segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aspectos da tradição monista indiana




Os audazes cavaleiros arianos trouxeram com eles à Índia dravidiana um rico e diversificado panteão politeísta no qual os deuses e outras forças naturais são agradados, acalmados, e por vezes controlados, por complexas fórmulas rituais, passadas hereditariamente dentro da casta dos sacerdotes brâmanes.

Entretanto, esses deuses vão continuamente perdendo seu papel de protagonistas do grande teatro cósmico para assumirem o papel de coadjuvantes, ou melhor, de manifestações luminosas de um princípio infinito e sem atributos.

É na época dos grandes pensadores e místicos dos Upanisads que a busca pelo conhecimento afastou-se da ciência das fórmulas sacerdotais e dos deuses, sem jamais negá-los, e se orientou para a descoberta da essência última de todo mundo fenomênico, do qual mesmo os deuses fazem parte.


Essa essência se revela não numa pesquisa do mundo externo, mas numa decidida busca introspectiva que leva a ultrapassar o mundo captado pelos sentidos e o mundo sutil da psiquê e da personalidade que constituem o ego e alcança enfim o escopo último de todas as coisas.


Tat tvam asi
. “Tu és isso”, ensinam os Upanisads. Tu, e todas as coisas, nada mais são do que modificações passageiras e mutáveis de um princípio universal e eterno, que não é atingido por nenhuma das vicissitudes humanas, cujo mundo fenomênico é sua manifestação. Cada ser que observamos no exterior assim como nosso corpo e nossa realidade psíquica interior são manifestações desse princípio infinito, impessoal e sem atributos chamado Brahman.


Os deuses, os homens, os demônios, os animais, as plantas e os seres inanimados são manifestações desse mesmo princípio. Formas passageiras entrelaçadas no turbilhão mutável de namarupa. Nama pode ser traduzido por “nome” e rupa por “forma”. Namarupa designa assim o mundo dos nomes e das formas, o mundo fenomênico, a manifestação do princípio imanifestado.


Como diz o Brhadaranyaka Upanisad: "Assim como a aranha extrai de si mesma o fio e o recolhe novamente; assim como a erva cresce na terra e os cabelos num homem vivo, assim também o universo cresce a partir do Imperecível."


E o Mundaka Upanisad (2.1.1): "Assim como do fogo flamejante incontáveis faíscas se desprendem, sendo também fogo, da mesma forma do Imperecível diversos tipos de criaturas se originam e para Ele retornam."


O mesmo ensinamento é ministrado, em tempos posteriores, no Bhagavad Gita, “O Canto do Senhor” que faz parte do poema épico Mahabharata. Antes de uma grande batalha, o príncipe Arjuna, cuja carruagem se encontra entre os dois exércitos adversários, se questiona sobre a necessidade e a justiça daquela guerra fratricida.


No campo inimigo estão seus parentes próximos e Arjuna, um membro da varna (casta) dos Kshatryas (guerreiros e reis) se deprime diante da perspectiva de matar seus entes queridos. Sendo um guerreiro, seu dharma, seu dever assinalado por seu lugar no mundo, é matar seus parentes usurpadores nessa batalha. Seu auriga, Krshna, é uma manifestação divina e, diante do desânimo de Arjuna e antevendo o descumprimento do dharma pela recusa da ação, revela-lhe a doutrina suprema sobre a realidade.


Ele lhe diz que aqueles parentes contra os quais Arjuna lutará nada mais são do que formas passageiras de um princípio eterno. E
o sábio não se incomoda nem pelos vivos nem pelos mortos.

Assim diz Krishna a Arjuna (Gita, 2,18): "Estes corpos do incorporado que é eterno, indestrutível e incognoscível, são ditos terem um fim. Então luta, ó descendente de Bharata!"


O princípio eterno é chamado de Incorporado, pois os corpos são manifestações suas. Porém eles têm um fim, são passageiros, cambiantes e, de um certo ponto de vista, ilusórios. Por isso, não há razão para Arjuna se desesperar. Embora as manifestações cessem, Brahman permanece. Arjuna deve cumprir seu dharma.


Ele vai para a guerra, porém vai iluminado. Vai cumprir o dever que seu lugar no universo exige sem manchar-se pois ele agora sabe a verdade. Sabe que este é o jogo infinito das manifestações de Brahman. Sabe que os aspectos sutis e grossos de si mesmo e das coisas ao seu redor, bem como as alegrias e tristezas, desgraças e júbilos, dor e prazer, doença e saúde, vida e morte são namarupa, o mundo dos nomes e das formas, a manifestação do princípio imanifestado, são Maya.


No ápice da revelação, Krishna declara: “Eu sou a fonte de tudo. De mim tudo emana.” Tudo provém de uma mesma fonte, desde o santo até o assassino. E a tradição metafísica monista indiana se consolida na obra monumental do filósofo e santo Sankara Acarya que, com suas obras filosóficas e seus comentários aos Upanisads e ao Bhagavad Gita, desenvolve metodicamente a doutrina segundo a qual tudo é uma manifestação de Brahman e, em última instância, não é diferente dele.


Um comentário:

Fábio Creder disse...

Parece-me extremamente verossímil uma metafísica que dissocia Ser e Valor, e nisso mesmo talvez resida a sua incompatibilidade radical com o monoteísmo.