domingo, 29 de dezembro de 2024

Leibniz, Teodicéia e a defesa negativa dos mistérios divinos

"O mesmo se dá com os outros mistérios, sobre os quais os espíritos encontrarão sempre uma explicação suficiente para crer, mas nunca o tanto que é necessário para compreender. A nós é suficiente certo o que é (τί ἐστι), mas o como (tως) nos ultrapassa, e não nos é absolutamente necessário."

G. W. LEIBNIZ, Essais de Théodicée, Discours de la conformité de la foi avec la raison, 56

O filósofo, matemático, físico e polímata alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) discute o clássico problema das relações entre a fé a e a razão no "Discurso de conformidade da fé com a razão", seção de sua famosa obra "Ensaios de Teodicéia", publicada em 1710. Ali é defendida a visão de que não há nenhuma incompatibilidade entre os conteúdos da revelação cristã e os ditames da razão humana, desde que bem compreendidos.

Leibniz compõe os ensaios da Teodicéia com o objetivo explícito de responder principalmente às questões acerca dessa matéria que foram levantadas pelo filósofo cético francês Pierre Bayle (1647-1706), autor do "Dictionnaire Historique et Critique". Conquanto não fosse um ateu, Bayle havia defendido a tese de que as objeções da razão às verdades da religião eram insolúveis. Alguma espécie de fideísmo era comum entre pensadores dos séculos XVI e XVII influenciados pelos escritos dos céticos pirrônicos gregos como Sextus Empiricus.*

Leibniz considera que a posição de Bayle é fruto de confusões conceituais que seriam dissipadas pelo esclarecimento dos âmbitos próprios da fé e da razão. Logo de início o filósofo argumenta que duas verdades não podem entrar em contradição. O objeto da fé é a verdade que Deus revelou de modo extraordinário, enquanto a razão é o encadeamento das verdades que o espírito humano atinge naturalmente sem a ajuda da luz da fé. Tem-se aí a definição da reta e verdadeira razão.

A tese leibniziana, em linhas gerais, repete a posição tradicional encontrada em pensadores escolásticos como Tomás de Aquino segundo a qual duas ordens de verdades não podem jamais entrar em contradição porque ambas têm origem em Deus. A razão humana pode conhecer com certeza uma série de verdades sobre Deus (a Sua existência, bondade, etc.) utilizando exclusivamente seus poderes naturais, enquanto outras verdades estão para além do seu alcance e necessitam do auxílio da Revelação divina nas Escrituras Sagradas (por exemplo, que Deus é uma trindade consubstancial). Havendo algo na fé que parece contrariar a razão, é sinal inequívoco de que um erro no raciocínio ou nas premissas foi cometido.**

"Consistindo no encadeamento das verdades", diz Leibniz, a razão tira conclusões mistas quando as verdades que encadeia são provenientes da experiência. Ela é pura e nua, distinta da experiência, quando as verdades são independentes dos sentidos. A fé, por seu turno, é comparável à experiência porque a Revelação está baseada no relato daqueles que presenciaram os milagres e na tradição digna de confiança, semelhante ao modo como fundamos nosso conhecimento da China na experiência dos que lá estiveram. Isso sem falar da ação sobrenatural do Espírito Santo que persuade e conduz as almas à fé sem que motivos sejam sempre necessários.

As verdades eternas da razão (metafísica, lógica, matemática geometria) são absolutamente necessárias, conhecidas a priori, e sua negação implica em contradição. As verdades positivas são aquelas que aprouve Deus impor à natureza, são conhecidas a posteriori, pela experiência, ou a priori pela consideração da conveniência, a razão pela qual Deus as escolheu em detrimento de outras igualmente possíveis. Essas verdades, embora não sendo necessárias no sentido geométrico, não são fruto do capricho, mas encontram o seu fundamento na escolha livre de Deus guiada pelo princípio do melhor.

Assim, a necessidade física está fundada numa necessidade moral. Consequentemente, a ordem da natureza, constituída pelas leis do movimento e por outras leis mais gerais, pode ser suspensa por Deus em atenção a razões superiores. É o que acontece nos milagres, quando Deus faz as coisas abandonarem seu curso costumeiro e apresentarem efeitos que sua natureza não comporta. Efeitos que são produzidos nelas graças àquilo que os escolásticos chamavam de potência obediencial.***

As verdades positivas são, portanto, contingentes, e negá-las não implica contradição, em que pese o fato de terem sido escolhidas por sua conformação ao princípio de conveniência. Convém que os mistérios divinos sejam contrários às aparências, mas não se encontrará nenhuma objeção a eles que seja uma demonstração rigorosa, fundada sobre princípios ou fatos inquestionáveis, e formada pelo encadeamento de verdades eternas, cuja conclusão certa e inquestionável comanda assentimento. 

Houvesse uma demonstração que contrariasse algum conteúdo da fé, então duas verdades entrariam em contradição. Mas as objeções que se apresentam usualmente contra a religião são calcadas na necessidade física ou moral, cujos objetos estão no âmbito daquilo que acontece ordinariamente e são fundados nas aparências. Além disso, nas discussões acerca desses temas, confunde-se amiúde os sentidos de explicar, de compreender, de provar e de sustentar. 

Os mistérios divinos podem ser explicados naquilo que é necessário para que se creia neles, sem que seja possível compreendê-los. É o que acontece na física quando certas propriedades sensíveis podem ser até certo ponto explicadas sem que sejam compreendidas. Tampouco há como provar pela razão pura, a priori, os mistérios da fé. Existem, contudo, motivos de credibilidade da fé que fornecem uma certeza moral que é capaz de ser sustentada contra objeções que não sejam demonstrativas.

Dito de outro modo, os mistérios da fé não são objeto de prova racional e nem de compreensão, embora possam ser explicados o suficiente para suscitar uma certeza moral capaz de sustentar-se contra o ataque de objeções que não sejam demonstrações a priori. Os mistérios nunca vão contra a razão, pois não contradizem as verdades eternas, mas estão acima da razão, são contrários às aparências, ao que costumeiramente testemunhamos na experiência.

As distinções realizadas acima fornecem Leibniz com os instrumentos necessários para responder a tese de Pierre Bayle de que os mistérios da fé são vulneráveis a objeções insolúveis. O que significa insolúveis senão que essas objeções seriam demonstrativas? Se o fossem, de fato os mistérios não conseguiriam sustentar-se contra um argumento que tivesse forma lógica válida e premissas reconhecidamente verdadeiras ou inferidas corretamente de premissas reconhecidamente verdadeiras. Contrariar uma demonstração seria afirmar que duas contraditórias são verdadeiras ao mesmo tempo, o que é absurdo.

O que Leibniz argumenta é que no caso de um silogismo disjuntivo no qual uma alternativa é a negação da outra, a alternativa que for verdadeira necessariamente demonstra que a outra é falsa. Se temos a disjunção A ou Não-A, e a alternativa A é verdadeira, então a alternativa Não-A é necessariamente falsa. Não fosse assim, A e Não-A seriam uma conjunção na qual ambas seriam verdadeiras ao mesmo tempo, o que implica contradição. Por exemplo, se uma objeção que negasse a divindade de Cristo fosse demonstrativamente verdadeira, então a afirmação da divindade de Cristo seria necessariamente falsa.

De modo algum há mister de responder a toda e a qualquer objeção que seja apresentada e nem de cultivar um espírito de dúvida constante acerca daquilo em que se acredita, sob pena de tornar tudo provisório e incerto. As objeções não têm todas o mesmo valor argumentativo. Porém, é inegável que algumas objeções são dignas de resposta, e que, quando são engenhosas, elas proporcionam sempre algum lucro intelectual na sua análise a despeito de sua invalidade. ****

Se Bayle considerasse que há objeções literalmente insolúveis contra as verdades da fé, então ele estaria afirmando que existem demonstrações contra algo que é verdadeiro. Não pode haver um raciocínio válido com premissas verdadeiras que refute outra verdade. Porém, se Bayle quer dizer somente que há objeções que por hora são insolúveis, Leibniz assevera que para respondê-las não é necessário mais do que atenção no uso das regras da tradicional lógica de Aristóteles que fornece os instrumentos adequados para identificar e refutar os erros de raciocínio.

Note-se que Leibniz admite somente uma espécie de defesa negativa das verdades da religião. É possível desvencilhar-se das refutações apresentadas contra os mistérios com o auxílio do que ele denomina lógica vulgar (aristotélica) sem que haja meios de demonstrar a verdade desses mistérios. As afirmações da fé contrariam a verossimilhança (vraisamblance, probabilidade, plausibilidade), e ainda não se desenvolveu uma lógica para lidar com as aparências. 

O erro de Bayle pode estar fundado na confusão comum acerca dos sentidos de razão. Não podemos julgar as ações divinas tal como um juiz julga o réu baseado em verossimilhança, presunções e prejuízos. Bayle se questiona se Deus não poderia ser isento de culpa dos pecados cometidos pelos homens, dado que Ele os colocou em condições nas quais sabia que iriam pecar. Essa é uma presunção adequada aos tribunais, mas imprópria para julgar a infinita sabedoria de Deus que tem absoluto controle das circunstâncias e que possui razões que levam em conta infinitas possibilidades.

A situação seria comparável a de um homem reconhecidamente venerável e santo que foi acusado de algum crime. As aparentes razões de culpa, quaisquer que fossem, não teriam força contra a fé na sua santidade, e seriam descartadas como calúnias e falsos testemunhos. Analogamente, considerando a infinitude da perfeição divina, as objeções contra Deus não são insolúveis, são presunções e verossimilhanças que não resistem a razões incomparavelmente mais fortes.

"Ora, não temos necessidade da fé revelada para saber que há um tal princípio único de todas as coisas, perfeitamente bom e sábio. A razão ensina-nos isso por demonstrações infalíveis", acrescenta Leibniz. A demonstração racional dessa verdade da teologia natural basta para nulificar quaisquer objeções à bondade divina. Incapazes de conhecer as razões pelas quais Deus permite certos males, podemos seguramente confiar que elas existem e são suficientes para justificar as escolhas da mente infinita.

Os mistérios da fé não podem ser demonstrados pela razão, porquanto não existem noções adequadas para esclarecer suficientemente a Encarnação do Verbo, por exemplo. As explicações de que dispomos são imperfeitas, e nos concedem no máximo uma inteligência analógica dessas verdades. Bastam para suscitar a crença de que a coisa é assim sem que sejam capazes de determinar o como e nem o porquê. O defensor da fé precisa tão somente sustentar os mistérios contra as objeções que lhe são apresentadas, não sendo seu dever demonstrar a sua verdade.

A incompreensibilidade dos mistérios não significa que eles estejam contra a razão. Ocorre que a razão humana difere da divina como a gota d'água difere do oceano. Os dogmas estão em harmonia com a razão universal, e os compreenderíamos se algumas verdades que eles contém não estivessem fora do alcance de nossa luz natural. Os mistérios ultrapassam a nossa razão sem que estejam contra qualquer verdade a que o encadeamento demonstrativo possa nos conduzir.

O que Leibniz afirma é análogo à situação da pessoa que enxerga tudo o que está dentro do alcance da sua visão. Obviamente, ela não pode ver aquilo que ultrapassa esse limite. Mas isso não lhe dá motivos para acreditar que as coisas que estão fora do seu alcance visual contrariem completamente as coisas que ela enxerga. Os mesmos olhos que veem as coisas anteriores ao limite seriam capazes de ver as coisas que estão fora do alcance atual. 

Não será que a incompreensibilidade do mistério impediria a sua defesa? Sustentar a verdade de uma tese não seria possível se não a compreendêssemos em primeiro lugar, sugere Bayle. Leibniz responde negativamente asseverando que ao defensor do mistério basta responder a contento as alegações feitas pelo objetor. A este somente cabe encontrar um princípio evidente que demonstre que o mistério é um absurdo manifesto. O defensor só precisa compreender a objeção oferecida e refutá-la mostrando algum defeito na sua forma inferencial, nas suas premissas ou nas duas ao mesmo tempo.
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* Sobre o ceticismo pirrônico:

** O entendimento de Tomás de Aquino sobre essa questão:

*** Sobre  Leibniz, os milagres e o curso da Natureza : 

****Aqui Leibniz parece responder incidentalmente a um dos dogmas do ceticismo pirrônico: o de manter a suspensão do juízo (epoché) diante daquilo do qual não se tem certeza, pois à toda tese poder-se-ia opor uma tese contrária de igual valor argumentativo (equipolência). 
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domingo, 22 de dezembro de 2024

Aspectos simbólicos da parábola dos empregados da vinha

"Mas ele respondeu a um deles: 'Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao que foi contratado por último o mesmo que dei a você. Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?' "Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos".

MATEUS, 20:1-16

No Evangelho de Mateus (capítulo 20, versículos 1 a 16), Jesus conta uma parábola sobre trabalhadores que foram contratados em horas diferentes do dia e que, no entanto, receberam todos o mesmo pagamento por seus serviços.  A parábola é usualmente interpretada no sentido moral/escatológico das recompensas dadas aos homens após a morte, salientando a absoluta liberdade divina que distribui o perdão a quem Ele deseja.

A superabundância da misericórdia divina é incompreensível, e frequentemente parece entrar em conflito com as concepções humanas de justiça. Afinal, não parece nada justo que aqueles que trabalharam desde o nascer do dia tenham o mesmo pagamento daqueles que só trabalharam uma hora. O homem virtuoso, fiel a Deus e aos Seus mandamentos desde sua tenra infância, que nunca desviou-se um milímetro da via divina não pode receber idêntico prêmio que o réprobo que passou a vida na dissipação e que só nos estertores arrependeu-se e retornou contrito ao seio do Pai.

O Evangelho, não obstante, repete essa "injustiça" (ἀδικία) divina na circunstância derradeira da crucifixão, onde Jesus perdoa o bom ladrão e lhe assegura que naquele mesmo dia estará com Ele no Paraíso. A surpreendente garantia de Cristo ao ladrão revela a incompreensibilidade fundamental do sagrado, cuja natureza é o totalmente outro (Ganz Andere), a um só tempo fascinante e aterrador. O Mysterium Tremendum, segundo a expressão do teólogo e filósofo da religião Rudolf Otto, não pode ser completamente traduzido pelas fórmulas racionais, conceituais, doutrinais ou morais nas quais é atenuado.

O aspecto moral e luminoso do divino, resultado do desenvolvimento comum das religiões, não consegue jamais eliminar ou subjugar o numinoso, o caráter de absoluta incompreensibilidade que é ao mesmo tempo fascinans e horror. A perplexidade e a estranheza são reações típicas ante a manifestação do sagrado que não cabe em nenhuma das categorias do pensamento e da experiência humanas. 

O evento da crucifixão é a realização no tempo do ato cosmogônico eterno do "cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo" (Apocalipse 13,8). Ao contemplá-lo, colocamo-nos simbolicamente no centro da Criação, na dispensação originária dos dons a todos os entes que serão eleitos para a existência. A cruz simboliza as dimensões do Ser, a ascensão vertical da Terra ao Céu e a extensão horizontal das modalidades nas quais os entes aparecem na realidade. 

A justiça (Δίκη, δικαιοσύνη), segundo os gregos, é uma proporção qualitativa que, por exemplo, pesa a gravidade da ofensa, a dignidade do ofendido, a posição do ofensor, o tipo e a extensão da pena ou reparação a ser imposta, entre outros fatores. Essa medida, uma das traduções possíveis do termo λόγος (logos) tão caro aos gregosrege as ações humanas neste mundo da limitação. Porém, não se mede o metro (μέτρον) pelo qual as coisas são medidas. 

Jesus inicia a parábola dizendo que "o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha". O reino dos céus é o Deus Absconditus, a natureza divina ainda oculta e encerrada em si mesma. O homem é o próprio Cristo enquanto poder criador. O prólogo do Evangelho de João afirma que "no Princípio era a Palavra, e a Palavra estava em Deus, e Deus era a Palavra".* Palavra (ou "medida", "razão"), estava no princípio, o Bereshit do início do Gênesis ("no princípio Deus criou o céu e a terra..").

A Palavra é Deus e Deus é a Palavra. A face incompreensível do divino, sem deixar de ser o que é, gera de Si mesma eternamente a face voltada às criaturas. É o pai de família (οἰκοδεσπότης) do qual fala a parábola, alguém sob cuja autoridade vivem os habitantes de uma casa. A casa não é outra coisa senão o mundo que é criado, ordenado e mantido na existência pelo Cristo. Este é a medida, o princípio de limitação que, quando aplicado, dá as coisas seus contornos e suas formas definidoras.

"Saiu de madrugada", isto é, da escuridão informe do abismo divino anterior a todas as coisas, "sai", sem jamais se apartar, o poder engendrador de Deus que se põe "a assalariar trabalhadores para a sua vinha", a atribuir a existência a cada coisa ainda inexistente. Os trabalhadores (ἐργάτης) são os entes da realidade que serão trazidos ao ato (ἐνέργεια). A vinha é o mundo que será efetivado e manifestado.

"E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha". Aos primeiros trabalhadores foi prometido "um dinheiro por dia", isto é, o ato de existência dentro do curso próprio às coisas. "E, saindo perto da hora terceira". O empregador que sai de novo em busca de outros trabalhadores simboliza o eterno poder (ἐνέργεια) criador de Deus que neste mundo manifesta-se temporalmente, uns entes efetivando-se antes e outros depois. 

"Viu outros que estavam ociosos na praça, e disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram". Os trabalhadores ociosos na praça (ἀγορᾷ) que são contratados pelo empregador representam as possibilidades que residem na coincidentia oppositorum do abismo incompreensível de Deus que são chamadas à existência. Esses trabalhadores receberão "o que for justo" (δίκαιος).

"Saindo outra vez, perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou- lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo". Os trabalhadores chamados à vinha nas horas subsequentes representam outras possibilidades que se manifestam neste mundo. Todos receberão do empregador "o que for justo" (δίκαιος).

Ao lado desse aspecto temporal de surgimento sucessivo das coisas, a sequência das horas um, três, seis, nove e onze simboliza qualitativamente o gradual afastamento da fonte. Interpretando cada hora em termos de círculos concêntricos sucessivos, o centro é o ponto adimensional que representa Deus. O primeiro círculo estaria tão próximo que quase se identifica com o centro. Corresponde simbolicamente aos fundamentos mais gerais da realidade, o ponto no qual o "salário" de todos os trabalhadores é decidido. 

O círculo seguinte, a hora terça, simboliza a estrutura ternária dos entes deste mundo: o substrato (ὑποκείμενον) que abriga os contrários (ser e não-ser, ato e potência, forma e privação). A hora sexta, o dobro da anterior, sugere não uma simples repetição ou multiplicação, mas o aperfeiçoamento. É a estrutura ternária atualizada nos entes concretos, pronta para atuar. A hora nona, o triplo da terça, é a estrutura ternária atualizada e atuando segundo as capacidades contidas na coisa.

undécima hora seria o raio de maior "distância" a partir do centro. Da primeira à nona hora as coisas passam da mera possibilidade até a atuação no mundo, e na undécima aproximam-se do termo. Seu sentido é crepuscular, corresponde às cinco da tarde, uma hora antes do fim do dia. É símbolo do tempo que se esgota e das coisas que estão prestes a morrer. Daí o espírito de urgência da parábola.

Entretanto, a proximidade do fim de um ciclo apresenta oportunidades específicas. Aquilo que termina seu curso retorna à causa de onde veio. Momento propício para a conversão (μετάνοια), para virar o rosto dos fenômenos na direção daquilo que é fundamental (περιάγωγή). No seu sentido moral, a undécima hora significa a decadência de uma era ou de um indivíduo. Tudo se torna tão obscuro e difícil que qualquer ato mínimo de virtude possui um valor muito maior do que possuiria em tempos mais favoráveis.

"E, aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derradeiros, até aos primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um". O dono da vinha ordena que os empregados retornem para serem pagos, dos últimos aos primeiros. Cada trabalhador ganha exatamente o mesmo salário, não importando a hora na qual foram convocados pelo empregador. Os entes postos no círculo mais afastado da realidade recebem o mesmo que os entes mais próximos ao centro adimensional.

"Vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mesmo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, murmuravam contra o pai de família dizendo: estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a calma do dia". As queixas dos empregados simbolizam as diferenças hierárquicas entre os entes. Alguns estão mais próximos do centro incondicionado, são superiores àqueles que estão mais afastados, cuja existência é mais circunscrita por limitações e por condições.

"Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom?". Diante da resposta aparentemente desconcertante do senhor da vinha, é preciso recordar que o pagamento foi definido desde o início. Em nenhum momento o empregador prometeu qualquer vantagem para quem trabalhasse o dia inteiro. Todos receberam exatamente o mesmo que foi combinado na aurora.

A parábola do trabalhador da última hora é um símbolo da inteireza do divino que se manifesta segundo as diferenças entre as coisas. É o mesmo Ser que está em cada ente enquanto ato de existir, mas que difere em cada ente no grau de sua existência. O bem primordial da existência é igualmente concedido a todos os seres sem que isso implique que eles sejam nivelados e deixem de apresentar diferenças específicas e individuais. Como o neoplatonismo afirma, cada ente recebe os dons segundo a sua capacidade, segundo o tipo de ser que ele é.

A medida é a mesma medindo coisas de tamanhos diferentes. Eis o pagamento justo (δίκαιος) do dono da vinha. A identidade e a diferença são inseparáveis na realidade. O diferente  pode existir se houver uma base comum. Isso se repete em todos os nível do real. Os vários seres humanos identificam-se pela mesma natureza que está integralmente presente em todos eles, e se diferenciam uns dos outros pelos acidentes individuais. A mesma água enche vasos de formas e de tamanhos diversos.

No âmbito espiritual, não há outra recompensa senão o próprio Deus. Pouco importa o tempo no qual alguém se converte, se no início de sua vida ou nos seus estertores, o prêmio é idêntico. O homem virtuoso é feliz tenha ele começado a praticar a virtude hoje ou desde a infância. Há um caráter atemporal na felicidade ou na completude. O que veio antes não importa mais. "Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus." (Filipenses, 3,8)

"Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros". Na ordem do conhecimento, partimos temporalmente sempre daquilo que é primeiro e mais evidente para nós, os fenômenos, e alcançamos por último as suas causas. Porém, o inverso é verdadeiro quando consideramos a ordem do Ser. Percebemos então que o que nos aparece primeiramente no tempo é na verdade a última consequência de princípios que são primordiais. Os primeiros são os derradeiros e os derradeiros são os últimos a depender da ordem sob a qual os encaramos.

Ademais, a realidade é constituída tanto pela descida (catábase, Kατάβασις), que vai do princípio às coisas, quanto da subida (anábase, Ἀνάβασις), que vai das coisas ao princípio. Os primeiros são os derradeiros e os derradeiros são os últimos a depender se subimos ou se descemos na escala da realidade. Encarada sub specie aeternitatis, só há uma escada de Jacó por onde os anjos descem e sobem. Dito de outro modo, segundo o fragmento 69 do Obscuro, "o caminho para cima e o caminho para baixo são um só e o mesmo".

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* No original grego: Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος. No princípio

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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XI - universal, abstração e contração)


"Deve-se distinguir o universal metafísico, um em muito, do universal lógico, um de muitos. O primeiro é predicado in essendo; o segundo é apenas in praedicando, atribuído ao ente. O universal é um em muitos, e de muitos. Esta definição desdobrada nos dá dois tipos de universal: universal metafísico, que é um em muitos, e o universal lógico, um de muitos."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 61

Mário Ferreira dos Santos analisa no capítulo XI de A Sabedoria da Unidade o tema do realismo moderado. A fim de compreendê-lo, em primeiro lugar, é preciso distinguir dois sentidos de universal, aquilo que está em muitos e aquilo que é de muitos. Se dizemos que João, Pedro e Maria são humanos, estamos atribuindo a universalidade de um conjunto essencial e permanente de características (a humanidade) a esses indivíduos. João, Pedro e Maria, a despeito de quaisquer diferenças individuais, são todos igualmente humanos.

Em um sentido, o universal está nesses indivíduos como sua constituição intrínseca, essencial e ontológica, isto é, como aquilo que define a sua natureza, o tipo de ser que eles são. Portanto, o universal corresponde aqui ao o que a própria coisa é. Ao identificarmos essa natureza comum presente em João, Pedro e Maria, concebemos no pensamento uma estrutura a que chamamos também de universal, e a atribuímos a João, Pedro e Maria como um predicado de muitos. 

A diferença é a mesma que distingue um esquema eidético de um esquema eidético-noético. O primeiro é ontológico, e constitui a própria coisa naquilo que ela é essencialmente. O segundo é uma captação pelo pensamento daquilo que é essencial na coisa. Sendo uma atitude mental que só se atualiza no intelecto, o universal que temos no pensamento não é idêntico ao universal que está nas coisas constituindo tornando-as o que elas são.

O universal de muitos, o esquema eidético-noético, só passa a existir no pensamento a partir do processo de abstração que permite separar mentalmente aquilo que pertence somente a este ou àquele indivíduo daquilo que pertence a todos enquanto membros de um mesmo tipo. Cumpre não esquecer que só é possível ao intelecto captar pela abstração e construir mentalmente o esquema eidético-noético do universal porque o universal já está nas coisas fundamentalmente.

O universal dado em nosso intelecto é uma tradução formal de uma realidade ontológica, e não o inverso. Não inventamos o universal a nosso bel-prazer e o impomos à realidade externa como se fôssemos os construtores do mundo. As coisas são o que são anteriormente a qualquer capacidade nossa de impor a elas o que quer que seja. O que fazemos é captar intelectualmente uma estrutura fundamental que nos antecede de muito.

Dito isso, não é possível negar que o universal que está nas coisas só aparece singularizado na realidade sensível. Ninguém jamais viu ou verá a humanidade andando na rua. Vemos João, Pedro e Maria andando na rua. Os singulares são o modo no qual o universal se manifesta na realidade. Não encontramos o ser humano em lugar algum. Encontramos somente humanos, ou mais precisamente, este ser humano ou aquele ser humano. 

O universal não entra na realidade como uma coisa aqui e agora, singularizada e individualizada. O universal é comparável a um parâmetro, a um conjunto estável de condições sob as quais algo pode vir ao mundo. Mário Ferreira não usa o termo, porém cremos ser admissível dizer que o universal é um condicionante (ou regra) que estabelece a forma segundo a qual algo pode entrar na realidade sensível. 

A consequência disso é que na realidade concreta não é possível separar o universal do singular a não ser pelo pensamento. João não pode existir separado de sua humanidade, o que não significa que ele seja idêntico à sua humanidade. Pedro e Maria são humanos também. A não ser que se queira negar à Maria e a Pedro a mesma humanidade de João, é preciso admitir que João não detém a humanidade como se fosse algo exclusivo dele. 

universal está singularizado neste indivíduo chamado João, e João não pode ser separado desse universal sem deixar de existir. O universal, contudo, não é um indivíduo e, portanto, não é uma coisa sensível e concreta. O singular expressa sensível e concretamente o universal. O universal constitui o tipo de ser que João é (ser humano), e João exemplifica individualmente o que é um ser humano. 

João não poderia ser João se não fosse humano, mas ser João não esgota o que é ser humano. Ninguém mais pôde, pode ou poderá ser João, este ser com tais e quais características individuais. Somente este João nasceu em tal data, em tal lugar, de tais pais, possui tal altura, gosta disso ou daquilo, etc. Esse conjunto de características reunidas em João é único e irrepetível

O indivíduo é uma possibilidade da realidade que se esgota tão logo seja realizada. Mas a desaparição de um indivíduo não significa a desaparição do universal. O universal, nesse sentido, é uma possibilidade inesgotável que se realiza em indivíduos que por natureza são possibilidades esgotáveis. Na realidade concreta, João não pode ser separado de sua humanidade sem deixar de existir, mas é perfeitamente possível separar intelectualmente João de sua humanidade, dado que João não esgota nele mesmo as possibilidades do ser humano.

Quando separamos pelo pensamento a humanidade de João, formamos o esquema eidético-noético de ser humano que pode ser predicado de muitos (Pedro, Maria, etc.), e que está efetiva e inseparavelmente presente em muitos (Pedro, Maria, etc.). Haveria uma inseparabilidade do universal no singular concreto, mas uma separabilidade formal no pensamento. Podemos pensar a humanidade separada de João, embora João não exista e nem possa existir separado da humanidade que constitui o seu ser.

Esse é um ponto crucial e fonte de muitos erros e de muitas confusões. Os universais não existem como indivíduos. Seria absurdo dizer que existe a humanidade ou o ser humano individualmente em algum lugar e em algum tempo, como uma coisa entre outras coisas. Individual e concretamente só existem os singulares, ou seja, este humano e aquele humano, João ou Pedro ou Maria, etc. Distinguimos pelo pensamento o universal que no singular está nele presente de modo inseparável.

A questão fulcral é que não podemos atribuir uma existência singular e individual ao universal somente pelo fato de conseguirmos separá-lo na nossa mente. A ilusão consiste em considerar que a humanidade teria de ser algo que existe de facto separadamente como uma coisa individual só pelo fato de podermos pensar na nossa mente a humanidade separadamente (deste ser concreto e singular chamado João). Tratar-se-ia, em outros termos, de um erro categorial, a atribuição imprópria das características de uma categoria da realidade à outra.

Se atribuíssemos existência separada à animalidade e à racionalidade, então nenhum ser humano (João, Pedro, Maria, etc.) jamais seria uma unidade real, pois a humanidade (animal racional) que o constitui seria uma composição de partes heterogêneas (animalidade e racionalidade) unidas de modo meramente acidental como as peças de um mecanismo juntadas de fora para dentro. Separamos mentalmente de modo estanque aquilo que na realidade concreta não é separável. Concretamente, João não se separa de sua humanidade. 

"O universal no indivíduo não se compõe com ele de nenhum desses modos, é nele o que ele é; não é possível dividir, realmente, um e outro, separar um e outro, só apenas noeticamente", diz Mário Ferreira. A realidade concreta é sempre uma contração do universal. O ente concreto, este homem hic et nunc, é integralmente João e humano, sem divisões ou separações. Nele está contraída a humanidade como a sua constituição fundamental. João é inteiramente humano, porém não é a humanidade enquanto eidos de todo e qualquer ser humano. 

Se, por um lado, a realidade concreta é uma contração do universal ao singular, por outro lado, a abstração, que nos permite conhecer os fundamentos das coisas concretas, é um processo que vai do singular ao universal. As coisas são instâncias ou exemplares de esquemas eidéticos que estão contraídos neles e que só podem aparecer na realidade concreta por meio dessas contrações. O intelecto humano, seguindo o caminho inverso, forma em si mesmo um esquema noético que corresponde ao esquema eidético presente nas coisas partindo justamente das contrações do universal que são os entes singulares.

O ser singular só pode ser compreendido pela inteligência na captação do universal que o constitui. Quando considerado na sua singularidade, ele é incompreensível, só pode ser conhecido intuitivamente e descrito parcialmente. Se compreendemos intelectualmente o que é João, então captamos e afirmamos a universalidade que o define: "João é humano". Ao fazê-lo, referimo-nos ao seu pertencimento essencial à espécie humana. Nada dizemos sobre João enquanto João.

Este João, hic et nunc, com todas as suas características individuais (idade, altura, gostos, vontades, ações, peso, nacionalidade, etc.) não pode ser definido por universais, quaisquer que eles sejam. É absolutamente verdade que João é humano e que essa é a sua definição enquanto humano. Mas essa mesma definição serve para todo e qualquer humano. João, naquilo que se refere à sua singularidade, que é irrepetível, não é compreensível pela inteligência que capta e constrói noeticamente universais.

O singular, considerado em sua singularidade, é objeto de intuição sensível, de experiência e de descrição parcial. Vemos João, ouvimos a sua voz, notamos a sua presença, descrevemos a sua aparência, conhecemos os seus gostos, testemunhamos as suas ações, sabemos de seu passado e de seus planos para o futuro, e assim por diante. Porém, jamais esgotamos todos os seus aspectos ou o definimos conceitualmente. 

Em suma, o realismo moderado consiste na afirmação tanto da presença fundamental do universal em muitos quanto da capacidade humana de captá-lo noeticamente e predicá-lo de muitos. Mário Ferreira considera que essa doutrina é certa e bem fundada apesar de algumas aporias ainda terem de ser respondidas por seus defensores. A questão que se levanta após as considerações feitas até aqui é se os universais possuem algum tipo de existência ante rem, ou seja, antes de se encontrarem nas coisas. 

No realismo moderado os universais são concebidos pelo pensamento sem serem meras criações, hipóteses ou invenções do espírito. Encarados sob aspecto do pensamento, os universais têm a existência noética do ente de razão com fundamento nas coisas (cum fundamento in re). Para saber qual tipo de existência os universais podem possuir para além do que diz o realismo moderado será necessário examinar o que é o ente, a entitas. Tal será feito nos capítulos seguintes. 
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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Louis Lavelle e a presença total do Ser (capítulos I e II)

"Há uma experiência inicial que está implicada em todas as outras, e que dá a cada uma delas sua gravidade e sua profundidade: é a experiência da presença do Ser. Reconhecer essa presença é reconhecer num mesmo ato a participação do eu no Ser."*

LOUIS LAVELLE, "La Présence Totale", p. 20 (tradução minha do original em francês)

A obra La Présence Totale, do filósofo francês Louis Lavelle (1883-1951), caracteriza-se por uma formulação mais simples dos temas atacados no primeiro volume de sua quadrilogia La Dialectique de l'Éternel Présent, considerado de difícil compreensão pelo público educado. Lavelle tenta ali expressar a riqueza do conteúdo da experiência primária do ser humano: a presença do Ser. 

Nada há de mais íntimo a nós que a presença do Ser. Tudo o que conhecemos, experimentamos, desejamos, buscamos, é sempre, sob quaisquer circunstâncias, algum tipo de ser. Em toda e qualquer relação que estabelecemos com qualquer coisa que seja, e inclusive com nosso próprio eu, está implicada a experiência primordial com algo que é, que existe em algum sentido e em algum nível. Independente do modo ou do tipo de ser diante do qual estamos, sempre estamos diante de uma variação do Ser.

Nossos interesses, desejos e curiosidades logo nos fazem abandonar essa experiência elementar em nome da busca por esta ou por aquela coisa existente. Nesse movimento, nossa consciência perde sua força de penetração e sua profundidade. A filosofia objetiva propriamente lembrar e retornar a essa experiência, analisá-la, mostrar sua presença em todas as nossas operações na qualidade de fonte e de razão de cada uma delas. 

No capítulo I, Lavelle observa que isolar a presença do Ser em toda a sua pureza exige "uma certa inocência (une certaine innocence), um espírito liberado de todo interesse e mesmo de toda preocupação particular". A azáfama da vida, com seus inúmeros compromissos, deveres, urgências e solicitações, impede o homem comum de se aprofundar no sentido da ligação imediata entre o ser e seu eu que fundamenta cada um dos seus atos e concede a eles seu valor.

O filósofo francês ventila aqui um tema que aparecerá em outros momentos dessa obra: o interesse impede uma compreensão profunda do sentido da presença do Ser. Certamente não se trata de uma simples e tola condenação moral do interesse enquanto tal. A questão é que quando estamos interessados em algo, o que quer que seja, estamos presos a uma coisa entre outras coisas, e não atentamos àquilo que funda a própria existência disso que almejamos. Perdemos de vista o caráter geral e fundamental que essa coisa apresenta pelo simples fato de existir.

A atenção desejosa dirigida ao tipo de ser ou à coisa na sua singularidade impede que percebamos a comunidade que une todos os seres por serem seres. Em termos epistemológicos, o pensamento que se dirige exclusivamente ao objeto diante do qual está postado jamais consegue operar a abstração que torna possível compreendê-lo em sua essência, menos ainda compreendê-lo naquilo que há de mais geral que toda e qualquer forma que a existência possa assumir.

Não seria errado afirmar, cremos, que é necessário que haja alguma ascese intelectual para que o sentido da experiência originária da presença do Ser apareça em sua plenitude à consciência do homem. Em que pese o fato de que a postura utilitária ou interessada tenha seu lugar justificado em certo âmbito dentro da estrutura da realidade, não deixa de ser igualmente verdadeiro que a postura filosófica, na medida em que busca compreender os fundamentos da realidade, não pode adotar senão uma posição desinteressada diante das coisas.

A razão disso está em que a investigação empreendida pela filosofia acerca da presença do Ser, por definição, não é cumulativa. Isto é, não almeja acumular conhecimentos novos sobre realidades antes desconhecidas tal qual um colecionador adiciona novos exemplares à sua já vasta coleção. Não ganhamos nenhum conhecimento a mais ao dedicarmos com afinco nossa atenção e nossos poderes intelectuais a essa experiência primordial. 

A investigação fundamental não aumenta a diversidade de nosso conhecimento. Justamente porque o fundamento recolhe nele mesmo todos os fenômenos que dele dependem, a sua compreensão não se refere a isto ou àquilo individualmente, e nem resulta em conhecimentos específicos acerca deste ou daquele tipo de ser. A compreensão fundamental não serve para nada em termos práticos, e por isso é geralmente abandonada tão logo os interesses e as solicitações particulares se apresentam ao homem.

Todavia, aquele que adquire uma consciência clara da absoluta solidariedade do Ser e do eu como o ato mesmo da vida, não consegue afastar disso seu pensamento. Ele não alcança um conhecimento novo sobre alguma coisa que desconhecia, tampouco é apresentado aos meios para a aquisição do que quer que seja.  A questão é qualitativa, não quantitativa. A sua consciência é iluminada e sua compreensão da realidade é aprofundada. 

Há quem possa considerar que essa experiência fundamental é estéril, e que se deva logo abandoná-la em nome de objetivos outros. Lavelle afirma que nossa vida reencontra sua seriedade essencial ao renovar seus liames com o coração da realidade. O pensamento se enriquece pela percepção da identidade que existe entre seu próprio ser e o ser daquilo sobre o qual se debruça, e se dispersa quando se inclina sucessivamente a este e depois àquele objeto. A razão aqui é inversa. 

A consciência se aprofunda na medida em que passa da multiplicidade das manifestações da realidade à unidade que subjaz a todas essas manifestações. A aquisição em termos de enriquecimento de conteúdo na lida com as coisas, por seu turno, exige algum esquecimento da identidade fundamental das coisas. O aparente esvaziamento da consciência na experiência fundamental da presença do Ser corresponde a um aprofundamento no princípio de toda e qualquer realidade possível.

O capítulo II, no qual o filósofo francês discorre sobre a cumplicidade da vida do espírito com o Ser, explica que o descrever a experiência primeira na qual o eu se inscreve no Ser não adiciona qualquer coisa a essa experiência, mas permite mensurar sua riqueza e fecundidade. Essa investigação, no entanto, quando é realizada, possui um caráter necessário distinto das necessidades exterior e lógica. O Ser é anterior às solicitações do exterior e à natureza da lógica.

A necessidade é um conceito técnico da filosofia que significa basicamente "aquilo que é assim e não pode deixar de ser assim" ou "aquilo que tem que ser assim tal com é". Existem níveis diferentes de necessidade, com maior ou menor grau de cogência ou obrigação. No caso da necessidade hipotética, o vínculo de necessidade só se estabelece se a condição inicial se realiza. Por exemplo, em relações práticas entre meios e fins, os meios só serão obrigatórios se os fins forem assumidos. Se tenho o objetivo de fazer um omelete, então sou obrigado a reunir e a utilizar todas as condições e todos os ingredientes necessários e suficientes para que um omelete surja na realidade.

Pode-se igualmente raciocinar do efeito à causa. Dado que João não existia e passou a existir, então alguma causa real deve tê-lo trazido à existência: seus pais. A inferência parte da realidade de João para determinar a sua causa. É uma necessidade hipotética porque nada exige que João devesse existir. Um vez que seja verdade que ele existe, então é preciso haver alguma causa que o tenha tornado real. 

Contudo, seria uma falácia (non sequitur) fazer a inferência inversa, dizer que a causa de João (seus pais) estava obrigada a trazê-lo à existência. Não se segue do fato de que um efeito necessita de uma causa para existir que a causa necessariamente deve fazer existir o efeito. A necessidade exterior meios-fins é hipotética nesse sentido, só se estabelece se um determinado objetivo for assumido. Comer é uma necessidade que se estabelece quando o ser vivo vem à existência e almeja manter-se vivo. 

Se digo que a porta da minha casa é azul, faço uma afirmação de um fato contingente, algo que muito bem poderia ter sido diferente. Sem contradição, posso afirmar que a porta poderia ter sido vermelha. Contrariamente, não há como afirmar que a porta seja ao mesmo tempo e no mesmo sentido azul e vermelha. Afirmar que a porta é azul é somente declarar o fato de que a esta porta é assim sem implicar nenhuma proibição lógica de que ela pudesse não ser assim.

A necessidade lógica possui outro nível de cogência. Ela se aplica à validade dos raciocínios, aos liames que unem obrigatoriamente as premissas à conclusão. Se afirmo que Sócrates é homem e que homens são mortais, não há outra conclusão possível a não ser que Sócrates é mortal. A forma lógica (A é B, B é C, logo, A é C) é um raciocínio perfeito cuja necessidade não depende da verdade das premissas (se Sócrates é ou não homem ou se homens realmente são mortais). Qualquer outra conclusão que não esteja contida implicitamente no conteúdo objetivo das premissas é necessariamente contraditória. 

Ora, Lavelle diz que a necessidade que encontraremos na investigação sobre os liames que unem o eu ao Ser não é de ordem exterior ou lógica. Embora o filósofo francês não use o termo, cremos que podemos denominar esse gênero de necessidade de metafísica. A necessidade exterior e a necessidade lógica são derivadas e limitadas. A primeira supõe a existência da sensibilidade, enquanto a segunda se ocupa do acordo simples entre as noções. Elas não podem ser originárias.

A necessidade metafísica é anterior às duas. Anterioridade é outro termo técnico da filosofia, e significa aquilo que vem antes de outro num sentido temporal ou num sentido fundamental. A anterioridade metafísica não é temporal, não se refere a algo que vem antes de outro no tempo como as duas horas vem antes das três horas ou como o vencedor da corrida vem antes do segundo lugar. A necessidade metafísica é anterior enquanto fundamento de outro. 

Se podemos dizer que Sócrates é mortal a partir dos fatos de que Sócrates é homem e de que homens são mortais é porque o pertencimento real de Sócrates à classe dos homens o dota das mesmas características essenciais dos membros dessa classe. O fundamento da mortalidade de Sócrates está no seu pertencimento real à classe dos homens que essencialmente são mortais. É óbvio que raciocinamos passando de uma premissa a outra no tempo. Porém, Sócrates não é primeiro homem, depois homens são mortais, e só num terceiro momento Sócrates é mortal. 

O fundamento do raciocínio está na verdade de que Sócrates é mortal precisamente porque é homem. A sua humanidade é, portanto, anterior à sua mortalidade. Da mesma forma, a necessidade metafísica da qual fala Lavelle é anterior às necessidades exterior e lógica porque estas encontram seu fundamento naquela. Ela não nos constrange de fora nem pelas circunstâncias externas e nem pelas regras da razão. 

Essa necessidade é muito mais profunda porque mostra a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas mesmas". Não se trata de uma mera conformidade ou correspondência entre o que pensamos e a essência das coisas. Em quais condições e até que ponto o que pensamos e afirmamos sobre as coisas se adequa às suas naturezas específicas são questões que estão no âmbito da gnosiologia ou teoria do conhecimento. Por definição, o conhecimento nesses termos implica uma distinção entre nosso pensamento e a coisa sobre a qual pensamos, que é o que permite a existência da possibilidade do erro.

Lavelle se refere a uma necessidade tão fundamental que não nos permite errar porque revela a identidade essencial do Ser puro e de nosso ser participado. O eu, ao estar diante da presença do Ser, percebe que ele também é ser, e que há uma identidade fundamental entre ele e o Ser no ato mesmo de ser. Essa experiência é o fundamento último e insofismável de toda e qualquer outra experiência, seja de pensamento ou de ação, sendo a sua necessidade anterior às necessidades que vem do exterior ou das leis da lógica que só se estabelecem se houver seres na realidade.

É por isso que o Ser é o fundamento da lógica e não o contrário. A lógica se estabelece a partir da limitação primeira que é a afirmação da realidade de algo que, por ser ele mesmo, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. O fundamento ontológico do princípio de não-contradição é o fato de que se A se afirma na realidade como existente, então A não pode ser ao mesmo tempo qualquer outra possibilidade da realidade que não seja A

Não obstante, anterior à distinção entre e não-A, entre o eu e as coisas, há uma identidade primária que une tudo e que permite a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas elas mesmas". E, ao perceber essa identidade, estaremos realizando nosso próprio ser na medida em que nós somos caracterizados pela capacidade de realizar justamente esse tipo de investigação. O autor do livro, o próprio Louis Lavelle, não pode senão sugerir e facilitar a experiência do leitor que deverá, ele mesmo e mais ninguém, realizar os atos espirituais que lhe revelarão a fundamental presença do Ser nele e nas coisas.
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* No original francês, Lavelle utiliza a forma l'être, que seria traduzido como "o ser" sem a primeira letra maiúscula. Opto por usar "Ser" com letra maiúscula para ajudar na distinção entre este ser e o Ser tomado na sua generalidade como o modo primário de qualquer coisas que venha a ter alguma realidade.
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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Eneias, Dido, tragédia e o chamado do herói


"É o que vos peço; com o sangue vos lanço este apelo supremo. 
Tírios! Vosso ódio infinito em seu filho e nos seus descendentes
extravasai! É o que esperam de vós as minhas cinzas ardentes. 
Nenhuma aliança jamais aproxime os dois povos imigos".

DIDO, Eneida, Livro II, 5 (trad. Carlos Alberto Nunes)

No livro IV do épico Eneida, o poeta romano Virgílio narra como a paixão por Eneias domina a rainha cartaginesa Dido, deixando-a desatinada quando posteriormente o herói troiano parte para a Itália. O belíssimo e trágico episódio revela e justifica mitologicamente a inimizade ancestral que causará as futuras três guerras entre Roma e Cartago. 

Após o longo relato de Eneias acerca da queda de Troia e de sua fuga, apresentado nos Livros II e III, Virgílio descreve os crescentes efeitos funestos da paixão sobre a rainha. Ana, sua irmã, ouve as confidências da insone Dido que, ferida pela chaga do amor, não consegue afastar de sua mente as palavras, o valor e a linhagem do herói. Tão forte e corajoso guerreiro, que parece ser de origem divina, abalara sua fixa resolução de não mais casar com ninguém desde que fora assassinado seu legítimo esposo, Siqueu.

Dido afirma à irmã que prefere ser tragada para os abismos ou ser atingida por um raio de Jupiter do que violar o pudor e dar a outro aquilo que na sua mocidade fora dado a Siqueu nas sagradas núpcias. A declaração, encarada em retrospecto, prenuncia a tragédia de sua morte. Ana, por seu turno, tem o condão de enfraquecer o intento da soberana com suas palavras sobre a triste solidão da perpétua viuvez infértil e a indiferença dos Di Manes (os mortos) aos votos dos vivos.

Tantos dignos pretendentes foram rejeitados anteriormente pela rainha em sua obstinação! Ademais, Ana acrescenta, se Dido considerasse a fragilidade de seu reino, ameaçado pela animosidade dos povos guerreiros que o cercam, veria claramente a vantagem bélica da união com Eneias. O discurso da irmã, exemplo do mau conselho que encontra o terreno propício para gerar seus frutos, inflama o amor que arde no coração de Dido, introduz esperança na sua mente vacilante e dissolve o seu pudor.

Ana sugere que a soberana propicie os deuses com sacrifícios e que se esmere em atenção e hospitalidade para com Eneias, criando pretextos para tê-lo por perto tanto quanto for possível. Ela percorre os templos, realiza sacrifícios em honra de Apolo, de Baco, de Ceres e, em particular, de Juno, a diva esposa/irmã de Jupiter e protetora dos laços matrimoniais. Ansiosa, consulta os augúrios nas entranhas dos animais imolados.

O sacrificium (sacrifício) era o ritus (ritoṚta, no sânscrito, "ordem") central da religião romana antiga. Consistia na ação (facere) de tornar algo sagrado (sacer), caráter daquilo que pertencia aos deuses. Havia ritos sacrificiais cruentos e incruentos, públicos e privados. O tipo de animal a ser sacrificado variava de acordo com o deus a ser homenageado, seu lugar no panteão (animais brancos para os deuses superiores, negros para os Di Inferi) e seu sexo (em geral, machos para os deuses e fêmeas para as deusas). 

O ritus romanus (havia também um ritus graecus) iniciava com a praefatio, na qual o celebrante derramava incenso e vinho num braseiro aceso. Em seguida acontecia a immolatio, em que o dorso da vítima (probare) era salpicado com farinha salgada e sobre sua testa vinho era derramado. "A formosíssima Dido tomando na destra uma copa, verte-a de pronto entre os cornos de branca novilha sem manchas". O animal, cuja propriedade fora passada dos mortais aos deuses, era finalmente abatido com um golpe ou tinha sua garganta cortada por uma faca. 

O destino do sacer é ser morto em oferecimento aos divos. A vítima deveria dar seu consentimento ao sacrifício abaixando a fronte, o que era obtido no ritus romanus pelo uso de um arreio preso ao animal e no ritus graecus pela aspersão de água sobre a sua cabeça. Qualquer sinal de medo ou de pânico da vítima era considerado um mau presságio. O animal morto tinha seus órgãos internos (coração, fígado, pulmões, peritônio e vesícula) examinados pelo haruspex, o vate que lia os augúrios nas entranhas (exta) das vítimas, a fim de saber se eram normais, o que indicava que o sacrifício havia sido aceito pelos deuses. Caso não fossem normais, o sacrifício deveria ser repetido com outras vítimas até que a aceitação divina fosse obtida.

"As reses abertas e as palpitantes entranhas, ansiosa, de espaço examina". Dido busca augúrios nas entranhas dos animais sacrificados. Virgílio, porém, assevera que pouco valem o saber dos vates, os templos e os votos para a mente turbada pela paixão. Inflamada, vaga sem rumo pela cidade, tal uma cerva ferida por uma flecha que corre pelas florestas carregando por toda parte a seta encravada no corpo. Apresenta a cidade a Eneias, diante do amado interrompe subitamente o discurso, geme por sua ausência e não consegue tirar sua imagem da mente.

Juno propõe a Vênus, mãe de Eneias, uma aliança na qual Dido e o herói reinariam sobre Cartago e sobre os troianos exilados. Para tanto, a deusa criaria uma tempestade durante uma caçada, obrigando Dido e Eneias a buscarem abrigo numa caverna onde se uniriam pelos laços sagrados do himeneu. Vênus percebe a astúcia de Juno, cujo objetivo era impedir a todo custo que Eneias aportasse na Itália, mas aceita a proposta. O estratagema se realiza como planejado pelas divas, e Dido entrega-se a Eneias numa caverna. Esse é o dia fatídico e princípio de todas as desventuras da rainha.

Fama, a deusa do renome e do rumor, espalha a notícia da união por toda Cartago e para além de seus territórios. O rei Jarbas, um dos pretendentes rejeitados pela soberana, aos ouvidos de quem chegaram os informes de Fama, suplica a intervenção de Jupiter. O pai dos divos envia Mercúrio (o Hermes grego) a Eneias para lembrá-lo de seu destino como fundador de Roma. 

Mercúrio se dirige a Eneias censurando o seu pendor mulherengo que o faz esquecer das promessas que lhe foram feitas. Se a sua própria glória e a de seus ancestrais não o anima a abandonar Cartago, que pense então na de seu descendente, Ascânio, destinado a ser rei na Itália. O próprio pai dos deuses, Jupiter, o insta a deixar a África imediatamente. Entregue a mensagem, Mercúrio desfaz-se da forma humana assumida e desaparece no ar. 

Estarrecido, com os pelos do corpo arrepiados e incapaz de pronunciar qualquer palavra, Eneias é presa daquilo que o filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto denominou como "sentimento do numinoso" em sua obra magna Das Heilige (O Sagrado). O numen, na religião romana tradicional, significava o aceno, a força ou a vontade dos deuses. Otto utiliza o termo de um modo mais abrangente, entendendo-o como o sentimento característico do sagrado, o Mysterium Tremendum, a um só tempo fascinante e aterrorizante, qualitativamente irredutível a qualquer outro sentimento, e que permanece no fundo das religiões mesmo quando elas são racionalizadas por meio das doutrinas, dos conceitos e da moral.

"At vero Aeneas aspectu obmutuit amens,
arrectaeque horrore comae et vox faucibus haesit.
ardet abire fuga dulcisque relinquere terras,
attonitus tanto monitu imperioque deorum."

O numen paralisa Eneias, deixa-o arrepiado e mudo. É o aspecto do horror divino, do insólito, do estranho, daquilo que Otto chama de Ganz Andere, o "totalmente outro". A visão de Mercúrio desfazendo-se no ar gera espanto, estranheza, estupor. Por outro lado, o numen é também fascinans, fascinante, atraente e comanda obediência. Admirado, atônito (attonitus), Eneias é tomado pelo ímpeto de fugir daquelas doces paragens graças ao aviso (monitus) e ao comando (imperium) dos deuses.

Virgílio realiza um paralelo com Odisseu (Ulisses) retido na ilha da ninfa Calipso, episódio da Odisseia de Homero. Simbolicamente, a tentação do herói é deleitar-se realizando os seus próprios desejos, esquecendo dos seus deveres e dos seus objetivos primários. A peregrinatio, a viagem do herói, repleta de perigos e de trabalhos, é símbolo do retorno à casa, da volta ao centro do mundo. O retorno de Odisseu à Ítaca representa a restauração do lugar próprio das coisas na ordem da realidade. O rei retoma o que é seu por direito e elimina a desordem e a dissipação das forças dissolventes simbolizadas pelos pretendentes de Penélope.

Eneias é destinado a realizar o tradicional ato sagrado de fundação de uma cidade. Roma é o centro do mundo para o qual ele deve se dirigir. As possibilidades de outros caminhos, simbolizadas pela mulher (Calipso e Dido), podem reter o herói, isolá-lo (na ilha ou em Cartago), e impedi-lo de realizar seu lugar no esquema das coisas. Ele deve escolher entre as alternativas oferecidas por Tétis a Aquiles: a vida segura e tranquila seguida do esquecimento ou a vida cheia de trabalhos e de perigos que é coroada pela glória e reconhecida pela eternidade.

A intervenção divina, simbolizada por Mercúrio, o mesmo Hermes que comunica a Calipso a decisão régia de Zeus (Jupiter) para que deixasse Odisseu partir de sua ilha, recorda o herói de seu papel na ordem mais ampla da realidade. A piedade (pietas) de Eneias o obriga a obedecer aos numes e a garantir a grandeza de seus descendentes (Ascânio e os romanos). A partida de Eneias é determinada não pelo desejo pessoal, mas pela obediência aos decretos divinos e ao Fado que a todos submete.

A Fama alada revela à Dido os preparativos de partida das naus troianas. Como se tomada pela mania (Μανία) que acomete as bacantes nos cultos dionisíacos, a rainha percorre desatinada as cidade até alcançar Eneias, e ao encontrá-lo, submete-o às mais ríspidas reprimendas. Ao que o herói só pode responder que parte por ordem divina recebida, não por vontade ou por ingratidão pelos inúmeros préstimos recebidos. No entanto, nunca esquecerá a soberana onde estiver.

Dido não crê na justificativa de Eneias, o amaldiçoa desejando-lhe a morte, e diz que o perseguirá tal qual uma sombra, ouvindo seus clamores finais até no mundo inferior dos Di Manes (os mortos). O troiano aplacaria a dor da mulher amada e atenderia às suas súplicas para que permanecesse em Cartago não fosse a ordem expressa dos divos. Ao perceber que o pio Eneias tem a mente inflexível, Dido sente que o Fado estava contra ela e deseja a morrer.

Pior, os augúrios são funestos. No momento em que vertia incenso no fogo durante um sacrifício, Dido vê o leite enegrecer-se e o vinho tornar-se sangue. Virgílio exclama que é horrendo descrever a cena (horrendum dictu). Os sinais são de inversão do sagrado. A degradação dos elementos sacros é obsceno (obscenum), corresponde à polução (pollutio), contaminação ritual que interdita a participação nos ritos. Dido ouve a voz lamentosa de seu finado esposo no templo a ele dedicado, uma coruja geme nas torres altas, enquanto a rainha vaga sozinha na noite assolada pela lembrança de Eneias.

A paixão pelo herói, o arrependimento de haver quebrado os votos com o marido defunto (cuja voz parece cobrá-la do fundo do Orco), a decepção com os deuses e o ódio pela humilhação da rejeição misturam-se na alma da cartaginesa. Virgílio a compara com Orestes, o matricida atormentado e perseguido pelas Érínias (Fúrias, para os romanos), terríveis deusas ancestrais que vingavam os crimes de sangue enlouquecendo o culpado. Tudo conduz Dido ao funus (funéreo). 

No palácio, aparentando calma, Dido chama a irmã Ana e lhe confidencia que conhece uma sacerdotisa das Hespérides que havia lhe ensinado um hino (carmen) para curar o amor. As Hespérides, filhas de Nix (a noite), eram uma tríade de ninfas responsáveis por guardar um jardim de de maças de ouro localizado no monte Atlas, às margens do Okeanos (Oceano), o rio que circunda o mundo. Representam o Poente, o ocaso do Sol, e, nesse sentido, podem simbolizar aquilo que encontra o seu fim (nos dois sentidos do termo). 

O jardim onde vivem as Hespérides é protegido por um dragão, tema simbólico tradicional do protetor do tesouro. Cumpre recordar que o significado de Paraíso no persa é jardim, e que é comum que a localização do Paraíso esteja nos limites do mundo. Adão e Eva são expulsos do Éden e entram no mundo do trabalho, da dor e do sofrimento. Seu retorno é impedido pelo guardião, o querubim com a espada flamejante. 

Considerado no seu aspecto positivo, o fim simboliza o coroamento, a realização, a completude de algo que estava in fieri, em processo, e, portanto, ainda incompleto. tesouro é a recompensa que espera o herói ao fim da peregrinatio. No seu aspecto negativo, o fim é decaimento, privação, destruição, morte. Exterior ao mundus (ordem, ornamento) está a dissolução das formas. A ambiguidade ronda o alegado feitiço da sacerdotisa das Hespérides. O rito será de cura, de restauração da saúde da rainha, ou será de destruição, resultando em sua morte?

Dido prepara o rito da evocatio, rito no qual alguém ou algo era oferecido ao Dis Pater (Plutão), o senhor do Orco (Hades), o mundo subterrâneo dos Di Manes, as sombras daqueles que morreram. No pátio do palácio, ao ar livre, a pira é erguida com achas de pinho e azinheira, enfeitada com guirlandas e ramos fúnebres, e no seu cume são postados para serem queimados o leito, as roupas, a espada e a efígie de Eneias. 

A velha sacerdotisa, desgrenhada, evoca com seu hino três vezes as cem divindades do Érebo (escuridão ou Hades). Coletivamente denominados Di Inferi, são os deuses que habitam o mundo subterrâneo, como PlutãoProsérpinaScotusMorsHécateMortaNenia Dea, e também os Di Manes, entre os quais se encontram os Lemures ou Larvae, os mortos malignos ou sem descanso. A Hécate Trivia (deusa grega da feitiçaria) e Diana, ambas de três faces, e o Caos primordial são igualmente evocados. 

O caráter privado da cerimônia, em contraste com os ritos públicos sancionados na religião romana, realça a impressão funesta de feitiçaria. Dido lamenta longamente o seu infortúnio durante toda a noite, e pela manhã avista a esquadra de Eneias partindo. Evoca Juno, a Hécate e as Fúrias para que a desgraça e a morte alcancem o troiano. Amaldiçoa a raça romana que seria fundada por Eneias com a eterna inimizade dos cartagineses. Seus descendentes, no momento oportuno, vingariam a rainha ofendida.

"Hoje, amanhã, no momento mais certo em que o acaso os ajunte,
e força houver, briguem praias com praias e as ondas entre elas,
armas de guerra por tudo, até os últimos netos com forças!"

Dido, sobre a pira, lança-se sobre a espada de Eneias. O horror se espalha entre as mulheres. Ana tenta socorrer a irmã que se esvai em sangue. Sente-se ludibriada, pois era Dido a verdadeira vítima daquele sacrifício cruento. Três vezes a rainha tenta erguer-se sobre os cotovelos e cai estendida sobre o leito. Juno, compadecida, envia Íris para pôr termo àquele sofrimento. A mensageira divina inclina-se sobre a cabeça de Dido, corta seu cabelo (símbolo da oferenda), liberta-a do corpo para conduzi-la a Plutão."In ventos vita recessit". A vida dilui-se no ar. 

O episódio envolvendo Dido e Eneias é uma tragédia dentro do épico que permite a Virgílio justificar retrospectivamente a inimizade entre Roma e Cartago que resultará na completa destruição da última ao fim das guerras púnicas. A pietas do herói o isenta de culpa. A teologia do poeta romano reafirma aqui a noção de que os acontecimentos neste mundo seguem o numen dos deuses. 
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Para ouvir: trecho da ária Dido's Lament, da ópera Dido and Aeneas, composta por Henry Purcell (1659/1695), interpretada pela magnífica soprano americana Jessye Norman: