quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro II)

"Deus não é nem as partes, nem nenhuma das partes, tampouco é o todo ou a totalidade, dado que se assim fosse Ele seria dependente de algum outro. Não obstante, por uma razão diferente, Ele é todas essas coisas, pois o bem que está presente nelas Ele o possui também. Ele não possui o bem da mesma forma que elas (assim parecendo que o possui impropriamente), mas, antes, Ele o possui mais eminentemente e primordialmente. Mais eminentemente, isto é, em um grau eminentemente maior. E primordialmente, isto é, antes que elas o possuam no tempo e igualmente na natureza."

MARSILIO FICINO, Comentários

No segundo livro de Os Nomes Divinos, Dionísio Areopagita, o santo a quem se credita tradicionalmente a autoria desse texto, adverte o leitor de que a bondade, a vida, o ser, o domínio, a sabedoria e a justiça devem ser atribuídas a Deus igualmente nas Suas três Pessoas. A explicação é que há nomes que são atribuídos à Trindade inteira e nomes que pertencem a cada uma das Pessoas divinas separadamente.

Marsilio Ficino comenta que a Tearquia, o mais comum dos nomes de Deus invocados por Dionísio, significa a "primeira Deidade da divindade e o princípio de cada divindade". Note-se que a Deidade da divindade é o fundo comum às Pessoas divinas, o fundamento, a essência do ser divino. Em termos dogmáticos, trata-se da substância que torna a Trindade consubstancial, e não permite que se caia em um triteísmo. Não são três deuses distintos e separados, mas sim uma trindade de Pessoas que compartilham uma e a mesma natureza divina.

Os nomes que se referem a esse fundo substancial comum de Deus são atribuídos igualmente e sem distinção ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Todos eles, segundo Ficino, significam simples perfeição e excelência. Outros nomes há que só se aplicam às Pessoas separadamente, como Pai e Filho. Embora haja uma única natureza em ambos, a distinção se mantém somente na medida em que é necessário indicar a diferença entre o gerador (Pai) e o gerado (Filho). 

Dionísio enfatiza sua ortodoxia mostrando que as próprias Escrituras empregam por vezes um método de Diferenciação, e, por vezes, um método de Indiferenciação. Pertence exclusivamente ao Pai gerar e ao Filho ser gerado, o que não significa que o Filho seja de natureza inferior ao Pai (há uma só natureza divina), ou temporalmente posterior ao Pai. A diferença consiste no fato de que o Filho tem sua origem no Pai e não o contrário. 

Os nomes indiferenciados são aqueles que podem ser empregados para designar a totalidade da divindade, sem distinção entre as Pessoas. O primeiro tipo dos nomes indiferenciados é aquele no qual se indica a superabundância divina, como nos termos Supraessencial, Supradivino, Supravital. O segundo tipo é aquele no qual se indica uma relação causal entre Deus e as criaturas, como Bom, Justo, Existente, Sábio. Os nomes diferenciados são Pai, Filho, Espírito Santo, bem como aqueles que se referem à humanidade de Cristo.

Em Sua unidade última, Deus é aquele que ultrapassa toda afirmação e toda a negação. Nesse sentido, há uma só e a mesma natureza inefável que deve ser atribuída igualmente às três Pessoas. Uma unidade transcendente, sem confusão das Pessoas, analogamente às fontes de luz em uma casa que, apesar de serem diferentes umas das outras, seus raios unem-se sem nenhuma mistura. Quando as luzes forem separadas, nenhuma delas será diminuída em sua potência. 

Dionísio passa em seguida a expor as doutrinas de Santo Hieroteu, seu mestre, acerca da divindade de Cristo, que é a causa de todas as coisas, que preenche e preserva todas as coisas, sem ser parte ou todo. Mas é parte e todo no sentido de que compreende em Si mesmo todas as coisas, possuindo-as de modo eminente. Ele é a perfeição das coisas imperfeitas, e nas coisas perfeitas Ele é não-perfeito no sentido de que precede a perfeição  em excelência e em origem.

Hieroteu resume a doutrina dos nomes divinos nessa curta passagem. Retomando uma definição que formulamos anteriormente, a teologia negativa, ou teologia apofática, se caracteriza pela necessidade de negar a imperfeição para afirmar a perfeição e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição. Como Hieroteu ensina, quando comparamos as coisas imperfeitas de nossa realidade com Deus, vemos que Ele é a perfeição. Todavia, ao mesmo tempo, percebemos que a noção de perfeição que possuímos é muito limitada quando comparada à perfeição divina. 

Deus excede infinitamente, e é a origem de, qualquer perfeição que possamos imaginar ou conceber. Nesse sentido, Deus não é dignamente representado por essa noção limitada de perfeição que possuímos. Para evitar que se pense a perfeição divina em termos limitados, é necessário afirmar que Deus é não-perfeito, isto é, excede infinitamente a perfeição, é supraperfeito. A linguagem negativa preserva a infinita e incomensurável perfeição divina negando que ela possa ser expressa mesmo pelo conceito mais alto e mais sublime de perfeição que possamos conceber.

Deus dá origem a tudo sem se tornar múltiplo. É ser em um sentido supraessencial. Marsilio Ficino explica que Deus "ultrapassa as coisas supraessencialmente, pois Ele não está colocado no mais alto grau desses seres com o restante situado no segundo e no terceiro graus". O ponto é que Deus não pode ser entendido como o grau máximo de uma linha gradativa ascensional da qual fazem parte todos os seres. A diferença entre Deus e as coisas não é de grau, como pode ser a diferença entre algo mais claro com relação a algo mais escuro.

As coisas deste mundo são por definição limitadas, o que faz com que esse seja o mundo do mais e do menos. Todos os entes estão em alguma relação de maior ou menor quantidade e/ou de melhor ou pior qualidade com outros entes. A variação é própria da limitação que caracteriza os seres desta realidade. Deus não está nessa relação de mais e de menos, mas sim como fundamento que torna possível o mais e o menos. 

Utilizando uma analogia, a cor vermelha pode ser mais ou menos intensa. Neste objeto A o vermelho é mais intenso e naquele objeto B é menos intenso. Todavia, ambos são vermelhos. O que torna possível que A seja mais intenso e B menos é o caráter da qualidade vermelho presente nos dois. Mas o vermelho, enquanto qualidade, não é nem mais intenso e nem menos intenso. Ele é o padrão que, estando em A e em B inteiramente (o vermelho está inteiro em ambos), permite que haja gradação de intensidade entre A e B. 

O vermelho, enquanto padrão qualitativo, não é diminuído ou acrescido, não sofre mudança alguma pelo fato de que o vermelho em A é mais intenso do que aquele presente em B. Nesse sentido, o vermelho transcende as limitações das suas manifestações em A e em B. O vermelho é a Forma, o Padrão, a Razão, a Medida, o Logos que permanece o mesmo justamente para que nos seres possa haver variação e gradação. É o metro que torna a medição possível, e para que haja medição é necessário que ele permaneça inalterado para que as coisas mensuradas possam variar nas suas medidas.

A transcendência de Deus não é a da medida, da gradação, como se Ele fosse simplesmente o maior de todos em uma escala de entes de mesmo tipo. Note-se que, mais à frente na Idade Média, Anselmo de Ostia, mui platonicamente, definirá Deus como "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Isto é, Deus não é simplesmente o ser maior de todos. Deus está absolutamente fora de toda e qualquer gradação, dado que não se pode pensar nada maior que Ele. Em outros termos, nenhuma medida, por mais excelsa, faz jus a Deus.

Nenhuma intensidade de vermelho muda em nada o vermelho. Nesse sentido, o vermelho é o padrão absoluto pelo qual tudo que é vermelho é julgado. Nenhuma intensidade de vermelho no mundo, por mais excelsa que seja, pode "ultrapassar" o vermelho. Nem sequer faria sentido uma comparação desse tipo. O vermelho está inteiro nas coisas enquanto padrão, e simultaneamente está presente de modo limitado nas coisas enquanto grau de intensidade

Deus está presente nas coisas como Ser, Bondade, Razão, etc, mas se faz presente em medidas diferentes. Cada ente recebe os dons divinos segundo sua capacidade, dizem os platônicos. Isso significa que, por exemplo, se Deus dá o Ser aos seres, cada um terá uma dada proporção ou medida de Ser. Todos serão existentes, mas alguns terão a existência em grau maior do que outros. Um time esportivo tem existência somente na medida em que há jogadores, estes sim existentes de modo mais pleno.

Nada em Deus muda por conta das variações das coisas das quais é a causa. Uma vez que Ele está acima de tudo, então está acima até de todas essas perfeições que neste mundo se manifestam de modo múltiplo e gradativo. Não há determinações em Deus. O vermelho já é circunscrito, determinado, delimitado, pois o vermelho necessariamente não é o azul. Sequer essas limitações se apresentam em Deus. Por isso, como afirmava Ficino, Deus é "não somente indeterminado. Ele tem de ser também indeterminável."

Por fim, observe-se que na figura do Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, onde a natureza divina e a natureza humana estão unidas sem mistura ou confusão, realiza-se a síntese simbólica da realidade. Jesus, a perfeita Imago Dei, se manifesta aos homens como ser humano pleno, sem jamais perder nada de sua divindade. De um lado, há o homem, a limitação, a medida. De outro, o divino, o ilimitado, o infinito. O homem tem seu fundamento em Deus, e Deus se manifesta pelo homem. 

Cristo, uma só e mesma realidade, uma só hipóstase, simboliza o todo da Realidade, onde o limitado tem seu fundamento no ilimitado sem que haja qualquer tipo de mistura ou de confusão. Preservada está a transcendência absoluta de Deus ainda que esteja imanentemente presente no todo singular que é Cristo. Nesse sentido simbólico, a Realidade é um todo no qual estão presentes, unidos sem mistura ou confusão, o limitado e o ilimitado. O segundo é o fundamento transcendente do primeiro. O limitado é a Imago do ilimitado.

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