segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A influência da filosofia natural na teologia medieval



Se os mestres de artes não podiam tratar de questões teológicas porque não tinham a formação adequada para tal, os mestres de teologia, por sua vez, utilizavam livremente a lógica e a filosofia natural em seus tratados teológicos.

Os filósofos naturais estudavam as questões referentes às potencialidades, propriedades e operações inerentes às naturezas dos diversos corpos físicos. Em outros termos, sua investigação se resumia ao que se podia afirmar do que era observado no curso comum das coisas.

O teólogo tratava das realidades sobrenaturais, dos conteúdos de fé revelados por Deus nas Escrituras e na Tradição. Sob esse ponto de vista, o mestre de teologia afirmava certas realidades que ultrapassavam o campo da física e poderia defender a possibilidade de situações cuja existência a mesma física considerava impossível.

Desde o século XI os teólogos procuraram organizar sistematicamente e discutir racionalmente os conteúdos da fé usando as ferramentas da lógica. Tal esforço, é bom que se lembre, não tinha como objetivo fundar a fé na razão, ou seja, tentar deduzir os artigos de fé de premissas baseadas na experiência, como fazia a filosofia natural. Seu objetivo era esclarecer, o quanto fosse possível, as verdades sobrenaturais.

Com o advento das traduções das obras físicas de Aristóteles, o foco se deslocou um tanto da lógica para a filosofia natural. Os teólogos buscaram utilizar o conhecimento disponível em seu tempo para esclarecer e aumentar a compreensão daquilo que fôra revelado por Deus.

O livro das Sentenças de Pedro Lombardo foi o mais famoso tratado teológico da Idade Média e tornou-se o texto-base das faculdades de teologia. Sua estrutura rigorosamente lógica dispõe os temas mais relevantes, enumera as questões mais importantes e as possíveis respostas, em geral conflitantes. Através da análise das respostas possíveis, tentava-se alcançar uma resposta final que resolvesse o impasse sem contradições.

Os mestres de teologia dedicavam-se a comentar o livro de Pedro Lombardo, adicionando suas próprias respostas e, por vezes, formulando novas questões. Estas, muitas vezes, traziam forte influência da filosofia natural. Para resolver a questão do movimento dos anjos, por exemplo, diversos teólogos incluíam em suas respostas longas digressões sobre o movimento dos corpos físicos com o objetivo de esclarecer analogicamente o primeiro tipo de movimento pela consideração detalhada do segundo.

Nessa análise, os teólogos não se furtavam a utilizar os mais poderosos instrumentos lógicos concebidos nas faculdades de artes. De fato, muitas das questões formuladas por esses mestres de teologia tinham uma ligação muito periférica com temas de fé e pareciam ser apenas desculpas ou ocasiões para longas discussões de filosofia natural.

Algumas questões sequer eram teológicas, apesar de constarem em livros de teologia. Por exemplo, em alguns tratados se encontravam perguntas como "se todas as coisas foram feitas de uma só e mesma matéria." Esses temas eram tão explicitamente físicos e eram tratados de maneira tão profundamente racional que partes desses manuais de teologia chegaram a circular como livros de filosofia natural.

Isso significa que a teologia foi submetida à física? Não exatamente. A teologia mantinha sua autonomia justamente por suas premissas estarem baseadas não na experiência e nas verdades alcançáveis pela razão humana natural, mas nas verdades de fé reveladas sobrenaturalmente por Deus. E também porque os teólogos não tinham obrigação de restringir o poder divino àquilo que a física peripatética considerava possível, como bem mostram as reiteradas defesas da onipotência de Deus que culminaram nas condenações de 1277.

Todavia, seria natural perguntar porquê esses teólogos da Idade Média tardia utilizavam tanto a filosofia natural e a lógica, a ponto de incluir questões absolutamente estranhas à teologia em seus tratados ou comentários. Edward Grant sugere que a razão estava na própria educação desses mestres. Todos eles vinham obrigatoriamente de uma faculdade de artes, onde o estudo da filosofia natural e da lógica eram o centro das atividades acadêmicas.

Antes de ingressarem na faculdade de teologia, esses intelectuais foram mestres de artes e lecionaram por algum tempo aquilo que aprenderam. Não é de se admirar que, chegando à faculdade de teologia, eles quisessem utilizar seus conhecimentos em seu novo campo ou mesmo desenvolver intuições nascidas ainda quando eram mestres de artes.

Essa tendência de racionalização crescente das discussões teológicas é um dos mais claros testemunhos da preocupação medieval com os valores intelectuais. É razoável considerar que esses pensadores não encaravam esses esforços como meros jogos analíticos ou vãs disputas dialéticas, mas como meios de aprofundar e propagar a fé cristã. Ainda que este possa não ter sido o resultado final.

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