sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Nome da Rosa: William de Baskerville e os limites da investigação


"Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que dispõe o homem para se orientar no mundo. O que eu não compreendi foi a relação entre os signos. Cheguei a Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os crimes, contudo era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor de todos os crimes e descobrimos que cada crime tinha no fundo um autor diferente, ou então nenhum. Cheguei a Jorge seguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio algum, ou seja, Jorge mesmo fora dominado pelo próprio desígnio inicial e depois se iniciara uma cadeia de causas, e de concausas, e de causas em contradição entre si, que procederam por conta própria, criando relações que não dependiam de qualquer desígnio. Onde está toda a minha sabedoria? Comportei-me como um obstinado, seguindo um simulacro de ordem, quando devia bem saber que não há uma ordem no universo."

William de Baskerville, em O Nome da Rosa de Umberto Eco

As palavras do frade franciscano inglês William de Baskerville ao final do romance O Nome da Rosa, eivadas de decepção e desânimo, revelam uma questão teórica das mais importantes e que dá um certo tom desalentado à empresa detetivesca do protagonista. Esse tom parece ter sido totalmente esquecido na adaptação cinematográfica e em boa parte das críticas à obra.

A questão que põe William desconcertado é o fato de que, embora largamente adequada aos signos manifestos, aos fatos ocorridos, e a despeito de ao fim conduzir à descoberta das atividades criminosas do velho "venerável" Jorge de Burgos, a hipótese que guia o frade é totalmente errônea.

Sua teoria de uma mente que matava de acordo com um esquema apocalíptico, embora se coadunasse com as formas e com a ordem cronológica dos crimes, estava totalmente equivocada, pois esses mesmos crimes foram, na realidade, cometidos de forma aleatória totalmente independente do esquema geral imaginado por William.

A nevasca de Adelmo foi na verdade um suicídio. O sangue onde foi encontrado Venâncio foi uma idéia de Berengário para esconder o corpo que inadvertidamente encontrara. A morte de Berengário na água foi casual e estava ligada a seu costume de banhar-se com freqüência. A terceira parte do céu na morte de Severino foi uma coincidência determinada pelo fato de uma esfera armilar ser a coisa mais à mão de Malaquias que cometeu o crime por ciúme vulgar. E, por fim, os escorpiões de Malaquias não eram mais do que o reflexo de uma sugestão ameaçadora de Jorge de Burgos.

Em todos esses eventos o acaso desempenhou um papel preponderante, de modo que a concordância dos crimes com o esquema hipotético do frade inglês não revelava uma adequação real entre a teoria e os fatos, entre o explicans e o explicandum. E isso manifesta a verdade epistemológica de que qualquer conjunto de dados pode ser logicamente explicado de forma adequada por um número indefinido de teorias.

O maior desafio da razão teórica é reunir os diversos fatos dispersos no tempo e no espaço sob um conjunto finito de leis fundamentais. E não basta que se possa delas derivar logicamente os fatos; é necessário que essas leis fundamentais realmente correspondam à natureza dos fenômenos estudados.

A questão colocada claramente pela personagem cativante do franciscano William de Baskerville levanta dúvidas capitais acerca da possibilidade de "deduzir" verdades de fatos isolados, habilidade de que geralmente os detetives da literatura se valem para a resolução de seus mistérios.

A conclusão desalentadora de William, exposta pouco mais à frente no livro, é a de que as teorias, construções mentais de ordem que imaginamos e impomos ao mundo, no fundo nada mais são que redes, instrumentos que devem ser abandonados tão logo se alcance o que se almeja, uma vez que se descobre fatalmente que elas não eram em absoluto verdadeiras.

A revelação do erro, final desconcertante da busca do franciscano detetive, lança sobre toda a sua empreitada investigativa um certo tom de ironia e de fracasso. Contudo, o fracasso não é a palavra derradeira dessa história porque William, apesar de tudo, ainda carrega sob seus braços diversos livros raros salvos por ele das chamas enquanto abandona o mosteiro destruído.

Ele continua na empreitada do conhecimento. Como poderia não ser assim?

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