"Agora devemos proceder ao nome de 'Ser', o qual é verdadeiramente aplicado pela Ciência Divina a Ele que é realmente. Porém, e isso deve ser dito, não é o propósito de nosso discurso revelar o Ser Supraessencial em Sua Supraessencial natureza (pois é indizível, incognoscível e transcende a Unidade), mas somente celebrar a emanação da Absoluta Essência no universo das coisas."
DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, Livro V, 1
No Livro V de Os Nomes Divinos explica-se por qual razão o Ser, tão importante na filosofia grega desde Parmênides, em especial no platonismo/aristotelismo, é um dos nomes atribuídos a Deus. Seguindo a tradição neoplatônica, Dionísio esclarece de início que não pretende expressar a natureza divina em si mesma, pois ela é supraessencial (ὑπερούσιος), acima de toda e qualquer essência (οὐσία). A piedade (εὐσέβεια) exige que se respeite o inefável, o indizível (άρρητων) do mistério divino.
Ora, o que é possível afirmar sobre Deus é o que conhecemos a partir das coisas, sabendo que Ele as transcende infinitamente. Então, conhecemos mesmo o Ser na qualidade de uma emanação da natureza divina nos seres limitados. Nosso conceito ordinário de existência não alcança a maneira simples e indefinível na qual Deus existe, abarcando e antecipando todos os existentes em Si mesmo.
O Eterno antecede todas as coisas não no tempo, como algo que vem antes de outro, mas na qualidade de seu fundamento último e imutável. Deus recebe o nome Ser porque a existência é o primeiro dom que Ele concede às coisas. Quaisquer outros princípios ou características dos seres necessitam primeiro existir. Um gato existente possui todas as qualidades e propriedades comuns ao tipo de ser que ele é, porém antes de existir como gato, ele precisa existir. Óbvio, o seu ato de existir e o seu ser gato não se separam temporalmente, mas o ato de existir tem prioridade metafísica com relação a seu ser gato.
Os universais assim como os entes singulares têm na existência a qualidade primordial da qual participam, ensina Dionísio. Deus contém todas as coisas semelhantemente à unidade que indivisivelmente contém e antecede todo e qualquer número. A unidade é o princípio no qual os números estão contidos como possibilidades, e que se tornam atuais quando repetem limitadamente a unidade formando uma multiplicidade qualquer. Não obstante, a unidade permanece a mesma sem sofrer qualquer mudança.
Todos os raios de todas as circunferências possíveis estão contidos no centro adimensional, e só existem atualmente com referência a ele. O ponto central é o princípio que os antecede nele mesmo sem que jamais sofra qualquer mudança. Se retornamos do raio de uma circunferência existente na direção do centro, passamos por indefinidos raios de circunferências possíveis, todas igualmente contidas no ponto central do qual elas poderiam partir.
"E, então, não é surpreendente que, quando ascendemos das imagens obscuras à Causa Universal, contemplemos com olhos sobrenaturais todas as coisas, inclusive as que são mutuamente contrárias, existindo como uma indivisa Unidade na Causa Universal." (V,7)
O trecho acima repete o tema constante no platonismo do conhecimento que parte das imagens (εἰκασία) e da opinião (δόξα), ascende ao pensamento calculativo (διάνοια) e alcança a ciência (ἐπιστήμη ou νόησις) das Formas (ἰδέα) eternas. Ultrapassando as Formas, chega-se à ideia do Bem (Ἀγάθων), origem e fundamento daquelas. Dionísio dá à ascensão um sentido precipuamente ontológico. Subindo a partir dos sensíveis, a alma reconhece que as coisas inferiores estão contidas nas realidades que lhes são superiores, e estas, assim como todas as possibilidades não efetivadas, residem na fonte última e absoluta de todo e qualquer ser.
Tudo provêm do Uno (ou Bem), ensinava Plotino nas Enéadas, alguns séculos antes de Dionísio. As Formas são traços do Uno, e, em conjunto, formam o paradigma eterno em imitação (μίμησις) do qual é feito este Cosmos sensível das coisas cambiantes e perecíveis. Ora, o Cosmos contém contrários que são ordenados numa harmonia. O Uno, o poder supremo, contém em si eminentemente todas as coisas, mesmo aquelas que são mutuamente contrárias.
A mesma doutrina será exposta por Nicolau de Cusa, quase um milênio depois, na sua obra A Douta Ignorância. As coisas residem em Deus, enquanto possibilidades, numa coincidentia oppositorum, coincidência dos opostos. Não há contradição porque ali as coisas são meros possíveis dentro da Possibilidade Absoluta. Todos os raios de todas as circunferências possíveis estão contidos no seu centro, o ponto adimensional do qual partem, em referência ao qual eles existem, e para o qual retornam.
"Pois Ele não é isto sem ser aquilo, nem deve Ele possuir este modo de ser sem aquele. Ao contrário, Ele é todas as coisas enquanto causa de todas elas, possuindo e antecipando Nele todos os princípios e todos os fins de todos os entes. Está acima de todos eles porque, sendo-lhes anterior, transcende-os supraessencialmente. Por isso todos os predicados podem ser a Ele atribuídos simultaneamente, ainda que Ele não seja algo." (V,8)
Enquanto causa de tudo, e contendo em Si tudo o que há e pode haver, Deus não pode ser isto ou aquilo. Ser algo, não importa o que esse algo seja, significa ser limitado, pois ser um humano necessariamente exclui a possibilidade de ser um gato. Dionísio não está dizendo que Deus é um gato ao mesmo tempo que é um homem. Não se trata tampouco de um panteísmo, a afirmação de que tudo é Deus. As coisas não são Deus, mas Ele é todas as coisas no sentido de que as contém na qualidade de causa e princípio universal.
Ele é todas as coisas porque é o princípio das possibilidades do que pode ou não haver no mundo. Nesse sentido, e somente nesse sentido, podemos atribuir-Lhe todos os predicados que encontramos nas coisas. Mas isso não faz com que Ele seja algo. este ente e não aquele. Então, num aparente paradoxo, Deus possui todos os nomes e nenhum deles. Quando a alma ascende até o Princípio derradeiro, contempla ali tudo o que há e pode haver numa unicidade suprema anterior a qualquer identidade, diferença e multiplicidade, e percebe que tudo pertence a Ele sem que Ele se identifique com nada em particular.*
Plotino, nas Enéadas, admite que essa experiência, enquanto dura, não pode ser dita, nem há tempo para fala. Só depois se consegue raciocinar sobre ela. Não obstante, naquele momento, a alma iluminada tem completa confiança da presença do Uno. Não é possível dizer nada justamente porque ali não há nada distinto, separado, identificado como isto ou aquilo. Só há o Absoluto na sua unicidade originária incompreensível a qualquer ser limitado.
"Quando é iluminada, a alma possui o que buscava, e esse é o seu fim real: entrar em contato e ver essa luz por ela mesma, e não por qualquer outro, enxergar aquilo mesmo que torna possível que ela enxergue. Pois os meios de sua iluminação é o que a alma deve ver. Não vemos o Sol pela luz de outra coisa. Como, então, isso (essa experiência) se dá? Faça abstração de tudo." (Enéadas, V, 3 - 17)
A alma vê o Sol por meio do qual as coisas podem ser vistas. Dionísio usa também a analogia do Sol e diz que, embora permanecendo um, ele lança uma luz indivisa que faz aparecem as coisas, age sobre elas nutrindo-lhes, renovando-lhes, guardando-lhes, atualizando-lhes, fazendo-lhes crescer, mudar, frutificar, viver. Se o Sol contém antecipadamente nele mesmo na forma da unidade as causas das coisas que participam dele, Deus contém eminentemente tudo, inclusive as Essências das coisas existentes, em uma Unicidade Supraessencial.
Ele está presente em todas as coisas tal qual o som que permanece inalteradamente um e o mesmo apesar de ser ouvido por muitos. Porém, nenhum conceito e nenhuma medição interiores a este mundo, que tem a sua origem e sua sustentação Nele, podem ser aplicados adequadamente ao Princípio que é também o Fim de tudo. Segue-se disso que nem o nome Ser pode ser atribuído a Ele, e se o chamamos assim é porque o ser ou a existência é o dom primordial que todos os entes recebem ao entrar na realidade.
Deus está acima do próprio Ser se considerarmos que o Ser é o princípio que torna as coisas existentes como isto ou como aquilo, já sob as condições da identidade e da diferença. Portanto, o Ser é o princípio da limitação e da multiplicidade. Plotino considera o Ser (ou o Nοῦς) o começo de toda a multiplicidade, o Um-Muitos, pois nele se encontram reunidas todas as Formas, os verdadeiros Seres. Acima do Ser só há o Uno absoluto sobre o qual só é possível falar negativamente.
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* O mesmo tema é apresentado no Corpus Hermeticum, obra fundamental da tradição hermética:
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