segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XI - universal, abstração e contração)


"Deve-se distinguir o universal metafísico, um em muito, do universal lógico, um de muitos. O primeiro é predicado in essendo; o segundo é apenas in praedicando, atribuído ao ente. O universal é um em muitos, e de muitos. Esta definição desdobrada nos dá dois tipos de universal: universal metafísico, que é um em muitos, e o universal lógico, um de muitos."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 61

Mário Ferreira dos Santos analisa no capítulo XI de A Sabedoria da Unidade o tema do realismo moderado. A fim de compreendê-lo, em primeiro lugar, é preciso distinguir dois sentidos de universal, aquilo que está em muitos e aquilo que é de muitos. Se dizemos que João, Pedro e Maria são humanos, estamos atribuindo a universalidade de um conjunto essencial e permanente de características (a humanidade) a esses indivíduos. João, Pedro e Maria, a despeito de quaisquer diferenças individuais, são todos igualmente humanos.

Em um sentido, o universal está nesses indivíduos como sua constituição intrínseca, essencial e ontológica, isto é, como aquilo que define a sua natureza, o tipo de ser que eles são. Portanto, o universal corresponde aqui ao o que a própria coisa é. Ao identificarmos essa natureza comum presente em João, Pedro e Maria, concebemos no pensamento uma estrutura a que chamamos também de universal, e a atribuímos a João, Pedro e Maria como um predicado de muitos. 

A diferença é a mesma que distingue um esquema eidético de um esquema eidético-noético. O primeiro é ontológico, e constitui a própria coisa naquilo que ela é essencialmente. O segundo é uma captação pelo pensamento daquilo que é essencial na coisa. Sendo uma atitude mental que só se atualiza no intelecto, o universal que temos no pensamento não é idêntico ao universal que está nas coisas constituindo tornando-as o que elas são.

O universal de muitos, o esquema eidético-noético, só passa a existir no pensamento a partir do processo de abstração que permite separar mentalmente aquilo que pertence somente a este ou àquele indivíduo daquilo que pertence a todos enquanto membros de um mesmo tipo. Cumpre não esquecer que só é possível ao intelecto captar pela abstração e construir mentalmente o esquema eidético-noético do universal porque o universal já está nas coisas fundamentalmente.

O universal dado em nosso intelecto é uma tradução formal de uma realidade ontológica, e não o inverso. Não inventamos o universal a nosso bel-prazer e o impomos à realidade externa como se fôssemos os construtores do mundo. As coisas são o que são anteriormente a qualquer capacidade nossa de impor a elas o que quer que seja. O que fazemos é captar intelectualmente uma estrutura fundamental que nos antecede de muito.

Dito isso, não é possível negar que o universal que está nas coisas só aparece singularizado na realidade sensível. Ninguém jamais viu ou verá a humanidade andando na rua. Vemos João, Pedro e Maria andando na rua. Os singulares são o modo no qual o universal se manifesta na realidade. Não encontramos o ser humano em lugar algum. Encontramos somente humanos, ou mais precisamente, este ser humano ou aquele ser humano. 

O universal não entra na realidade como uma coisa aqui e agora, singularizada e individualizada. O universal é comparável a um parâmetro, a um conjunto estável de condições sob as quais algo pode vir ao mundo. Mário Ferreira não usa o termo, porém cremos ser admissível dizer que o universal é um condicionante (ou regra) que estabelece a forma segundo a qual algo pode entrar na realidade sensível. 

A consequência disso é que na realidade concreta não é possível separar o universal do singular a não ser pelo pensamento. João não pode existir separado de sua humanidade, o que não significa que ele seja idêntico à sua humanidade. Pedro e Maria são humanos também. A não ser que se queira negar à Maria e a Pedro a mesma humanidade de João, é preciso admitir que João não detém a humanidade como se fosse algo exclusivo dele. 

universal está singularizado neste indivíduo chamado João, e João não pode ser separado desse universal sem deixar de existir. O universal, contudo, não é um indivíduo e, portanto, não é uma coisa sensível e concreta. O singular expressa sensível e concretamente o universal. O universal constitui o tipo de ser que João é (ser humano), e João exemplifica individualmente o que é um ser humano. 

João não poderia ser João se não fosse humano, mas ser João não esgota o que é ser humano. Ninguém mais pôde, pode ou poderá ser João, este ser com tais e quais características individuais. Somente este João nasceu em tal data, em tal lugar, de tais pais, possui tal altura, gosta disso ou daquilo, etc. Esse conjunto de características reunidas em João é único e irrepetível

O indivíduo é uma possibilidade da realidade que se esgota tão logo seja realizada. Mas a desaparição de um indivíduo não significa a desaparição do universal. O universal, nesse sentido, é uma possibilidade inesgotável que se realiza em indivíduos que por natureza são possibilidades esgotáveis. Na realidade concreta, João não pode ser separado de sua humanidade sem deixar de existir, mas é perfeitamente possível separar intelectualmente João de sua humanidade, dado que João não esgota nele mesmo as possibilidades do ser humano.

Quando separamos pelo pensamento a humanidade de João, formamos o esquema eidético-noético de ser humano que pode ser predicado de muitos (Pedro, Maria, etc.), e que está efetiva e inseparavelmente presente em muitos (Pedro, Maria, etc.). Haveria uma inseparabilidade do universal no singular concreto, mas uma separabilidade formal no pensamento. Podemos pensar a humanidade separada de João, embora João não exista e nem possa existir separado da humanidade que constitui o seu ser.

Esse é um ponto crucial e fonte de muitos erros e de muitas confusões. Os universais não existem como indivíduos. Seria absurdo dizer que existe a humanidade ou o ser humano individualmente em algum lugar e em algum tempo, como uma coisa entre outras coisas. Individual e concretamente só existem os singulares, ou seja, este humano e aquele humano, João ou Pedro ou Maria, etc. Distinguimos pelo pensamento o universal que no singular está nele presente de modo inseparável.

A questão fulcral é que não podemos atribuir uma existência singular e individual ao universal somente pelo fato de conseguirmos separá-lo na nossa mente. A ilusão consiste em considerar que a humanidade teria de ser algo que existe de facto separadamente como uma coisa individual só pelo fato de podermos pensar na nossa mente a humanidade separadamente (deste ser concreto e singular chamado João). Tratar-se-ia, em outros termos, de um erro categorial, a atribuição imprópria das características de uma categoria da realidade à outra.

Se atribuíssemos existência separada à animalidade e à racionalidade, então nenhum ser humano (João, Pedro, Maria, etc.) jamais seria uma unidade real, pois a humanidade (animal racional) que o constitui seria uma composição de partes heterogêneas (animalidade e racionalidade) unidas de modo meramente acidental como as peças de um mecanismo juntadas de fora para dentro. Separamos mentalmente de modo estanque aquilo que na realidade concreta não é separável. Concretamente, João não se separa de sua humanidade. 

"O universal no indivíduo não se compõe com ele de nenhum desses modos, é nele o que ele é; não é possível dividir, realmente, um e outro, separar um e outro, só apenas noeticamente", diz Mário Ferreira. A realidade concreta é sempre uma contração do universal. O ente concreto, este homem hic et nunc, é integralmente João e humano, sem divisões ou separações. Nele está contraída a humanidade como a sua constituição fundamental. João é inteiramente humano, porém não é a humanidade enquanto eidos de todo e qualquer ser humano. 

Se, por um lado, a realidade concreta é uma contração do universal ao singular, por outro lado, a abstração, que nos permite conhecer os fundamentos das coisas concretas, é um processo que vai do singular ao universal. As coisas são instâncias ou exemplares de esquemas eidéticos que estão contraídos neles e que só podem aparecer na realidade concreta por meio dessas contrações. O intelecto humano, seguindo o caminho inverso, forma em si mesmo um esquema noético que corresponde ao esquema eidético presente nas coisas partindo justamente das contrações do universal que são os entes singulares.

O ser singular só pode ser compreendido pela inteligência na captação do universal que o constitui. Quando considerado na sua singularidade, ele é incompreensível, só pode ser conhecido intuitivamente e descrito parcialmente. Se compreendemos intelectualmente o que é João, então captamos e afirmamos a universalidade que o define: "João é humano". Ao fazê-lo, referimo-nos ao seu pertencimento essencial à espécie humana. Nada dizemos sobre João enquanto João.

Este João, hic et nunc, com todas as suas características individuais (idade, altura, gostos, vontades, ações, peso, nacionalidade, etc.) não pode ser definido por universais, quaisquer que eles sejam. É absolutamente verdade que João é humano e que essa é a sua definição enquanto humano. Mas essa mesma definição serve para todo e qualquer humano. João, naquilo que se refere à sua singularidade, que é irrepetível, não é compreensível pela inteligência que capta e constrói noeticamente universais.

O singular, considerado em sua singularidade, é objeto de intuição sensível, de experiência e de descrição parcial. Vemos João, ouvimos a sua voz, notamos a sua presença, descrevemos a sua aparência, conhecemos os seus gostos, testemunhamos as suas ações, sabemos de seu passado e de seus planos para o futuro, e assim por diante. Porém, jamais esgotamos todos os seus aspectos ou o definimos conceitualmente. 

Em suma, o realismo moderado consiste na afirmação tanto da presença fundamental do universal em muitos quanto da capacidade humana de captá-lo noeticamente e predicá-lo de muitos. Mário Ferreira considera que essa doutrina é certa e bem fundada apesar de algumas aporias ainda terem de ser respondidas por seus defensores. A questão que se levanta após as considerações feitas até aqui é se os universais possuem algum tipo de existência ante rem, ou seja, antes de se encontrarem nas coisas. 

No realismo moderado os universais são concebidos pelo pensamento sem serem meras criações, hipóteses ou invenções do espírito. Encarados sob aspecto do pensamento, os universais têm a existência noética do ente de razão com fundamento nas coisas (cum fundamento in re). Para saber qual tipo de existência os universais podem possuir para além do que diz o realismo moderado será necessário examinar o que é o ente, a entitas. Tal será feito nos capítulos seguintes. 
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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Louis Lavelle e a presença total do Ser (capítulos I e II)

"Há uma experiência inicial que está implicada em todas as outras, e que dá a cada uma delas sua gravidade e sua profundidade: é a experiência da presença do Ser. Reconhecer essa presença é reconhecer num mesmo ato a participação do eu no Ser."*

LOUIS LAVELLE, "La Présence Totale", p. 20 (tradução minha do original em francês)

A obra La Présence Totale, do filósofo francês Louis Lavelle (1883-1951), caracteriza-se por uma formulação mais simples dos temas atacados no primeiro volume de sua quadrilogia La Dialectique de l'Éternel Présent, considerado de difícil compreensão pelo público educado. Lavelle tenta ali expressar a riqueza do conteúdo da experiência primária do ser humano: a presença do Ser. 

Nada há de mais íntimo a nós que a presença do Ser. Tudo o que conhecemos, experimentamos, desejamos, buscamos, é sempre, sob quaisquer circunstâncias, algum tipo de ser. Em toda e qualquer relação que estabelecemos com qualquer coisa que seja, e inclusive com nosso próprio eu, está implicada a experiência primordial com algo que é, que existe em algum sentido e em algum nível. Independente do modo ou do tipo de ser diante do qual estamos, sempre estamos diante de uma variação do Ser.

Nossos interesses, desejos e curiosidades logo nos fazem abandonar essa experiência elementar em nome da busca por esta ou por aquela coisa existente. Nesse movimento, nossa consciência perde sua força de penetração e sua profundidade. A filosofia objetiva propriamente lembrar e retornar a essa experiência, analisá-la, mostrar sua presença em todas as nossas operações na qualidade de fonte e de razão de cada uma delas. 

No capítulo I, Lavelle observa que isolar a presença do Ser em toda a sua pureza exige "uma certa inocência (une certaine innocence), um espírito liberado de todo interesse e mesmo de toda preocupação particular". A azáfama da vida, com seus inúmeros compromissos, deveres, urgências e solicitações, impede o homem comum de se aprofundar no sentido da ligação imediata entre o ser e seu eu que fundamenta cada um dos seus atos e concede a eles seu valor.

O filósofo francês ventila aqui um tema que aparecerá em outros momentos dessa obra: o interesse impede uma compreensão profunda do sentido da presença do Ser. Certamente não se trata de uma simples e tola condenação moral do interesse enquanto tal. A questão é que quando estamos interessados em algo, o que quer que seja, estamos presos a uma coisa entre outras coisas, e não atentamos àquilo que funda a própria existência disso que almejamos. Perdemos de vista o caráter geral e fundamental que essa coisa apresenta pelo simples fato de existir.

A atenção desejosa dirigida ao tipo de ser ou à coisa na sua singularidade impede que percebamos a comunidade que une todos os seres por serem seres. Em termos epistemológicos, o pensamento que se dirige exclusivamente ao objeto diante do qual está postado jamais consegue operar a abstração que torna possível compreendê-lo em sua essência, menos ainda compreendê-lo naquilo que há de mais geral que toda e qualquer forma que a existência possa assumir.

Não seria errado afirmar, cremos, que é necessário que haja alguma ascese intelectual para que o sentido da experiência originária da presença do Ser apareça em sua plenitude à consciência do homem. Em que pese o fato de que a postura utilitária ou interessada tenha seu lugar justificado em certo âmbito dentro da estrutura da realidade, não deixa de ser igualmente verdadeiro que a postura filosófica, na medida em que busca compreender os fundamentos da realidade, não pode adotar senão uma posição desinteressada diante das coisas.

A razão disso está em que a investigação empreendida pela filosofia acerca da presença do Ser, por definição, não é cumulativa. Isto é, não almeja acumular conhecimentos novos sobre realidades antes desconhecidas tal qual um colecionador adiciona novos exemplares à sua já vasta coleção. Não ganhamos nenhum conhecimento a mais ao dedicarmos com afinco nossa atenção e nossos poderes intelectuais a essa experiência primordial. 

A investigação fundamental não aumenta a diversidade de nosso conhecimento. Justamente porque o fundamento recolhe nele mesmo todos os fenômenos que dele dependem, a sua compreensão não se refere a isto ou àquilo individualmente, e nem resulta em conhecimentos específicos acerca deste ou daquele tipo de ser. A compreensão fundamental não serve para nada em termos práticos, e por isso é geralmente abandonada tão logo os interesses e as solicitações particulares se apresentam ao homem.

Todavia, aquele que adquire uma consciência clara da absoluta solidariedade do Ser e do eu como o ato mesmo da vida, não consegue afastar disso seu pensamento. Ele não alcança um conhecimento novo sobre alguma coisa que desconhecia, tampouco é apresentado aos meios para a aquisição do que quer que seja.  A questão é qualitativa, não quantitativa. A sua consciência é iluminada e sua compreensão da realidade é aprofundada. 

Há quem possa considerar que essa experiência fundamental é estéril, e que se deva logo abandoná-la em nome de objetivos outros. Lavelle afirma que nossa vida reencontra sua seriedade essencial ao renovar seus liames com o coração da realidade. O pensamento se enriquece pela percepção da identidade que existe entre seu próprio ser e o ser daquilo sobre o qual se debruça, e se dispersa quando se inclina sucessivamente a este e depois àquele objeto. A razão aqui é inversa. 

A consciência se aprofunda na medida em que passa da multiplicidade das manifestações da realidade à unidade que subjaz a todas essas manifestações. A aquisição em termos de enriquecimento de conteúdo na lida com as coisas, por seu turno, exige algum esquecimento da identidade fundamental das coisas. O aparente esvaziamento da consciência na experiência fundamental da presença do Ser corresponde a um aprofundamento no princípio de toda e qualquer realidade possível.

O capítulo II, no qual o filósofo francês discorre sobre a cumplicidade da vida do espírito com o Ser, explica que o descrever a experiência primeira na qual o eu se inscreve no Ser não adiciona qualquer coisa a essa experiência, mas permite mensurar sua riqueza e fecundidade. Essa investigação, no entanto, quando é realizada, possui um caráter necessário distinto das necessidades exterior e lógica. O Ser é anterior às solicitações do exterior e à natureza da lógica.

A necessidade é um conceito técnico da filosofia que significa basicamente "aquilo que é assim e não pode deixar de ser assim" ou "aquilo que tem que ser assim tal com é". Existem níveis diferentes de necessidade, com maior ou menor grau de cogência ou obrigação. No caso da necessidade hipotética, o vínculo de necessidade só se estabelece se a condição inicial se realiza. Por exemplo, em relações práticas entre meios e fins, os meios só serão obrigatórios se os fins forem assumidos. Se tenho o objetivo de fazer um omelete, então sou obrigado a reunir e a utilizar todas as condições e todos os ingredientes necessários e suficientes para que um omelete surja na realidade.

Pode-se igualmente raciocinar do efeito à causa. Dado que João não existia e passou a existir, então alguma causa real deve tê-lo trazido à existência: seus pais. A inferência parte da realidade de João para determinar a sua causa. É uma necessidade hipotética porque nada exige que João devesse existir. Um vez que seja verdade que ele existe, então é preciso haver alguma causa que o tenha tornado real. 

Contudo, seria uma falácia (non sequitur) fazer a inferência inversa, dizer que a causa de João (seus pais) estava obrigada a trazê-lo à existência. Não se segue do fato de que um efeito necessita de uma causa para existir que a causa necessariamente deve fazer existir o efeito. A necessidade exterior meios-fins é hipotética nesse sentido, só se estabelece se um determinado objetivo for assumido. Comer é uma necessidade que se estabelece quando o ser vivo vem à existência e almeja manter-se vivo. 

Se digo que a porta da minha casa é azul, faço uma afirmação de um fato contingente, algo que muito bem poderia ter sido diferente. Sem contradição, posso afirmar que a porta poderia ter sido vermelha. Contrariamente, não há como afirmar que a porta seja ao mesmo tempo e no mesmo sentido azul e vermelha. Afirmar que a porta é azul é somente declarar o fato de que a esta porta é assim sem implicar nenhuma proibição lógica de que ela pudesse não ser assim.

A necessidade lógica possui outro nível de cogência. Ela se aplica à validade dos raciocínios, aos liames que unem obrigatoriamente as premissas à conclusão. Se afirmo que Sócrates é homem e que homens são mortais, não há outra conclusão possível a não ser que Sócrates é mortal. A forma lógica (A é B, B é C, logo, A é C) é um raciocínio perfeito cuja necessidade não depende da verdade das premissas (se Sócrates é ou não homem ou se homens realmente são mortais). Qualquer outra conclusão que não esteja contida implicitamente no conteúdo objetivo das premissas é necessariamente contraditória. 

Ora, Lavelle diz que a necessidade que encontraremos na investigação sobre os liames que unem o eu ao Ser não é de ordem exterior ou lógica. Embora o filósofo francês não use o termo, cremos que podemos denominar esse gênero de necessidade de metafísica. A necessidade exterior e a necessidade lógica são derivadas e limitadas. A primeira supõe a existência da sensibilidade, enquanto a segunda se ocupa do acordo simples entre as noções. Elas não podem ser originárias.

A necessidade metafísica é anterior às duas. Anterioridade é outro termo técnico da filosofia, e significa aquilo que vem antes de outro num sentido temporal ou num sentido fundamental. A anterioridade metafísica não é temporal, não se refere a algo que vem antes de outro no tempo como as duas horas vem antes das três horas ou como o vencedor da corrida vem antes do segundo lugar. A necessidade metafísica é anterior enquanto fundamento de outro. 

Se podemos dizer que Sócrates é mortal a partir dos fatos de que Sócrates é homem e de que homens são mortais é porque o pertencimento real de Sócrates à classe dos homens o dota das mesmas características essenciais dos membros dessa classe. O fundamento da mortalidade de Sócrates está no seu pertencimento real à classe dos homens que essencialmente são mortais. É óbvio que raciocinamos passando de uma premissa a outra no tempo. Porém, Sócrates não é primeiro homem, depois homens são mortais, e só num terceiro momento Sócrates é mortal. 

O fundamento do raciocínio está na verdade de que Sócrates é mortal precisamente porque é homem. A sua humanidade é, portanto, anterior à sua mortalidade. Da mesma forma, a necessidade metafísica da qual fala Lavelle é anterior às necessidades exterior e lógica porque estas encontram seu fundamento naquela. Ela não nos constrange de fora nem pelas circunstâncias externas e nem pelas regras da razão. 

Essa necessidade é muito mais profunda porque mostra a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas mesmas". Não se trata de uma mera conformidade ou correspondência entre o que pensamos e a essência das coisas. Em quais condições e até que ponto o que pensamos e afirmamos sobre as coisas se adequa às suas naturezas específicas são questões que estão no âmbito da gnosiologia ou teoria do conhecimento. Por definição, o conhecimento nesses termos implica uma distinção entre nosso pensamento e a coisa sobre a qual pensamos, que é o que permite a existência da possibilidade do erro.

Lavelle se refere a uma necessidade tão fundamental que não nos permite errar porque revela a identidade essencial do Ser puro e de nosso ser participado. O eu, ao estar diante da presença do Ser, percebe que ele também é ser, e que há uma identidade fundamental entre ele e o Ser no ato mesmo de ser. Essa experiência é o fundamento último e insofismável de toda e qualquer outra experiência, seja de pensamento ou de ação, sendo a sua necessidade anterior às necessidades que vem do exterior ou das leis da lógica que só se estabelecem se houver seres na realidade.

É por isso que o Ser é o fundamento da lógica e não o contrário. A lógica se estabelece a partir da limitação primeira que é a afirmação da realidade de algo que, por ser ele mesmo, exclui de si todas as outras possibilidades de ser. O fundamento ontológico do princípio de não-contradição é o fato de que se A se afirma na realidade como existente, então A não pode ser ao mesmo tempo qualquer outra possibilidade da realidade que não seja A

Não obstante, anterior à distinção entre e não-A, entre o eu e as coisas, há uma identidade primária que une tudo e que permite a "cumplicidade entre nosso pensamento e as coisas elas mesmas". E, ao perceber essa identidade, estaremos realizando nosso próprio ser na medida em que nós somos caracterizados pela capacidade de realizar justamente esse tipo de investigação. O autor do livro, o próprio Louis Lavelle, não pode senão sugerir e facilitar a experiência do leitor que deverá, ele mesmo e mais ninguém, realizar os atos espirituais que lhe revelarão a fundamental presença do Ser nele e nas coisas.
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* No original francês, Lavelle utiliza a forma l'être, que seria traduzido como "o ser" sem a primeira letra maiúscula. Opto por usar "Ser" com letra maiúscula para ajudar na distinção entre este ser e o Ser tomado na sua generalidade como o modo primário de qualquer coisas que venha a ter alguma realidade.
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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Eneias, Dido, tragédia e o chamado do herói


"É o que vos peço; com o sangue vos lanço este apelo supremo. 
Tírios! Vosso ódio infinito em seu filho e nos seus descendentes
extravasai! É o que esperam de vós as minhas cinzas ardentes. 
Nenhuma aliança jamais aproxime os dois povos imigos".

DIDO, Eneida, Livro II, 5 (trad. Carlos Alberto Nunes)

No livro IV do épico Eneida, o poeta romano Virgílio narra como a paixão por Eneias domina a rainha cartaginesa Dido, deixando-a desatinada quando posteriormente o herói troiano parte para a Itália. O belíssimo e trágico episódio revela e justifica mitologicamente a inimizade ancestral que causará as futuras três guerras entre Roma e Cartago. 

Após o longo relato de Eneias acerca da queda de Troia e de sua fuga, apresentado nos Livros II e III, Virgílio descreve os crescentes efeitos funestos da paixão sobre a rainha. Ana, sua irmã, ouve as confidências da insone Dido que, ferida pela chaga do amor, não consegue afastar de sua mente as palavras, o valor e a linhagem do herói. Tão forte e corajoso guerreiro, que parece ser de origem divina, abalara sua fixa resolução de não mais casar com ninguém desde que fora assassinado seu legítimo esposo, Siqueu.

Dido afirma à irmã que prefere ser tragada para os abismos ou ser atingida por um raio de Jupiter do que violar o pudor e dar a outro aquilo que na sua mocidade fora dado a Siqueu nas sagradas núpcias. A declaração, encarada em retrospecto, prenuncia a tragédia de sua morte. Ana, por seu turno, tem o condão de enfraquecer o intento da soberana com suas palavras sobre a triste solidão da perpétua viuvez infértil e a indiferença dos Di Manes (os mortos) aos votos dos vivos.

Tantos dignos pretendentes foram rejeitados anteriormente pela rainha em sua obstinação! Ademais, Ana acrescenta, se Dido considerasse a fragilidade de seu reino, ameaçado pela animosidade dos povos guerreiros que o cercam, veria claramente a vantagem bélica da união com Eneias. O discurso da irmã, exemplo do mau conselho que encontra o terreno propício para gerar seus frutos, inflama o amor que arde no coração de Dido, introduz esperança na sua mente vacilante e dissolve o seu pudor.

Ana sugere que a soberana propicie os deuses com sacrifícios e que se esmere em atenção e hospitalidade para com Eneias, criando pretextos para tê-lo por perto tanto quanto for possível. Ela percorre os templos, realiza sacrifícios em honra de Apolo, de Baco, de Ceres e, em particular, de Juno, a diva esposa/irmã de Jupiter e protetora dos laços matrimoniais. Ansiosa, consulta os augúrios nas entranhas dos animais imolados.

O sacrificium (sacrifício) era o ritus (ritoṚta, no sânscrito, "ordem") central da religião romana antiga. Consistia na ação (facere) de tornar algo sagrado (sacer), caráter daquilo que pertencia aos deuses. Havia ritos sacrificiais cruentos e incruentos, públicos e privados. O tipo de animal a ser sacrificado variava de acordo com o deus a ser homenageado, seu lugar no panteão (animais brancos para os deuses superiores, negros para os Di Inferi) e seu sexo (em geral, machos para os deuses e fêmeas para as deusas). 

O ritus romanus (havia também um ritus graecus) iniciava com a praefatio, na qual o celebrante derramava incenso e vinho num braseiro aceso. Em seguida acontecia a immolatio, em que o dorso da vítima (probare) era salpicado com farinha salgada e sobre sua testa vinho era derramado. "A formosíssima Dido tomando na destra uma copa, verte-a de pronto entre os cornos de branca novilha sem manchas". O animal, cuja propriedade fora passada dos mortais aos deuses, era finalmente abatido com um golpe ou tinha sua garganta cortada por uma faca. 

O destino do sacer é ser morto em oferecimento aos divos. A vítima deveria dar seu consentimento ao sacrifício abaixando a fronte, o que era obtido no ritus romanus pelo uso de um arreio preso ao animal e no ritus graecus pela aspersão de água sobre a sua cabeça. Qualquer sinal de medo ou de pânico da vítima era considerado um mau presságio. O animal morto tinha seus órgãos internos (coração, fígado, pulmões, peritônio e vesícula) examinados pelo haruspex, o vate que lia os augúrios nas entranhas (exta) das vítimas, a fim de saber se eram normais, o que indicava que o sacrifício havia sido aceito pelos deuses. Caso não fossem normais, o sacrifício deveria ser repetido com outras vítimas até que a aceitação divina fosse obtida.

"As reses abertas e as palpitantes entranhas, ansiosa, de espaço examina". Dido busca augúrios nas entranhas dos animais sacrificados. Virgílio, porém, assevera que pouco valem o saber dos vates, os templos e os votos para a mente turbada pela paixão. Inflamada, vaga sem rumo pela cidade, tal uma cerva ferida por uma flecha que corre pelas florestas carregando por toda parte a seta encravada no corpo. Apresenta a cidade a Eneias, diante do amado interrompe subitamente o discurso, geme por sua ausência e não consegue tirar sua imagem da mente.

Juno propõe a Vênus, mãe de Eneias, uma aliança na qual Dido e o herói reinariam sobre Cartago e sobre os troianos exilados. Para tanto, a deusa criaria uma tempestade durante uma caçada, obrigando Dido e Eneias a buscarem abrigo numa caverna onde se uniriam pelos laços sagrados do himeneu. Vênus percebe a astúcia de Juno, cujo objetivo era impedir a todo custo que Eneias aportasse na Itália, mas aceita a proposta. O estratagema se realiza como planejado pelas divas, e Dido entrega-se a Eneias numa caverna. Esse é o dia fatídico e princípio de todas as desventuras da rainha.

Fama, a deusa do renome e do rumor, espalha a notícia da união por toda Cartago e para além de seus territórios. O rei Jarbas, um dos pretendentes rejeitados pela soberana, aos ouvidos de quem chegaram os informes de Fama, suplica a intervenção de Jupiter. O pai dos divos envia Mercúrio (o Hermes grego) a Eneias para lembrá-lo de seu destino como fundador de Roma. 

Mercúrio se dirige a Eneias censurando o seu pendor mulherengo que o faz esquecer das promessas que lhe foram feitas. Se a sua própria glória e a de seus ancestrais não o anima a abandonar Cartago, que pense então na de seu descendente, Ascânio, destinado a ser rei na Itália. O próprio pai dos deuses, Jupiter, o insta a deixar a África imediatamente. Entregue a mensagem, Mercúrio desfaz-se da forma humana assumida e desaparece no ar. 

Estarrecido, com os pelos do corpo arrepiados e incapaz de pronunciar qualquer palavra, Eneias é presa daquilo que o filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto denominou como "sentimento do numinoso" em sua obra magna Das Heilige (O Sagrado). O numen, na religião romana tradicional, significava o aceno, a força ou a vontade dos deuses. Otto utiliza o termo de um modo mais abrangente, entendendo-o como o sentimento característico do sagrado, o Mysterium Tremendum, a um só tempo fascinante e aterrorizante, qualitativamente irredutível a qualquer outro sentimento, e que permanece no fundo das religiões mesmo quando elas são racionalizadas por meio das doutrinas, dos conceitos e da moral.

"At vero Aeneas aspectu obmutuit amens,
arrectaeque horrore comae et vox faucibus haesit.
ardet abire fuga dulcisque relinquere terras,
attonitus tanto monitu imperioque deorum."

O numen paralisa Eneias, deixa-o arrepiado e mudo. É o aspecto do horror divino, do insólito, do estranho, daquilo que Otto chama de Ganz Andere, o "totalmente outro". A visão de Mercúrio desfazendo-se no ar gera espanto, estranheza, estupor. Por outro lado, o numen é também fascinans, fascinante, atraente e comanda obediência. Admirado, atônito (attonitus), Eneias é tomado pelo ímpeto de fugir daquelas doces paragens graças ao aviso (monitus) e ao comando (imperium) dos deuses.

Virgílio realiza um paralelo com Odisseu (Ulisses) retido na ilha da ninfa Calipso, episódio da Odisseia de Homero. Simbolicamente, a tentação do herói é deleitar-se realizando os seus próprios desejos, esquecendo dos seus deveres e dos seus objetivos primários. A peregrinatio, a viagem do herói, repleta de perigos e de trabalhos, é símbolo do retorno à casa, da volta ao centro do mundo. O retorno de Odisseu à Ítaca representa a restauração do lugar próprio das coisas na ordem da realidade. O rei retoma o que é seu por direito e elimina a desordem e a dissipação das forças dissolventes simbolizadas pelos pretendentes de Penélope.

Eneias é destinado a realizar o tradicional ato sagrado de fundação de uma cidade. Roma é o centro do mundo para o qual ele deve se dirigir. As possibilidades de outros caminhos, simbolizadas pela mulher (Calipso e Dido), podem reter o herói, isolá-lo (na ilha ou em Cartago), e impedi-lo de realizar seu lugar no esquema das coisas. Ele deve escolher entre as alternativas oferecidas por Tétis a Aquiles: a vida segura e tranquila seguida do esquecimento ou a vida cheia de trabalhos e de perigos que é coroada pela glória e reconhecida pela eternidade.

A intervenção divina, simbolizada por Mercúrio, o mesmo Hermes que comunica a Calipso a decisão régia de Zeus (Jupiter) para que deixasse Odisseu partir de sua ilha, recorda o herói de seu papel na ordem mais ampla da realidade. A piedade (pietas) de Eneias o obriga a obedecer aos numes e a garantir a grandeza de seus descendentes (Ascânio e os romanos). A partida de Eneias é determinada não pelo desejo pessoal, mas pela obediência aos decretos divinos e ao Fado que a todos submete.

A Fama alada revela à Dido os preparativos de partida das naus troianas. Como se tomada pela mania (Μανία) que acomete as bacantes nos cultos dionisíacos, a rainha percorre desatinada as cidade até alcançar Eneias, e ao encontrá-lo, submete-o às mais ríspidas reprimendas. Ao que o herói só pode responder que parte por ordem divina recebida, não por vontade ou por ingratidão pelos inúmeros préstimos recebidos. No entanto, nunca esquecerá a soberana onde estiver.

Dido não crê na justificativa de Eneias, o amaldiçoa desejando-lhe a morte, e diz que o perseguirá tal qual uma sombra, ouvindo seus clamores finais até no mundo inferior dos Di Manes (os mortos). O troiano aplacaria a dor da mulher amada e atenderia às suas súplicas para que permanecesse em Cartago não fosse a ordem expressa dos divos. Ao perceber que o pio Eneias tem a mente inflexível, Dido sente que o Fado estava contra ela e deseja a morrer.

Pior, os augúrios são funestos. No momento em que vertia incenso no fogo durante um sacrifício, Dido vê o leite enegrecer-se e o vinho tornar-se sangue. Virgílio exclama que é horrendo descrever a cena (horrendum dictu). Os sinais são de inversão do sagrado. A degradação dos elementos sacros é obsceno (obscenum), corresponde à polução (pollutio), contaminação ritual que interdita a participação nos ritos. Dido ouve a voz lamentosa de seu finado esposo no templo a ele dedicado, uma coruja geme nas torres altas, enquanto a rainha vaga sozinha na noite assolada pela lembrança de Eneias.

A paixão pelo herói, o arrependimento de haver quebrado os votos com o marido defunto (cuja voz parece cobrá-la do fundo do Orco), a decepção com os deuses e o ódio pela humilhação da rejeição misturam-se na alma da cartaginesa. Virgílio a compara com Orestes, o matricida atormentado e perseguido pelas Érínias (Fúrias, para os romanos), terríveis deusas ancestrais que vingavam os crimes de sangue enlouquecendo o culpado. Tudo conduz Dido ao funus (funéreo). 

No palácio, aparentando calma, Dido chama a irmã Ana e lhe confidencia que conhece uma sacerdotisa das Hespérides que havia lhe ensinado um hino (carmen) para curar o amor. As Hespérides, filhas de Nix (a noite), eram uma tríade de ninfas responsáveis por guardar um jardim de de maças de ouro localizado no monte Atlas, às margens do Okeanos (Oceano), o rio que circunda o mundo. Representam o Poente, o ocaso do Sol, e, nesse sentido, podem simbolizar aquilo que encontra o seu fim (nos dois sentidos do termo). 

O jardim onde vivem as Hespérides é protegido por um dragão, tema simbólico tradicional do protetor do tesouro. Cumpre recordar que o significado de Paraíso no persa é jardim, e que é comum que a localização do Paraíso esteja nos limites do mundo. Adão e Eva são expulsos do Éden e entram no mundo do trabalho, da dor e do sofrimento. Seu retorno é impedido pelo guardião, o querubim com a espada flamejante. 

Considerado no seu aspecto positivo, o fim simboliza o coroamento, a realização, a completude de algo que estava in fieri, em processo, e, portanto, ainda incompleto. tesouro é a recompensa que espera o herói ao fim da peregrinatio. No seu aspecto negativo, o fim é decaimento, privação, destruição, morte. Exterior ao mundus (ordem, ornamento) está a dissolução das formas. A ambiguidade ronda o alegado feitiço da sacerdotisa das Hespérides. O rito será de cura, de restauração da saúde da rainha, ou será de destruição, resultando em sua morte?

Dido prepara o rito da evocatio, rito no qual alguém ou algo era oferecido ao Dis Pater (Plutão), o senhor do Orco (Hades), o mundo subterrâneo dos Di Manes, as sombras daqueles que morreram. No pátio do palácio, ao ar livre, a pira é erguida com achas de pinho e azinheira, enfeitada com guirlandas e ramos fúnebres, e no seu cume são postados para serem queimados o leito, as roupas, a espada e a efígie de Eneias. 

A velha sacerdotisa, desgrenhada, evoca com seu hino três vezes as cem divindades do Érebo (escuridão ou Hades). Coletivamente denominados Di Inferi, são os deuses que habitam o mundo subterrâneo, como PlutãoProsérpinaScotusMorsHécateMortaNenia Dea, e também os Di Manes, entre os quais se encontram os Lemures ou Larvae, os mortos malignos ou sem descanso. A Hécate Trivia (deusa grega da feitiçaria) e Diana, ambas de três faces, e o Caos primordial são igualmente evocados. 

O caráter privado da cerimônia, em contraste com os ritos públicos sancionados na religião romana, realça a impressão funesta de feitiçaria. Dido lamenta longamente o seu infortúnio durante toda a noite, e pela manhã avista a esquadra de Eneias partindo. Evoca Juno, a Hécate e as Fúrias para que a desgraça e a morte alcancem o troiano. Amaldiçoa a raça romana que seria fundada por Eneias com a eterna inimizade dos cartagineses. Seus descendentes, no momento oportuno, vingariam a rainha ofendida.

"Hoje, amanhã, no momento mais certo em que o acaso os ajunte,
e força houver, briguem praias com praias e as ondas entre elas,
armas de guerra por tudo, até os últimos netos com forças!"

Dido, sobre a pira, lança-se sobre a espada de Eneias. O horror se espalha entre as mulheres. Ana tenta socorrer a irmã que se esvai em sangue. Sente-se ludibriada, pois era Dido a verdadeira vítima daquele sacrifício cruento. Três vezes a rainha tenta erguer-se sobre os cotovelos e cai estendida sobre o leito. Juno, compadecida, envia Íris para pôr termo àquele sofrimento. A mensageira divina inclina-se sobre a cabeça de Dido, corta seu cabelo (símbolo da oferenda), liberta-a do corpo para conduzi-la a Plutão."In ventos vita recessit". A vida dilui-se no ar. 

O episódio envolvendo Dido e Eneias é uma tragédia dentro do épico que permite a Virgílio justificar retrospectivamente a inimizade entre Roma e Cartago que resultará na completa destruição da última ao fim das guerras púnicas. A pietas do herói o isenta de culpa. A teologia do poeta romano reafirma aqui a noção de que os acontecimentos neste mundo seguem o numen dos deuses. 
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Para ouvir: trecho da ária Dido's Lament, da ópera Dido and Aeneas, composta por Henry Purcell (1659/1695), interpretada pela magnífica soprano americana Jessye Norman: 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o mal)


"Agora, alguém dirá: 'Se o Belo e Bom é objeto de anelo, de desejo e de amor de todos (pois mesmo aquilo que não existe anseia por Ele, como foi dito, e busca encontrar Nele o seu repouso, e assim Ele cria uma forma mesmo nas coisas informes, e, portanto, Ele contém, de fato, supraessencialmente aquilo que é inexistente), se isso é verdade, como é possível que a hoste demoníaca não deseje o Belo e Bom, mas, inclinada à matéria e caída do alto de seu afixado estado angélico de anelo pelo Bem, torne-se causa de todos os males para si e para todos os outros seres que descrevemos como maus?'

DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, Livro IV

No Livro IV de sua obra capital "Os Nomes Divinos", após o discurso sobre o Bem*, Dionísio Areopagita enfrenta a difícil questão da origem e da natureza do Mal. O problema já havia sido discutido na antiguidade tardia por filósofos de escol como Plotino, Agostinho e Proclo. A resposta dada por Dionísio segue de perto a solução básica oferecida pelos pensadores neoplatônicos que o antecederam. 

Primeiramente, o Mal não pode vir do Bem, pelo fato de que não é possível que o Bem seja tanto o fundamento da existência e da preservação das coisas quanto a causa da corrupção das coisas, como o Mal. Se tudo o que existe possui seu ser graças ao Bem, então nada pode vir do Mal, dado que este nem sequer pode existir por seu próprio poder. E, se o Mal existe, há algo nele de Bem, justamente aquilo que o faz existir. Não havendo no Mal nada de Bem, não possui existência possível.

O argumento de Dionísio deve ser entendido à luz do que foi dito nas páginas anteriores do Livro IV acerca do Bem. Analogamente ao Sol, que ilumina e revela as coisas visíveis, o Bem é a origem e sustentáculo de tudo o que existe, existiu e pode existir. E se usualmente se pensa que o Mal é o contrário do Bem, isto é, a corrupção e a destruição das coisasele é o não-Bem, a não-existência. 

Na verdade, nem sequer é correto pensar que o Mal seja o contrário do Bem. Para melhor compreendermos a questão, retornemos à identidade entre Bem e Ser. Parmênides demonstrou que só há e pode haver o Ser, pois o Não-Ser é precisamente a negação do Ser, a inexistência absoluta. Aquilo que é absolutamente inexistente é Nada, não possui e nem pode possuir qualquer realidade. Portanto, afirmar que o Nada possa existir é um contrassenso.

Ora, se a existência do Nada é impossível, então não há e nem pode haver o contrário do Ser. Segue-se daí que se o Mal é pensado como o Não-Ser, ele não existe e nem pode existir em nenhum sentido. Aquilo que não existe não possui nenhum poder. Como seria possível que o Mal tornasse algo real se ele mesmo não existe? Somente o Bem pode tornar algo real. Admitir que o Mal existe é afirmar que nele reside pelo menos o poder de existir, o que contradiz a sua absoluta inexistência. Mais ainda, se o Mal existisse, a sua existência proviria do Bem, o que o tornaria pelo menos parcialmente Bem.

Conclui-se que o Mal, considerado como a absoluta inexistência ou o Nada, não existe e nem pode existir, já que nada advém do nada. No entanto, é inegável que há algo a que damos o nome de Mal, caso contrário a virtude e o vício seriam idênticos. Sendo Bem tudo o que existe, não resta espaço para distinguir o homem virtuoso do homem vicioso. Considerar um santo e um assassino igualmente bons seria um patente absurdo.

Para resolver problemas filosóficos é necessário realizar as devidas distinções. Em primeiro lugar, o Mal, tomado como a inexistência absoluta, o Nada, certamente não pode existir, mas e quanto ao mal relativo? Reconhecemos que algumas coisas não existem hoje, outras não existiram no passado e existem hoje, outras não existiram no passado e não existem hoje, outras não existem ainda e algumas nem sequer existirão no futuro. Nada disso poderíamos afirmar se em algum sentido não fosse possível falar do Não-Ser. 

Não obstante, não afirmamos a existência do Não-Ser absoluto, o Nada (o que seria absurdo), mas do não-ser relativo a algo. O sentido da sentença "João não veio à aula" não é a afirmação de que não há absolutamente Nada. O que queremos dizer é que este ente da realidade, João, não se encontra presente naquele lugar, a sala de aula. A ausência de João é o seu não-ser na sala de aula, é relativo a um ugar onde João poderia estar. Certamente ele está em outro lugar (no cinema, por exemplo), o que permitiria afirmar que "João está no cinema". Todos os lugares onde João não está são a sua ausência, o seu não-ser naqueles locais.

Outrossim, quando afirmamos a existência de alguma coisa, não afirmamos o Ser absoluto, mas tão somente a existência deste ente. Ao menos nesse sentido, assim como distinguimos o Não-Ser absoluto do não-ser relativo, também podemos distinguir o Ser absoluto do ser relativo. O Mal, tomado absolutamente, seria o Nada, algo cuja existência é impossível. O Mal, tomado relativamente, seria o não-ser relativo, uma falta, uma ausência, uma privação.

Em segundo lugar, citando Aristóteles na Metafísica, "o ser se diz de diversas formas". Embora atribuamos realidade a muitas coisas, nem todas elas são exatamente coisas. Quando afirmamos "João está na sala" nos referimos a um ente que, grosso modo, existe de forma independente de todos os outros entes ao seu redor. É desnecessário lembrar que essa independência não é absoluta, e que ela se refere ao poder de existir sem estar dependentemente em outro (como a cor está dependentemente na camisa). 

Atribuímos existência primariamente aos entes que existem de modo independente. Secundariamente, atribuímos existência a tudo o que em algum grau existe dependendo de outro. Um atributo como a cor só existe dependentemente em algo (camisa, tela, muro, etc.). Ninguém negará a existência da cor, mas ela existe de modo mais tênue que a camisa na qual se encontra. A sereia existe somente na qualidade de ente de razão, algo que não possui realidade independente daquele que o pensa. Um time existe somente como uma configuração (conjunto ordenado de relações) passageira assumida pelos jogadores que possuem realidade independente uns dos outros.

As negações fazem sentido somente porque se referem a entes realmente existentes. Negar que João está na sala de aula não é afirmar que existe alguma coisa chamada ausência que aguardava fora da sala e que entra e ocupa o espaço de João tão logo este saia da sala. A ausência expressa o não-ser de João naquele lugar. É sempre em relação a algo que podemos formular negações. Ao falarmos sobre o Nada, a negação absoluta, temos a impressão de que atribuímos alguma existência àquilo que absolutamente não existe.

Essa impressão é ilusória, pois o Nada não adquire nenhuma existência pelo fato de nos referirmos a ele. Na realidade, não nos referimos ao Nada diretamente como se fosse algo. Ao negar a presença de João na sala, nós nos referimos à possibilidade não efetivada de um ente (que possui realidade independente) de estar colocado naquele lugar. A impressão de que a ausência possui alguma realidade vem justamente da referência a João. A ausência é sempre ausência de algo. A impressão de que o Nada possui alguma realidade vem da referência indireta a tudo o que existe efetivamente, e que só pode ser negado hipoteticamente no pensamento.

Feitas as distinções necessárias, o caminho para a solução do problema fica mais claro. Só o Bem concede ser e realidade às coisas, e o Mal não produz nada. A destruição ou a corrupção de um ente não é a produção de algo. É verdade que, tal qual diz a fórmula latina, corruptio unius generatio alterius ("a corrupção de um é a geração de outro"). Porém, não é a corrupção que gera um outro ser. 

Um animal morto se corrompe e de sua matéria vários seres vivos serão gerados. A corrupção pode ser a ocasião ou a condição que torna possível a geração de outros seres vivos, mas a geração utiliza o que ainda existe da matéria do animal, e se distingue do processo de deterioração que destrói o animal. Considerada em si mesma, a corrupção não produz nada. 

Outra consideração fundamental a ser feita é sobre a diferença e a hierarquia dos seres. Nenhum ente pode ser idêntico a qualquer outro ente. A diferença existe quando algo, seja lá o que for, que está presente numa coisa não está presente em outra. Isto é, deve haver algo, por mínimo que seja, que esteja presente neste ente e não esteja naquele outro. Dois vasos em tudo o mais idênticos se distinguem pelo fato de que a porção de matéria de cada um não é idêntica à porção de matéria do outro.

Não obstante, é preciso recordar que somente a presença é real e que a ausência é meramente falta, privação, não-ser. O que funda a realidade de um ente é a presença nele de um conjunto de atributos ordenado segundo determinada natureza (ou essência). Não é a ausência de certos atributos ou características que define a natureza de um ser. O tipo de ser do homem é definido pela presença da animalidade racional, o que implica a coincidência de vários atributos que pertencem também a outros seres e a ausência de outros tantos atributos que estão presentes em muitos seres.

Entre as diferenças que existem no mundo, estão aquelas de grau e de proporção.  hierarquia entre os seres baseada na proporção na qual cada um participa do Bem. Alguns possuem maior participação, enquanto outros possuem grau menor de participação. Nenhum ente limitado pode ser absolutamente Bem. Cada ente possui em si o grau de Bem que corresponde à sua natureza. tipo de ser que a coisa é corresponde ao grau da presença do Bem nele. A consequência é que a estrutura da realidade é constituída por uma desigualdade ontológica irredutível.

"Em suma, todas as criaturas, na medida em que têm ser, são boas e vêm do Bem. E na medida em que são desprovidas do Bem, não são boas e nem têm ser". Até os seres que militam contra o Bem só o podem fazê-lo pela existência que é dispensada pelo próprio Bem. Dionísio não está afirmando que todas as coisas são boas moralmente. O que está sendo afirmado é que a existência enquanto tal é uma participação no Bem. 

Por essa razão, mesmo o homem mau, na medida em que existe, participa do Bem. O réprobo, desprovido do Bem com relação aos seus desejos embrutecidos, de certo modo não existe e anseia por irrealidades. Mas na medida em que sente desejo e quer aquilo que em sua visão é a melhor vida, o réprobo participa do Bem. E ele só pode agir mal porque possui forças e atributos reais que o permitem realizar ações. Nesse sentido, mesmo as más ações dependem do Bem para que possam ser realizadas. 

O homem mau só consegue agir contra outro ser humano porque possui realmente o poder (nos seus braços, pernas, raciocínio, etc.) de realizar seu intento. Os elementos necessários para a sua ação estão presentes e funcionando do modo como deveriam, e todo esse conjunto é em si mesmo bom. O que não é bom é o objetivo, o fim que foi escolhido pelo homem. Sob essa perspectiva, o aparato do seu corpo é um instrumento bom utilizado para realizar um objetivo mau.

As ações do homem mau estão ordenadas à realização de um fim objetivamente mau, mas esse fim foi escolhido porque ele considerou-o benéfico em algum sentido e em alguma medida. Nem que seja a satisfação imediata e fugidia de um desejo mesquinho. A vingança é moralmente , o que não significa que não traga certa satisfação que pode ser subjetivamente encarada como um bem. O mal moral está justamente em trocar um bem (que pode ser difícil, distante no tempo, incompreendido, etc.) por alguma vantagem ou satisfação menor.

Nenhum ente pode ser o Bem absoluto, dado que qualquer ente participa do Bem, no sentido de que é uma manifestação limitada da presença do Bem. Sendo assim, então nenhum ente pode ser o Mal absoluto, pois o Mal é o Não-Ser, a falta, a privação. Um ser qualquer que fosse totalmente mau seria inexistente. A desordem completa não pode existir, uma vez que a existência, por si mesma, exige alguma ordem mínima.

O Mal é sempre relativo, só existe indiretamente por referência a algo bom que esteja ausente ou diminuído, e depende do que há de bom na coisa. Por assim dizer, o Mal é parasitário, sua "realidade" é a da diminuição ou da ausência de uma propriedade em algo que de fato existe. Poder-se-ia afirmar, inclusive, que a existência do Mal, enquanto não-ser, é ilusória. Dionísio assevera que o Mal é não-existente.

A partir do que foi argumentado, resta óbvio que Deus não pode ser mau em nenhum sentido. Como o Absoluto, o Infinito, poderia conter qualquer falta, diminuição ou privação? E quanto às criaturas, elas podem ser naturalmente más? Se o fossem, elas seriam desde sempre más, sua natureza seria má. Ocorre que a natureza de um ente é constante, é a sua ordem intrínseca. O Mal não pode ser constante, caso contrário seria ordenado, e, por conseguinte, seria bom. 

Tampouco os demônios são naturalmente maus, afirma Dionísio:

"Eles são chamados maus porque falham no exercício de sua atividade natural. Portanto, o mal neles é uma deformação, um declínio de sua condição própria, uma falha, uma imperfeição, uma impotência, uma fraqueza, perda e lapso daquele poder que preservaria neles sua perfeição.(..) Por isso, os demônios não são maus enquanto realizam sua natureza, mas tão somente quando não a realizam."

Os seres humanos e os animais também não são naturalmente maus. A depravação da alma humana é uma deficiência com relação às boas qualidades e atividades. Os animais, por mais brutos que sejam, não são maus, ainda que algumas de suas características pareçam nocivas. O leão sem a sua ferocidade não seria um leão, e não poderia manter a sua existência. O Mal é a destruição da natureza, a fraqueza e a deficiência das qualidades, atividades e poderes naturais de um ente.

Alguns afirmaram que o corpo e a matéria são intrinsecamente maus. O corpo pode ser feio ou enfermo, o que significa que ele é apresenta respectivamente deficiência na forma ou diminuição na ordem. Tais males não o tornam mau por natureza. A matéria não pode ser má, dado que é elemento necessário da constituição dos entes deste mundo. Não é mau aquilo que entra na composição de certos entes e torna possível a sua existência, que é o bem primordial.

Sequer é cabível dizer que o Mal luta contra o Bem. A falta é impotente em si mesma para agir de qualquer modo. Somente é possível afirmar que o Mal possui existência no sentido de falta, privação, diminuição de algum bem em algo realmente existente. O Mal não possui um ser substancial e nem imutável. Ao contrário, é indeterminado, indefinido, insubstancial como a sombra de uma pessoa, acidental, desarrazoado, estéril, inerte, incongruente, desordenado.

Alguém poderia argumentar que vemos pessoas realizando ações más que são reais e que têm efeitos e consequências reais. Nesse caso, o mal moral só existe na medida em que é uma falta em pessoas que, justamente por serem reais, são capazes de produzir resultados na realidade. Não é pela maldade que são produzidos tais efeitos. O homem incontinente age porque é um ente real, o seu poder de ação deriva da realidade das potencialidades, capacidades e poderes que nele residem. A sua maldade consiste na falta de continência na ação, assim como o descontrolado é alguém deficiente no que tange ao autocontrole.

A ação é real porque é um ato que deriva sua realidade dos poderes de um ser real. A ação é não pelos poderes ativos desse ser real, mas porque é praticada num nível moral deficiente. Em vez de agir com a continência adequada à situação concreta, o incontinente age num nível de continência inferior ao que seria exigido. A omissão também pode ser moralmente condenável. O covarde que permanece calado quando a justiça demanda o protesto verbal se furta de agir de modo adequado numa situação de tensão ou de perigo.

Na linguagem comum, os termos ruim mau são igualmente aplicados a seres inanimados quando eles apresentam deficiências ou faltas. A cadeira ruim ou má cadeira é aquela que não possui suficientemente as características essenciais que correspondem ao que é uma cadeira. Ela pode ser pequena demais ou grande demais, pode ter uma perna faltante ou de comprimento diferente das outras. Todo o resto da cadeira que está adequado ao exigido desempenhará sua função conforme o esperado. Da mesma forma, um defeito numa parte da máquina, a depender de sua função no todo, não impede que as demais partes funcionem normalmente. 

A deficiência é a falha na medida (logos, proporção, forma, natureza) própria de algo. A ação é desmedida em algum de seus aspectos, seja nos objetivos, na adequação, na oportunidade, nos meios, na intensidade, etc. Enquanto deficiência ela não é algo, é uma diminuição em algo. A ação é com referência à moralidade por ser inadequada às exigências morais. A ação não é em tudo aquilo que se refere aos poderes naturais do homem que a tornam possível e que funcionam normalmente. 

O braço da pessoa que agride fisicamente outra pessoa não é mau, apenas está sendo usado instrumentalmente para realizar um objetivo mau, inadequado, deficiente. Quando vemos uma ação , a sua realidade reside somente naquilo que é necessário para realizá-la e que funciona normalmente. As consequências e os efeitos da ação também são reais segundo as potencialidades, capacidades e funcionamento ordenado daquelas realidades sobre as quais ela é exercida.

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Leia também: https://oleniski.blogspot.com/search/label/Dion%C3%ADsio%20Areopagita

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos IX - X - Dos conjuntos)


"Diz-se que é conjunto o que está junto com, contíguo, que está pegado, que está próximo. Conjunto é uma totalidade, pois ele é tomado como um todo"

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.53

O capítulo IX de "A Sabedoria da Unidade" discorre sobre os conjuntos, e sobre as relações que se estabelecem entre as partes e o Todo. Quando se trata de um todo lógico (eidético noético), concebido pela mente, suas partes são as notas que o constituem. O todo real, ao contrário, constitui-se de partes hiléticas, atuais, fisicamente separáveis. 

Existem partes essenciais em um todo, sem as quais o todo se desfaz. Por exemplo, em se tratando do conceito de "ser humano" ("animal racional"), suas notas essenciais são "animal" e "racional". Se qualquer uma dessas notas for retirada, o conceito é obliterado. Há outras partes, desde que não sejam essenciais, que podem estar ausentes ou podem ser removidas sem que o todo deixe de existir. Um homem sem braço não deixa de ser humano. 

O conjunto é o que está junto com, unido como um todo. Possuindo partes, estas são chamadas elementos quando são irredutíveis a qualquer outra parte. O conjunto pode ser pleno (já se encontra na realidade) vazio (não possui ainda quaisquer elementos), possível (seus elementos são possíveis) e impossível (elementos são impossíveis). Os elementos são irredutíveis se não podemos derivá-los de outras partes mais simples, e se, retirando-se os elementos, o todo deixa de existir. 

A água deixa de ser água no momento em que seus elementos constituintes, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, são separados na análise química. Ou seja, a água perde o logos da água quando seus elementos são retirados ou separados. O que não significa que as moléculas não possam formar outras substâncias químicas ou conjuntos em combinação com outros elementos. As duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são os elementos irredutíveis que formam o logos da água: a fórmula H2O. 

O ponto, a linha, o volume são elementos sem os quais não poderia haver o espaço tridimensional, e também não são redutíveis a outros elementos. Algo é irredutível enquanto permanece dentro de seu logos. O fato biológico não pode ser reduzido à dimensão físico-química, embora na vida haja elementos físico-químicos. Estes não são suficientes para explicar o fenômeno biológico. Os fatos psicológicos não podem ser reduzidos à fisiologia cerebral, em que pese o fato de que a fisiologia cerebral esteja implicada nos fatos psicológicos. 

"Ora, compreendendo a multiplicidade dos logoi, vemos, então, que a irredutibilidade é proporcionada a cada logos, havendo, portanto, uma redutibilidade, sim, mas com corrupção, deixando de pertencer àquele logos" (p.55). 

A irredutibilidade significa que há um limite intrínseco na divisão de um todo além do qual ele deixa de ser o que é, e corrompe sua estrutura essencial. Por exemplo, os logoi da biologia e da psicologia não são redutíveis indefinidamente a quaisquer de suas partes. Quando reduzidos respectivamente às dimensões físico-química e fisiológica, eles deixam de ser o que são, corrompem-se, e se tornam outras coisas.

Os conjuntos plenos são unidades, e, portanto, obedecem às leis da unidade. Há uma harmonia entre as partes que é dada por uma norma, e esta, como já visto no caso das unidades, pode ser acidental ou substancial. Os elementos estão ordenados, uns sendo o ponto de partida para os outros (o ponto é o princípio da linha, etc.) ou implicados uns nos outros (a linha está implicada na superfície, mas não vice-versa).
 
Os conjuntos vazios possíveis (ainda não realizados, atualizados) são regidos pelas leis da potência real, aquela que é princípio de ação  ou de afecção. Potencialidades contrárias não são contraditórias enquanto permanecem potencialidades. João pode ou não ir ao teatro, mas uma vez que tenha ido, não pode ter ido ao teatro e não ido ao teatro ao mesmo tempo. A possibilidade de ir ao teatro é realizada, tornada real, naquele momento em que João foi efetivamente ao teatro. A possibilidade de não ter ido ao teatro, não pode mais se realizar naquele momento. 

Ao atualizar uma possibilidade, outras são rejeitadas, e outras ainda adquirem um fundamento para a sua realização futura. João escolheu ir ao teatro, e, por isso, não pode mais escolher ir ao cinema, uma das tantas possibilidades rejeitadas. Tendo ido ao teatro, no entanto, João abre um conjunto de possibilidades. Ele pode sair do teatro e jantar num restaurante próximo, o que não poderia fazer se tivesse ido ao cinema do outro lado da cidade ou tivesse permanecido em casa.

A atualização de uma potencialidade corresponde à negação da potencialidade contrária e à virtualização de potencialidades que se tornam passíveis de realização futura graças àquela atualização. As potencialidades negadas, embora não possam mais ser atualizadas, não deixam de ser potencialidades reais. Por assim dizer, elas pertencem ao mundo  alternativo "daquilo que poderia ter sido". E aquilo que se efetivou na realidade, e já não mais existe, também não deixa de ser uma potencialidade real. Ela foi realizada, não pode mais se efetivar porque já foi real.

João foi ao teatro. Não pode mais ir ao teatro naquele momento (ou situação). Pode ir no futuro, sem dúvida, mas não pode mudar o que aconteceu: o fato de ter ido ao teatro. Tanto as possibilidades rejeitadas por João ao escolher ir ao teatro quanto o fato passado de que efetivamente foi ao teatro entram naquilo que Mário Ferreira chama de epimeteico. A efetivação de um possível que acarreta a virtualização de outros possíveis, ele chama de prometeico.
 
No conjunto pleno a potencialidade é real e subjetiva, isto é, enraizada no sujeito (subjectum, supósito) existente, em algo que existe. Se tomamos um conjunto qualquer, há uma série de potencialidades que ali estão contidas por conta da sua natureza intrínseca. Está sob o poder de um time de pedreiros, por exemplo, erguer uma casa. Certos materiais reunidos num conjunto possuem capacidades determinadas.  

A potência real subjetiva não corresponde a todas as possibilidades lógicas, mas somente àquelas de um determinado ente  (ou conjunto) da realidade. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas de um conjunto, podemos também conceber e estudar essas potencialidades mesmo que o conjunto em questão seja meramente possível.  Conhecendo as potencialidades reais de uma casa, posso conceber as vantagens e desvantagens de construí-la, os materiais necessários e suas respectivas potencialidades reais, etc.

As impossibilidades ou potências irreais são aquelas que não possuem qualquer fundamento para existirem. Um conjunto formado por entes ficcionais (Sherlock Holmes, Drácula, etc.) é um conjunto irreal e impossível, não existe e nem pode ser trazido à existência por ninguém. Entes cujos conceitos implicam contradição (triângulo quadrado), ou conjuntos formados por eles, são absolutamente impossíveis. 

Observe-se que um conjunto é vazio porque seus elementos não existem. Não obstante, isso não significa que ele seja impossível. Um conjunto formado por máquinas que não existem é vazio. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas dessas máquinas (ou de seus materiais constitutivos), não havendo nelas individualmente ou em conjunto nenhuma contradição, nada impede que elas possam ser construídas. Se serão ou não construídas, isso dependerá de outras considerações.
 
A falta de condições materiais e de trabalhadores qualificados pode impossibilitar a construção dessas máquinas. Porém, existe aqui apenas uma impossibilidade relativa, não uma impossibilidade absoluta como a de um conjunto de triângulos quadrados. Elas serão efetivamente construídas se mudarem as condições que ora impedem a sua construção. Ao contrário, quaisquer que tenham sido as condições no passado e quaisquer as condições futuras, nunca houve e nem haverá um conjunto de triângulos quadrados. 
 
No caso das máquinas inexistentes, nada impede que examinemos esse conjunto vazio a partir das potencialidades reais e subjetivas que contém. É mesmo possível examinar intelectualmente um conjunto cujas potencialidades reais e subjetivas não se efetivaram. Um historiador pode examinar situações e acontecimentos alternativos baseado somente nas potencialidades reais e subjetivas daquele conjunto que poderia ter se realizado. 
 
Obviamente, um conjunto que poderia ter sido é vazio, e tornou-se impossível no momento em que foi preterido pela efetivação de outro conjunto. Nada impedia lógica e metafisicamente que o conjunto A se efetivasse no lugar de B. Todavia, no momento em que B se efetivou, então, pelo princípio da não-contradição, A não poderia se efetivar ao mesmo tempo. O conjunto A continua sendo metafisicamente possível em qualquer outro momento que não aquele no qual B se efetivou. 

Os conjuntos A e B não entram em contradição enquanto são possíveis. Somente quando um deles se efetiva na realidade é que o outro necessariamente fica impedido de se efetivar ao mesmo tempo. Aquele que foi preterido, embora sendo possível, torna-se impossível para aquele momento, e entra no âmbito do epimeteico, daquilo que poderia ter sido efetivado e não o foi. Mas como sempre foi algo possível, não há impedimento algum em examinar as suas potencialidades e quais seriam as suas consequências se houvesse sido efetivado.
  
O conjunto dos triângulos quadrados é zero, não pode ser pensado em termos de possibilidade que não foi efetivada. É um conjunto absolutamente impossível porque seus elementos são instrinsecamente contraditórios. A contradição não se refere a quaqluer coisa que possua alguma aptidão para ser, por mínima que seja. Afirmar o contraditório é afirmar nada.
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domingo, 20 de outubro de 2024

Eneias, piedade e religião romana na "Eneida" (Livro II)


“Tudo o que agora acontece se passa de acordo com os planos das divindades."

CREÚSA, Eneida, Livro II, 775 (Tradução de Carlos Alberto Nunes)

No decurso do segundo livro da Eneida, épico composto pelo poeta romano Públio Virgílio Maro (70/19 A.C.), são apresentados vários aspectos importantes da religião romana tradicional. O poema narra as agruras e as peripécias de Eneias, o herói fundador de Roma, desde a queda de Troia ante as hostes dos aqueus até a sua chegada na Itália após longa e custosa viagem marítima. 

Na Ilíada, Homero relata a cólera de Aquiles em meio à campanha dos gregos contra os troianos, e vai até os funerais de Pátroclo, enquanto Virgílio, no primeiro canto da Eneida, anuncia que irá cantar "as armas e o varão" que, já em alto mar após a destruição da sagrada Ílion, tantas dores sofreu na viagem que o conduziu ao Lácio, onde daria nascimento à raça latina. 

Enéias é notável pela pietas (piedade)*, a virtude (virtus) romana da reverência e do respeito para com as leis, os ancestrais e, principalmente, os deuses da cidade. A religião tradicional de Roma, a religio, constituía-se numa série de deveres recíprocos que uniam os homens e os incontáveis deuses em uma comunidade. Tratava-se sobretudo de "etiqueta" ou de "ortopraxis" cívica que não implicava obrigatoriamente qualquer vínculo sentimental entre o ser humano e as divindades.

O historiador John Scheid, no seu "Introduction to Roman Religion" elenca as características principais da religião romana: ausência de revelação (no sentido abraâmico), dogmas ou ortodoxia doutrinal;  tradicionalismo centrado na observação minuciosa dos ritos e dos deveres determinados de acordo com o nascimento e a posição social do indivíduo (família, cidadania, cargo, etc.); forte senso de bem-estar comunitário que, se não excluía a experiência individual, privilegiava o pertencimento à comunidade e, em particular, aos grupos dentro da comunidade; ausência de um ensinamento moral especificamente religioso ou espiritual e de autoridades supremas (como o papado).

Enéias não é culpado de impietas, a negação intencional ou por negligência das honras devidas aos deuses, então o poeta invoca a Musa a fim de recordá-lo da razão de tão grandes tormentos sofridos pelo herói: a ira de Juno (Iūnō, a Hera grega), esposa-irmã de Júpiter (Iūpiter, o Zeus grego), ofendida pela escolha de Páris Alexandre (que preferiu Vênus no célebre certame de beleza entre as divas), pelo rapto do belo jovem troiano Ganimedes (tomado por Júpiter como amante), e, principalmente, pela futura destruição de Cartago, sua cidade predileta.

Caso Eneias chegasse vivo à Itália, ali fundaria a raça romana, "belicosa e arrogante", que no devido tempo destruiria Cartago, segundo o que foi tecido pelas Parcas fiandeiras. Virgílio alude aqui às três guerras púnicas (265-146 A.C.), um dos maiores e mais sangrentos conflitos da Antiguidade, que resultou na queda e na completa devastação da cidade líbia pelas legiões da então república romana. A Eneida, portanto, tem o seu motor nos esforços de Juno para impedir a realização do decreto das Parcas**, as três deusas ancestrais (Nona, Decima, Morta) responsáveis por fiar, medir e cortar as tramas das vidas dos mortais e dos deuses. 
 
O destino de Eneias espelha o desafio de uma deusa, Juno, aos decretos das Parcas, forças mais arcaicas no interior do mundo divino. A predileção ou a aversão por determinados mortais, povos e cidades, causa de inúmeras rivalidades entre os deuses, era tema tradicional da mitologia grega, como testemunha a poesia épica na Ilíada e na Odisséia. O conflito entre a geração dos Olímpicos e os Titãs foi tema da poesia teológica de Hesíodo, a Teogonia, e das tragédias de Ésquilo Prometeu Acorrentado e a trilogia Orestíada.

"Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?". Com tais pensamentos, Juno, a soberana dos divos, convoca Éolo, deus dos ventos, e este lança tormenta sobre a frota de Enéias que, por fim, desembarca na Líbia, onde, guiado e protegido por sua mãe Vênus (Venus, a Afrodite grega), é recebido por Dido, a rainha de Cartago. No belo livro II, o herói troiano narra à soberana o famoso episódio do cavalo de Tróia, o horror do saque e da destruição da cidade e a sua posterior fuga da terra natal. 

"Timeo danaos et dona ferentes". A despeito das advertências do vidente Laocoonte, que teme os dânaos (gregos) mesmo quando dão presentes, os troianos trazem para dentro dos muros de sua cidade o imenso cavalo de madeira que, sem o saberem, porta dentro de si escondidos os seus inimigos. À noite, os aqueus saem do equino, incendeiam a cidade e iniciam horrendo massacre. Eneias reúne um grupo de bravos guerreiros troianos e se lança à pugna sangrenta.

Consternado, o herói testemunha a desdita de Cassandra, filha dileta de Príamo, rei de Troia, amarrada e arrastada por Ajax para fora do templo onde se abrigava. A mesma que, amaldiçoada por Apolo com o dom da profecia sem que jamais a ninguém pudesse convencer, pouco antes advertira os troianos do que aconteceria se o cavalo entrasse na sagrada cidade. 

No furor da destruição, destaca-se Pirro, ou Neoptólemo, o ímpio filho de Aquiles, responsável pelo triste fim do nobre rei Príamo. Pela boca de Eneias, Virgílio narra a coragem patética do vetusto soberano que, vendo seu reino e seu lar conspurcados, veste sua antiquada armadura e empunha sua espada sem gume a fim de enfrentar os indomáveis aqueus. A rainha e esposa, Hécuba, vendo o marido partir para a morte certa, o traz para junto de si, onde também estavam as suas filhas, abrigadas todas em torno de um altar ladeado por antigo loureiro.

O referido altar era dedicado aos Lares, divindades domésticas protetoras das casas e dos palácios, e, portanto, tratava-se de um recinto sagrado. Na religio romana, o sacer (sagrado) correspondia àquilo que juridicamente pertence aos deuses. O profanus (profano), por contraste, correspondia ao que não era propriedade dos divos. Segundo John Scheid, o sagrado não era alguma espécie de "força mágica" que residiria nos objetos, mas sim uma simples qualidade jurídica:

"Como toda propriedade pública ou privada, a propriedade dos deuses era inviolável, mais ainda porque seus proprietários eram terrivelmente superiores aos homens e a sua vingança era inexorável. O verdadeiro sentido de sacrilégio era a violação da propriedade divina." (Scheid, p.24)

O termo sanctus (santo) era aplicado a qualquer coisas cuja violação constituísse um sacrilegium (sacrilégio). Leis, tratados, tribunos, tumbas, embaixadores, pessoas comuns e até os deuses poderiam ser considerados santos. Descumprir um tratado que foi oficializado por um sacrificium (sacrifício) ou matar um embaixador eram exemplos de violação do santo. O sacrilégio, especificamente o ato de roubar ou de causar prejuízo ao sagrado, era parte da impietas (impiedade).

A impiedade consistia em negar aos deuses as honras devidas, intencionalmente (prudens dolo malo) ou não (imprudens). Neste último, quando a ofensa se dá por negligência, por erro ou por qualquer outra modalidade em que não esteja presente a malícia deliberada, o mal pode ser expiado via sacrifício ou via reparação material dos danos. O caso oposto, quando a ofensa é deliberada, o mal é inexpiável. A comunidade se desvencilha para sempre do ofensor entregando-o à justiça dos deuses (sacratio) e fazendo sacrifícios apaziguadores.

Desde a religião grega, havia veneranda tradição de acordo com a qual ninguém que estivesse sob a proteção ou nas dependências (τέμενος) de um templo, de um santuário ou de um altar poderia ser retirado, atacado ou morto, sob pena de sacrilégio. Tomado de fúria, Neoptólemo persegue e mata Polites na frente de seu pai Príamo. O rei protesta contra esse ato desnecessário de pura crueldade, e invoca a lembrança de Aquiles que fora honrado ao concordar com o pedido de Príamo de que devolvesse o corpo de seu filho Heitor (canto XXIV da Ilíada).

Neoptólemo, insensível, responde ao velho que vá ele próprio ao Hades contar a Aquiles as proezas de seu filho degenerado. Assim dizendo, arrasta o idoso trêmulo cujos pés resvalam no sangue de Polites, e agarrando-o pelos cabelos, enterra sua espada até o fim da lâmina no peito frágil do rei. O sacrílego Neoptólemo traz sobre si mesmo, ipso facto, a sacratio (sagração), ritual romano que punia certos crimes entregando o ofensor aos Dii Inferisoberanos do Orcus (Hades): Dis Pater (Plutão) e Proserpina (Perséfone). Nessa autoconsagração, o criminoso tornava-se sacer (sagrado), propriedade dos divos do subterrâneo, num sentido negativo de horror. 

                                      (Neoptólemo mata Polites na frente do rei Príamo)

O pio Eneias recorda-se então de seu velho pai Anquises, de sua esposa Creúsa e de seu filho Ascânio, e temendo que tivessem idêntico destino que Príamo, imediatamente corre para a sua casa com a finalidade de proteger seus entes queridos. No caminho, encontra Helena, abrigada num altar, sozinha, rejeitada por todos. Seria certo permitir que retornasse a Micenas, para o leito de Menelau, onde viveria cercada de servas enquanto tantos troianos perdiam a vida ou eram escravizados? Refletindo que lá estava a causa primeira das desgraças que se abateram sobre Tróia, a fúria o possui, e o herói avança na direção da grega com intenções homicidas. 

Vênus, tão brilhante que faz da noite dia, aparece ao filho Eneias, toma-lhe a destra, e reprova a cólera que o domina. Não é Helena ou Páris a causa de tanto infortúnio, diz a mãe, e sim a inclemência dos deuses (divum inclementia). Retirando a cortina que cobre os olhos do herói, a diva revela a realidade que os mortais não conseguem enxergar. Ele vê Netuno (Poseidon) abalando as fundações da cidade, Juno instigando os aqueus nos portões ocidentais, Minerva (Atena) do alto da torre ameaçando os teucros com a Górgona terrível, e mesmo Jove (Júpiter) anima os dânaos e convoca os outros deuses para a batalha. 

A teofania demove Eneias de seu intento. Vênus desaparece na noite, não sem antes ordenar que deixe de lado a luta e vá proteger os entes queridos. Ao contrário do celerado Neoptólemo, a pietas do troiano o impede de cometer o sacrilégio de matar Helena, alguém sob a proteção do altar sagrado. Ademais, a sua cólera é apaziguada pelas palavras da deusa e mãe. Note-se, en passant, que foi a funesta cólera (μῆνις) de Aquiles, pai de Neoptólemo, a causa "de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos", segundo afirma Homero no primeiro verso da Ilíada. (trad. Carlos Alberto Nunes)
 
Tendo alcançado sua casa, Eneias encontra seu pai, sua esposa e seu filho pequeno vivos e bem. Todavia, o velho Anquises recusa-se a fugir e a deixar para trás a sua terra amada. Um augúrio acontece: uma chama sobe a testa do pequeno Ascânio sem o queimar. Impressionado, Anquises roga aos divos que confirmem o sinal. Imediatamente um trovão ilumina o céu no seu lado esquerdo, seguido por uma estrela que se dirige ao sacro monte Ida. O prodígio o convence da ordem divina de abandonar a cidade.
 
Na religio romana, o augúrio era um sinal dos deuses, requerido ou inesperado, cujo sentido benéfico ou funesto deveria ser interpretado pelo áugure. A observação e a interpretação desses sinais era uma das práticas oraculares mais importantes para os romanos. A inauguratio (inauguração), por exemplo, era a caerimoniae (cerimônia) pela qual os áugures interpretavam os augúrios e determinavam se um terreno estava livre para ser utilizado sem violar qualquer propriedade divina. Outra prática oracular era o auspicium (auspício), a interpretação do voo dos pássaros no céu realizada pelos áuspices.***

Eneias atravessa a cidade em chamas na direção do monte Ida carregando o pai Anquises sobre os seus ombros, o filho Anquises conduzido pela mão, a esposa Creúsa seguindo-o logo atrás. O pio herói solicita que o progenitor traga consigo os Penates (divindades domésticas como os Lares), pois ele estava coberto do sangue da batalha e só poderia tocá-los após limpar-se nas águas do rio. Eneias, tendo matado a tantos, encontrava-se maculado pela polluo (polução), o que o impedia de tocar nas imagens dos Penates enquanto não estivesse casto (puro).

Analogamente, na religião grega, o miasma (μίασμα) era uma polução que maculava a pessoa quando esta tinha contato físico com cadáveres, com sangue (inclusive menstrual), ou quando era culpada de matar alguém. Embora não tivesse explicitamente uma conotação moral, o miasma interditava a participação nos ritos sagrados da polis (sacrifícios, festas, etc.). A hagnea (ἁγνεία), a pureza cultual, era readquirida somente pela realização dos katharmoi (kαθαρμοι), rituais de purificação que incluíam banhos em rios sagrados. Para os gregos, Apolo era, par excellence, o deus das purificações.

No meio do caminho, Eneias percebe que perdera Creúsa de vista. Deixa Anquises e Ascânio no templo de Cibele no monte Ida e retorna transtornado para buscar a esposa. O cenário doloroso do saque de Troia pelos aqueus o deprime. Brada muitas vezes pela consorte, e desespera-se pela ausência de resposta. Eis que um infeliz simulacro, a sombra de Creúsa aparece-lhe, de muito maior imagem (imago). 

A esposa estava morta? A expressão "infeliz simulacro" (infelix simulacrum) parece indicar que já não se trata da Creúsa que acompanhava o marido na fuga. E o termo "sombra" (umbra), traduziria a percepção grega tradicional de que são as ψυχές, as sombras dos vivos, que descem ao Hades? Sua maior estatura, no entanto, sugere divinização ("apoteose", ἀποθέωσις). Por exemplo, no mito narrado no Hino a Demeter, atribuído a Homero, a deusa, vagando pela terra até então incógnita, revela a sua divindade à rainha Metaneira mudando a sua forma e aumentando a sua estatura. 

Seja como for, Eneias ouve a repreensão de Creúsa emudecido e assustado. Por que ele se entrega a tantas dores? "Non haec sine numine divum eveniunt". Essas coisas não acontecem sem o numen (a vontade ou o poder) dos deuses. Eneias, ela profetiza, ainda sofreria um longo exílio e teria muitos trabalhos antes de desembarcar na Hespéria (Ἑσπερια, como os gregos chamavam a Itália), onde corre o rio Tibre. Lá, um reino e uma rainha de alta estirpe o aguardam.

Quanto ao destino de Creúsa, Eneias não deve se preocupar. Sendo nora de Vênus, ela foi poupada por Cibele, a Grande Mãe (Magna Mater), da terrível humilhação de ser escrava das mulheres dos aqueus. O herói tenta por três vezes abraçar a esposa amada, mas a aparição escapa entre os seus dedos e desaparece. A intangibilidade dos mortos é um tema recorrente na literatura antiga. Vide a aparição do eidolon (εἴδωλον, imagem) de Pátroclo que Aquiles tenta abraçar no canto XXIII da Ilíada.

Obediente aos deuses e aos Di Manes (os entes queridos falecidos), o piedoso Eneias parte de Troia numa jornada que culminará no ato sagrado da fundação de Roma. 
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* A εὐσέβεια, "eusebia" grega.
** As Parcae correspondem às três Moiras (Μοῖραι) entre os gregos: Lotho, Láchesis e Átropos.
*** Os termos "agouro" e "auspicioso" têm origem nessas práticas.