessariamente falsa.

De modo algum há mister de responder a toda e a qualquer objeção que seja apresentada e nem de cultivar um espírito de dúvida constante acerca daquilo em que se acredita, sob pena de tornar tudo provisório e incerto. As objeções não têm todas o mesmo valor argumentativo. Porém, é inegável que algumas objeções são dignas de resposta, e que, quando são engenhosas, elas proporcionam sempre algum lucro intelectual na sua análise a despeito de sua invalidade. ****

Se Bayle considerasse que há objeções literalmente insolúveis contra as verdades da fé, então ele estaria afirmando que existem demonstrações contra algo que é verdadeiro. Não pode haver um raciocínio válido com premissas verdadeiras que refute outra verdade. Porém, se Bayle quer dizer somente que há objeções que por hora são insolúveis, Leibniz assevera que para respondê-las não é necessário mais do que atenção no uso das regras da tradicional lógica de Aristóteles que fornece os instrumentos adequados para identificar e refutar os erros de raciocínio.

Note-se que Leibniz admite somente uma espécie de defesa negativa das verdades da religião. É possível desvencilhar-se das refutações apresentadas contra os mistérios com o auxílio do que ele denomina lógica vulgar (aristotélica) sem que haja meios de demonstrar a verdade desses mistérios. As afirmações da fé contrariam a verossimilhança (vraisamblance, probabilidade, plausibilidade), e ainda não se desenvolveu uma lógica para lidar com as aparências. 

O erro de Bayle pode estar fundado na confusão comum acerca dos sentidos de razão. Não podemos julgar as ações divinas tal como um juiz julga o réu baseado em verossimilhança, presunções e prejuízos. Bayle se questiona se Deus não poderia ser isento de culpa dos pecados cometidos pelos homens, dado que Ele os colocou em condições nas quais sabia que iriam pecar. Essa é uma presunção adequada aos tribunais, mas imprópria para julgar a infinita sabedoria de Deus que tem absoluto controle das circunstâncias e que possui razões que levam em conta infinitas possibilidades.

A situação seria comparável a de um homem reconhecidamente venerável e santo que foi acusado de algum crime. As aparentes razões de culpa, quaisquer que fossem, não teriam força contra a fé na sua santidade, e seriam descartadas como calúnias e falsos testemunhos. Analogamente, considerando a infinitude da perfeição divina, as objeções contra Deus não são insolúveis, são presunções e verossimilhanças que não resistem a razões incomparavelmente mais fortes.

"Ora, não temos necessidade da fé revelada para saber que há um tal princípio único de todas as coisas, perfeitamente bom e sábio. A razão ensina-nos isso por demonstrações infalíveis", acrescenta Leibniz. A demonstração racional dessa verdade da teologia natural basta para nulificar quaisquer objeções à bondade divina. Incapazes de conhecer as razões pelas quais Deus permite certos males, podemos seguramente confiar que elas existem e são suficientes para justificar as escolhas da mente infinita.

Os mistérios da fé não podem ser demonstrados pela razão, porquanto não existem noções adequadas para esclarecer suficientemente a Encarnação do Verbo, por exemplo. As explicações de que dispomos são imperfeitas, e nos concedem no máximo uma inteligência analógica dessas verdades. Bastam para suscitar a crença de que a coisa é assim sem que sejam capazes de determinar o como e nem o porquê. O defensor da fé precisa tão somente sustentar os mistérios contra as objeções que lhe são apresentadas, não sendo seu dever demonstrar a sua verdade.

A incompreensibilidade dos mistérios não significa que eles estejam contra a razão. Ocorre que a razão humana difere da divina como a gota d'água difere do oceano. Os dogmas estão em harmonia com a razão universal, e os compreenderíamos se algumas verdades que eles contém não estivessem fora do alcance de nossa luz natural. Os mistérios ultrapassam a nossa razão sem que estejam contra qualquer verdade a que o encadeamento demonstrativo possa nos conduzir.

O que Leibniz afirma é análogo à situação da pessoa que enxerga tudo o que está dentro do alcance da sua visão. Obviamente, ela não pode ver aquilo que ultrapassa esse limite. Mas isso não lhe dá motivos para acreditar que as coisas que estão fora do seu alcance visual contrariem completamente as coisas que ela enxerga. Os mesmos olhos que veem as coisas anteriores ao limite seriam capazes de ver as coisas que estão fora do alcance atual. 

Não será que a incompreensibilidade do mistério impediria a sua defesa? Sustentar a verdade de uma tese não seria possível se não a compreendêssemos em primeiro lugar, sugere Bayle. Leibniz responde negativamente asseverando que ao defensor do mistério basta responder a contento as alegações feitas pelo objetor. A este somente cabe encontrar um princípio evidente que demonstre que o mistério é um absurdo manifesto. O defensor só precisa compreender a objeção oferecida e refutá-la mostrando algum defeito na sua forma inferencial, nas suas premissas ou nas duas ao mesmo tempo.
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* Sobre o ceticismo pirrônico:

** O entendimento de Tomás de Aquino sobre essa questão:

*** Sobre  Leibniz, os milagres e o curso da Natureza : 

****Aqui Leibniz parece responder incidentalmente a um dos dogmas do ceticismo pirrônico: o de manter a suspensão do juízo (epoché) diante daquilo do qual não se tem certeza, pois à toda tese poder-se-ia opor uma tese contrária de igual valor argumentativo (equipolência). 
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