quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro I)

"Provamos, ao comentar a Teologia Mística, com base em Platão tanto quanto em Dionísio, que o princípio do universo deve ser mais apropriadamente designado como o Uno em si mesmo e o Bem. Mostramos também que tal princípio é superior ao intelecto e a qualquer inteligível, quão eminente possa ser. Portanto, nenhum intelecto alcança o Bem por um ato intelectual, mas por meio de uma união que é mais verdadeira e melhor que o entendimento."

MARSILIO FICINO, Comentários aos Nomes Divinos

Os tratados atribuídos a Dionísio, o pagão convertido ao Cristianismo pelo apóstolo Paulo no Areópago ateniense (Atos, 17), tiveram uma influência incomensurável na mística e na teologia cristãs desde o seu aparecimento. Textos como a Teologia Mística, Hierarquia Celeste, Hierarquia Eclesiástica e Os Nomes Divinos, representam uma das fontes, junto com Agostinho de Hipona, do neoplatonismo que estará presente durante todo o curso da Idade Média e das épocas posteriores. Não à toa, o mago, padre e filósofo renascentista Marsilio Ficino, em seus comentários aos Nomes Divinos, considerará Dionísio como a culminação da doutrina platônica, "doctrine Platonice culmen". 

A questão central do tratado acerca dos nomes divinos é esclarecer como devem ser entendidos os diversos termos e expressões que a Deus são atribuídos nas Sagradas Escrituras. Sendo o princípio último de tudo o que é real e de tudo o que é possível, o Senhor necessariamente não pertence à classe dos entes deste mundo, e, portanto, não sofre de suas deficiências e de suas limitações. Dito de outro modo, o Princípio é necessariamente superior àquilo que ele principia. 

Assim sendo, nenhum dos termos e das expressões empregados para designar Deus adequam-se a Ele como se adequam às coisas das quais Ele é o Princípio. Dionísio inicia seu discurso já advertindo que, como regra, só devem utilizar-se aqueles termos e nomes revelados pelas Sagradas Escrituras. Essa admissão dos nomes bíblicos deve se dar de uma forma inefável, ultrapassando tanto as nossas capacidades racional-calculativas quanto nossa capacidade intelectiva.

A razão para isso é que a natureza divina é "supraessencial" (ὑπερούσιος, superessentialitas), isto é, está para além das essências. As essências correspondem às naturezas das coisas, ao seu modo de ser, ao tipo de ser que elas são. Deus, na Sua natureza indizível, ultrapassa infinitamente quaisquer essências das coisas limitadas das quais Ele é o princípio. Na medida em que só podemos conhecer o que é limitado, o conhecimento da natureza divina para nós equivale à ignorância. 

Podemos e devemos crer na infalibilidade das Escrituras e empregar somente os nomes ali revelados. Daí não se segue, entretanto, que haja qualquer possibilidade de se compreender Deus como compreendemos algum ente da realidade que nos cerca. A incompreeensibilidade divina é insuperável para nossos poderes de entendimento. Não é possível conhecer os inteligíveis pelos sentidos ou pela imaginação, pois eles são realidades incorpóreas, intangíveis e sem forma (αμορφία).

Analogamente, não é possível conhecer intelectualmente o Princípio que ultrapassa os inteligíveis, o Uno supraessencial, o Intelecto que ultrapassa o intelecto, νοῦς ἀνόητος. Sendo a Causa Universal  da existência, Ele mesmo não existe, pois está para além de todo Ser. Isto é, se consideramos como Ser a característica mais fundamental de tudo aquilo que existe ou pode existir, e sabemos que cada ser é limitado individualmente e em sua essência (seu tipo de ser), então mesmo a atribuição de Ser ou de existência não se aplicam ao Princípio.

Marsilio Ficino, comentando essa passagem, esclarece que "mesmo os Aristotélicos pensam que essência e ser, como os mais comuns atributos, são atribuídos às coisas pelo princípio que é mais comum, e pela causa que é mais universal e mais poderosa. Os Platônicos, por sua vez, supõem exatamente que o primeiro princípio é separado da essência e do ser". Diferentemente dos aristotélicos, os platônicos não veem a fonte do Ser e das essências como um ser, mas, ao contrário, como aquilo que ultrapassa todo o Ser.

Ficino se refere ao fato de que para os platônicos o mundo do Ser é sempre o mundo da multiplicidade. No momento em que um ser X se afirma na existência como X, ele já nega todas as possibilidades de não-X (A, B, C, D...). Consequentemente, o Ser é o âmbito no qual se instaura a limitação, pois ser X implica a limitação de não ser quaisquer das possibilidades de não-X. Para um platônico, então, o Princípio não pode se encontrar na dimensão do Ser, na multiplicidade e na limitação, mas sim naquilo que ultrapassa o próprio Ser.

Na Enéada 5, Plotino identifica o Ser ao Intelecto (νοῦς), o âmbito das verdadeiras substâncias, as Ideias eternas e absolutamente estáveis. A sua estabilidade e a sua real existência provém da definição e da forma. Esse é o cosmos noético, o mundo dos inteligíveis, que empresta inteligibilidade a todos os entes. Plotino afirma que o Ser não pode estar suspenso na indefinição, isto é, tudo aquilo que possui ser é ao mesmo tempo algo inteligível, compreensível, graças à definição que lhe fornece a sua essência, seu tipo de ser.

A inferência é clara: só possui inteligibilidade aquilo que é definido, portanto limitado. Só compreendemos o que é inteligível, portanto aquilo que está para além do mundo da limitação é para nós incompreensível. Plotino ensina que Platão denominava "Pai da causa" aquilo que estava na origem do Intelecto ou Ser, a saber, o Bem que é Supraessencial. O Uno, ou o Bem, dado que é o fundamento da multiplicidade, é anterior à Identidade e à Diferença, e ao Número. 

"Antes da Díada está o Uno. A Díada vem em segundo, e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe definição à ela, enquanto o Uno mesmo é indefinido", afirma Plotino. E acrescenta que Parmênides não estava longe disso quando identificou o Ser ao Intelecto, e afirmou que só há pensamento dentro da Esfera do Ser, que tudo contém e nada é externo à ela. Platão, no Parmênides, fez a mesma coisa, quando distingue o Um, propriamente dito, do um-muitos (o Ser). Aristóteles, embora ensinasse que o primeiro princípio era separado e inteligível, ao afirmar que ele pensa a si mesmo, não pôde mais fazê-lo o primeiro princípio de todas as coisas. 

Ficino comenta que pela luz natural da razão humana podemos saber que Deus existe, o que Ele não é, o que Ele cria e como é Sua governança do mundo, e, por fim, qual a condição das coisas com relação a Ele. Mas pela razão natural é impossível saber a Sua natureza. A razão natural é poder de conhecimento que todos os seres humanos possuem por serem seres humanos. Dado que a nossa razão discursiva e o nosso intelecto só alcançam as essências limitadas, elas não podem penetrar na vastidão infinita do Princípio. 

A única forma de ultrapassar tais limites é um tipo de "união divina" por meio de "um tipo de luz que é mais que natural", afirma Ficino. É preciso compreender que essa união, experimentada inclusive por Plotino quatro vezes em sua vida, implica no desaparecimento de toda dualidade, mesmo aquela que há entre sujeito e objeto. Não à toa, ao fim dessa unio mystica, nada ou quase nada pode ser dito por aquele que a experienciou. Tudo permanece um mistério insondável tanto para o agraciado por essa união quanto para aqueles que tentam compreender o que se passou com o místico.

Dionísio prossegue afirmando que, mesmo com todos os nomes revelados pelas Santas Escrituras, a natureza divina permanece supraessencialmente inacessível. A luz do Princípio se difunde e alcança as coisas de acordo com as suas respectivas capacidades. Só Deus conhece Deus. As coisas O conhecem somente na medida de seu próprio ser. A doutrina neoplatônica aqui exposta é a da famosa participação. 

Participar é ter parte em algo. É receber parte de ou atuar de modo limitado em uma realidade. Nunca há identidade entre o participante e o participado, isto é, o participante sempre está no âmbito da parcialidade e da limitação. Se digo que Pedro e João são dotados de Razão, não quero com isso afirmar que eles são idênticos à Razão. Pedro e João possuem não a Razão de forma absoluta, mas somente de forma parcial. Ambos possuem o mesmíssimo conjunto de características essenciais da Razão, só que sempre em medida limitada. 

Assim, a luz divina se manifesta igualmente em todos os seres sem que isso implique que os seres sejam essa luz infinita. O seu próprio ser é uma limitação, um "afunilamento" de uma realidade que, em si mesma, é infinita e sem limites. Ficino expressa essa verdade dizendo que "o conhecimento de Deus em Si mesmo existe em Deus acima das essências. Não obstante, o conhecimento de Deus nas coisas subsequentes não transcende os limites da essência". Deus somente conhece Deus tal como Ele é. Nós conhecemos Seus rastros no mundo. Vemos os raios de luz, não o próprio Sol. 

As coisas dependem absoluta e ontologicamente de Deus. Em seu comentário, Marsilio Ficino descreve essa dependência nos seguintes termos:

"Tudo aquilo sobre o que falamos nas coisas depende inteiramente de Deus, e igualmente Deus está presente como o mais profundo interior em todas as coisas (...) Olhe para uma imagem, se houver, em um espelho. Ela (a imagem) depende de tal modo da pessoa viva, que sua essência, poder, mudança, e repouso são a própria pessoa - a pessoa viva que está olhando a si mesma no espelho. Muito mais, então, Deus, Ele próprio, é a essência das coisas, a vida, o poder, o ato, a perseverança, a perfeição, a reforma. E, nas almas, Ele é sua pureza, iluminação, perfeição e divindade."

A analogia de Ficino significa que a imagem no espelho não é a pessoa viva que olha a si mesma pelo seu reflexo. A imagem (εἰκών, ícone) é uma representação, uma imitação da pessoa que se posta diante do espelho. Ela depende de modo absoluto da pessoa da qual é a imitação. Mas não há identidade entre ambas. A imagem participa, possui algo, da pessoa real. Trata-se de semelhança, jamais de identidade. A pessoa é a essência da imagem no sentido de que é a pessoa que transmite, sempre parcialmente, tudo aquilo que sustenta a existência tênue e fugidia da imagem.

A representação não existe a não ser a partir do representado. Ela é uma figura limitada, circunscrita e insubstancial do ente verdadeiro da qual é uma representação. A imagem esculpida de Atena jamais será a deusa de glaucos olhos. Não haveria a escultura sem a deusa que ela representa. Porém, a estátua é uma imagem da venerável deusa que imita alguns de seus atributos, sem jamais igualar-se substancialmente àquela que saiu da cabeça de Zeus completamente armada.

Ficino recorda que, por mais que Deus esteja no mais profundo das coisas, Ele é o Princípio supraessencial, e que não há comensurabilidade entre Ele e as criaturas. Dionísio afirma que Deus é o "princípio acima do princípio" por conta de Sua supraessencialidade. Ele é a Vida de tudo aquilo que vive, o Ser de tudo aquilo que existe, a Origem e a Causa de tudo que existe, existiu e vai existir. Deus é analogamente a pessoa diante do espelho que é a fonte da tênue existência da imagem refletida.

A inefabilidade e a incognoscibilidade do Princípio foram recobertas simbolicamente pelas Escrituras com termos provenientes do mundo sensível, como véus sagrados*, roupagens que nos permitem acessar imperfeitamente o Inacessível. Dionísio faz alusão a um tratado de sua autoria intitulado Teologia Simbólica que, infelizmente, não chegou a nossos tempos. Ele ali considera os nomes divinos apresentados nas Escrituras como símbolos. Qual seria o sentido desses símbolos? 

A filósofa, teóloga, santa e mártir Edith Stein, em um estudo dedicado à teologia simbólica de Dionísio Areopagita (curiosamente um dos seus últimos textos antes de sua prisão e de seu assassinato em Auschwitz), aponta que os Mistérios Divinos se manifesta sob os véus das espécies sensíveis. Os símbolos das Escrituras demandam interpretação para que não sejam tomados em sentidos grosseiros e literalistas. Aquele que souber compreendê-los encontrará neles muitos traços de luzes reveladoras:

"Tal é justamente o sentido desses símbolos: trata-se afastar aquilo que é santo do olhar profanador dos tolos, e de apresentá-lo àqueles que buscam a santidade, que se libertaram das representações infantis, e que adquiriram uma sabedoria suficiente para entrar na consideração da simples Verdade."

Dionísio prossegue no seu texto reafirmando a incognoscibilidade sensível, imaginativa, racional e intelectiva de Deus. O Uno, o Supraessencial, o Bem Absoluto é inacessível até aos anjos, e as comunicações místicas que esses seres têm com Deus estão para além da descrição e do seu conhecimento natural. Do mesmo modo, aquelas entre as almas que entram nesses estados de união são introduzidas e deificadas, por meio da cessação de suas atividades naturais, na Luz que ultrapassa a Divindade, e só concebem celebrar seus louvores negando a Deus todos e quaisquer atributos.**

Deus é "a Causa de todas as coisas, e, ainda assim, Ele mesmo não é nada, pois transcende supraessencialmente todas elas", afirma o Areopagita. Não é justo celebrar a Supraessência da Divindade como Razão, Poder, Mente, Vida ou Ser. Os escritos sagrados afirmam que Deus possui a um só tempo muitos nomes e, ainda assim, permanece sendo o Inominável. Os nomes que Ele recebe são os reflexos d'Ele nas coisas. Na qualidade de Bem, Deus é a Causa, a Origem e o Fim de todas as coisas. 

Consequentemente, todos os nomes Lhe pertencem, dado que as perfeições com as quais O nomeamos têm sua exclusiva origem Nele. Todas as coisas, enquanto contidas no Princípio, são o próprio Princípio. Ficino comenta que "todas as coisas estão e igualmente não estão em Deus, da mesma forma que uma casa está em um arquiteto, como as formas dos membros estão no vegetal e na natureza seminal, como o calor está no Sol, os números no número um, como o comprimento de uma linha está contida no ponto".

Em Deus, nenhuma das coisas residem na forma finita na qual existem aqui ou são imaginadas aqui. O que é múltiplo nas coisas, em Deus é absoluta Unidade. Pela via da excelência, Deus é todas as coisas em tudo. Pois Nele tudo é absoluto poder, o próprio Deus ilimitado. Ficino usa uma fórmula próxima da coincidentia oppositorum empregada por Nicolau de Cusa. Em Deus tudo é Deus. Nada disso implica qualquer identificação substancial entre o Princípio e o principiado. 

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Leia também: 

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* Na Kabbalah, um dos símbolos da manifestação das coisas é o Pargod, o véu visível por trás do qual se esconde o Ain Soph, a natureza imanifestada e imanifestável, indizível e incompreensível de YHWH. No mundo muçulmano, o tema dos véus de Al'lah é também frequente.
** Compare-se essa negação dos atributos divinos às doutrinas de Ibn Sina e de Moisés ben Maimônides sobre o mesmo tema: 
Νεκρομαντεῖον: Ibn Sina e a natureza de Deus (oleniski.blogspot.com)
Νεκρομαντεῖον: Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus (oleniski.blogspot.com)

Um comentário:

Mauricio Santos disse...

Como sempre muito bom o texto ...porem bastante denso vou levar um tempo p compreender melhor...De qualquer forma obrigado por compartilhar conhecimento com a gente 🤗