PIERRE HADOT, La citadelle intérieure, p. 136
"Ser filósofo não é ter recebido uma formação filosófica teórica ou ser professor de filosofia, mas é, após uma conversão que opera uma mudança radical de vida, professar um modo de vida diferente daquele dos outros homens."(tradução minha)
PIERRE HADOT, La citadelle intérieure, p.25
A vida filosófica antiga é uma escolha existencial que engaja o homem inteiramente. O imperador romano Marco Aurélio (121-180 D.C.), um iniciado nos Mistérios de Elêusis, adotou o modo de vida filosófico pela influência do filósofo estóico Junius Rusticus, seu professor, amigo e conselheiro. Foi de Rusticus que o imperador recebeu o ensinamento do escravo-filósofo Epiteto, figura máxima do estoicismo. O imperador seguiu então os passos do escravo.
O filósofo e historiador da filosofia francês Pierre Hadot considera que as famosas Meditações de Marco Aurélio são exercícios espirituais que têm a função não de revelar os estados mentais de seu autor, mas sim de rememorar os princípios e os dogmas fundamentais da vida boa, reatualizando-os em sua alma. O imperador escreve precipuamente para ter sempre presente ao espírito os dogmas que compõem a regra de vida estóica.
Um dos princípios de Marco Aurélio assevera que não são as coisas externas que afetam a alma, mas são os juízos que alma faz sobre os acontecimentos que geram os sofrimentos. Só há o mal moral, isto é, o que depende de nós é como julgamos os eventos que não dependem de nós.
A disciplina do assentimento no imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio corresponde ao domínio que o sábio deve ter sobre seus juízos acerca das coisas sobre as quais ele não tem controle. Amiúde, o filósofo assevera que as coisas externas não têm poder sobre a alma. Isso significa que os acontecimentos externos não perturbam e não atingem o homem? Evidentemente, qualquer um sabe que somos constantemente abalados interiormente pelas vicissitudes e pelas alegrias da vida.
Ocorre que o sábio não pode e não deve ser como os outros homens. O sábio também é afetado por esses eventos externos até certo ponto. Se um urso o ameaça, ele recuará instintivamente, tal qual o homem comum. A diferença não está nessa reação de medo ou de espanto que se impõe ao indivíduo de forma imperiosa, sem que haja possibilidade de qualquer controle consciente. A reação é imediata, mas tão logo ela tenha passado, cabe à parte mais alta da alma, o "princípio diretor" (hegemonikon) ou razão, examinar o conteúdo objetivo daquele acontecimento. A impressão (phantasia ou, como alguns traduzem, "representação") deixada na alma pelo acontecimento deve ser avaliada para que se defina um juízo adequado sobre ela.
A fim de que haja um juízo, é mister que haja um critério de julgamento. O critério estóico é simples: "só há um bem: o bem moral; só há um mal: o mal moral". Isto é, aquilo que nos acontece proveniente dos eventos externos segue leis que não estão sob nosso controle e, por isso, não são bons ou ruins em si mesmos. São indiferentes. Por exemplo, a doença não é em si mesma boa ou ruim. Ela é um acontecimento natural, regido por leis naturais que têm seu sentido e sua justificação últimas na Razão que permeia o Cosmos como um Todo ordenado. Por isso, o único juízo adequado acerca das impressões desses eventos externos é afirmar que elas são indiferentes, nem boas e nem ruins.
Todavia, aquilo que está sob nosso controle é o juízo que fazemos sobre as coisas sobre as quais não temos domínio. De novo, a doença não é boa ou ruim, mas depende inteiramente do homem se ele formulará ou não um juízo adequado sobre esse acontecimento. Os homens sofrem menos pelas vicissitudes do que pelos juízos de valor que fazem sobre essas vicissitudes. Afirmar que esses eventos fora de nosso controle são bons ou ruins é adicionar um juízo de valor que não pertence a eles enquanto entes independentes de nós.
Não podemos escolher aquilo que nos acontece, mas podemos escolher como os julgamos. Essa é a cidadela interior da qual fala o filósofo Pierre Hadot, intérprete do pensamento de Marco Aurélio. Há no homem uma cidadela inexpugnável, livre e capaz de julgar adequadamente as coisas sobre as quais ele não possui qualquer controle. Essa fortaleza é a sede de nosso poder moral, onde se decidem as únicas coisas que são realmente boas ou más, os juízos, posto que estão sob nosso controle.
Esse centro tem a escolha livre de se identificar com a Razão universal, norma transcendente da moralidade, e livrar-se da influência dos desejos e das vontades que contaminam os juízos humanos sobre a realidade. Unido à Razão, o hegemonikon, o princípio diretor, é a fortaleza inexpugnável na qual o sábio habita em segurança, pois tudo é julgado adequadamente segundo o critério que distingue o que depende e o que não depende do homem.
Um comentário:
Excelente texto. Muito propício para o momento. Me serviu como consolo e fonte de ânimo.
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