domingo, 4 de outubro de 2009

Martin Lings e a hierarquia dos saberes


"Se os antigos em geral não sabiam que a Terra girava em torno do Sol, eles no entanto sabiam que a alma individual, que corresponde à Terra, gira em torno do Sol interior, apesar da ilusão de que o ego humano é em si mesmo um centro independente, ilusão à qual o homem decaído, por definição, está sujeito em certa medida. (...) De fato, a maior parte daqueles que aclama a 'descoberta' de Copérnico como um dos 'marcos do conhecimento humano' têm sérias dúvidas, quando não uma descrença definitiva, acerca da existência mesmo do Sol interior. Não que a conquista do conhecimento mais baixo tenha acarretado diretamente a perda do conhecimento mais elevado, apesar da conexão entre ambos os fatos ser maior do que as aparências podem indicar. Mas a perda de um, com o ganho do outro,é inegavelmente conseqüência da mudança geral da 'perícia' humana do campo espiritual para o material."

MARTIN LINGS, Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas, p.67

Se a postura religiosa se caracteriza pela percepção deste mundo e das coisas que o compõem como signos e manifestações passageiras e relativas de uma realidade imanifestada e eterna, irredutível, inclassificável e incognoscível a partir de conceitos adequados às coisas deste mundo, a postura profana ou mundana se caracteriza justamente pela percepção do mundo como mero conjunto, mais ou menos fortuito, das coisas tomadas em si mesmas, em seu mero aspecto quantificável.

Como, a partir do ponto de vista profano descrito acima, as coisas não dizem nada além delas, e como o homem não consegue deixar de buscar um signo de algo superior no turbilhão de entes discretos que se lhe apresentam, ele busca freneticamente a satisfação plena em cada ente ao qual se apega. E o resultado necessário dessa empresa é uma desesperadora seqüência de decepções, pois nada que é limitado pode abrir de novo as portas do Éden.

Para Martin Lings, essa realidade que todos nós vivenciamos, com formas e intensidades variadas, é fruto de um longo processo de afastamento do conjunto dos princípios metafísicos puros, eternos e imutáveis que é sempre o mesmo a despeito das roupagens teológicas e rituais das distintas religiões tradicionais.

Assim, como nos diz Lings, se não se pode dizer que a verdade da relatividade do ego humano enquanto manifestação de uma realidade imanifestada que é o centro e sustentação de seu ser passageiro possa ter sido esquecida somente por causa da revolução científica do século XVII, por outro lado é inegável que haja nestes fenômenos uma ligação.

A revolução científica, que se caracterizou, como bem dizia Koyré, pela geometrização do espaço e pelo abandono do cosmos precipuamente qualitativo e hierárquico de Aristóteles, não seria possível se já não houvesse um movimento mais abrangente e profundo operando há muito. Poder-se-ia certamente traçar algumas de suas origens nos questionamentos da física aristotélica ainda nos séculos XIII e XIV na Universidade de Paris.

Entretanto, tais fatos não seriam determinantes para a compreensão do fenômeno, pois estaríamos tomando como causas aquilo que tem valor apenas de sintoma. Para Lings, o que está em jogo não é uma simples disputa de escolas filosófico-científicas, mas o reconhecimento de uma tendência humana irresistível de inverter aos poucos a hierarquia do conhecimento fazendo com que conhecimentos de segunda ordem, como aqueles fornecidos pelos métodos científico-matemáticos, sejam tomados como conhecimentos de primeira ordem, os quais por natureza deveriam ser princípios eternos e imutáveis da metafísica pura.

O conhecimento dos seres considerados enquanto objetos matemático-geométricos (para Aristóteles uma simples abstração incapaz de ser separada dos corpos reais e concretos) submetidos aos cálculos e à mensuração, se torna a regra do saber humano. É o que Guénon chamava de "materialismo", indicando com o termo muito mais do que uma escola filosófica, mas principalmente a tendência ocidental de tomar todas as coisas a partir do ponto de vista material, que é aquele da individuação e da divisão.

É a inversão hierárquica que torna possível e desejável a obtenção de tal gênero de conhecimento. A quantificação dos seres, redução do qualitativo ao quantitativo, característica do modelo moderno de ciência, é a realização do materialismo denunciado por Guénon, uma vez que a partir daí tudo se reduziria ao domínio do discreto.

É um único processo que liga a perda e esquecimento do conhecimento superior e a busca e entronização do saber de segunda ordem. Entretanto, este só é possível porque aquele já é realidade.

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