segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pensamentos sobre a vida moral e as artes marciais

                                       Yukio Mishima praticando katas de Kendo.

上德不德,是以有德
TAO TE CHING, 38

Parte substancial da vida racional e da vida moral depende de nossa capacidade não só de perceber a validade de certos princípios racionais e morais muito gerais, mas, principalmente, de saber como aplicar esses mesmos princípios às situações concretas com as quais nos deparamos. Afirmamos que um homem é razoável não quando ele sabe afirmar em público princípios de conduta racional e sim quando ele demonstra que sabe aplicar os princípios nos acontecimentos singulares e irrepetíveis de sua vida.

Não há medida matemática ou ciência de como fazer essa transferência do geral ao particular. O que há é o desenvolvimento da habilidade em reconhecer como aplicar a regra por meio da repetição contínua dessa aplicação. Só aprendemos a ser racionais na medida em que continuamente tentamos ser racionais em cada situação. Obviamente, erramos muito, por exagero ou por falta, mas não há outro meio que não a atenção às sutilezas e às complexidades que a realidade impõe às nossas noções abstratas e seguras. 

Não há tampouco qualquer garantia de que outra pessoa concorde com a nossa aplicação de um princípio, algo que é facilmente verificado na vida comum quando somos julgados por nossas decisões. Nesse momento, nos perguntamos sobre quem, afinal, tem razão e, depois, se há algum padrão real. 

A definição conceitual de uma regra moral ou racional não ilumina a sua aplicação e sempre estaremos mais ou menos inseguros no momento de decidir como agiremos nas inúmeras situações que se apresentam na vida. Adaptar a regra, perceber seus limites, encontrar suas exceções, modular sua intensidade de acordo com o caso estão entre as mais importantes capacidades humanas. Mas o seu desenvolvimento requer tempo, reflexão e treino. É como andar de bicicleta ou dominar uma arte marcial: só se aprende praticando.

Bruce Leee, em uma entrevista para a TV, afirmou que as artes marciais têm como característica a junção harmoniosa do natural e do inatural, do espontâneo e do artificial. Uma "inaturalidade natural" ou "naturalidade inatural". A inaturalidade está em que não se trata mais de reações completamente impensadas e espontâneas, ditadas pelos instintos ou por emoções como o medo e a surpresa. A naturalidade está em que o treino age sobre capacidades já existentes, restringindo-as como a canalização restringe, potencializa e dá direção a uma fonte natural de água.

Dar forma a algo é impôr limites onde antes não havia para tornar real uma das incontáveis possibilidades contidas no amorfo. Em outros termos, o treino marcial é a imposição de um conjunto de regras a capacidades já existentes no homem com o objetivo de que as reações espontâneas às situações de risco sejam moldadas por essas técnicas e não sejam somente impulsividade desregrada e ineficiente. É a produção de um "instinto metodizado", pois a reação ao ataque será automática como são as reações instintivas, mas completamente racionalizada na medida em que exibe padrões previamente pensados e estudados.

No momento do combate, não há como pensar. O lutador não tem tempo para aplicar-se a cálculos matemáticos sobre como reagirá a um ataque. Não há um raciocínio no sentido formal de dedução de uma conclusão a partir de premissas explicitamente formuladas. Não obstante, há uma percepção da situação concreta e singular e de como responder eficientemente a ela empregando movimentos disponíveis no cabedal de técnicas que a sua arte marcial dispõe. Em certo sentido, há uma phronesis marcial, uma capacidade de perceber o que é bom para vencer na situação concreta de um combate.

Essa é a razão pela qual um lutador treina, constante e repetitivamente, técnicas que não são mais do que regras e modelos, comportamentos padronizados que, por serem gerais, necessariamente têm de ser adaptados no momento em que são aplicados a situações singulares e concretas. Nas artes marciais que fazem uso de katas, o propósito do treino é adquirir um conjunto variado de técnicas condensadas em um combate estilizado na forma de movimentos padronizados e repetíveis. 

É óbvio que nenhum combate real jamais seguirá a sequência exata de movimentos de qualquer kata. A sua importância reside na variedade de técnicas à disposição do lutador no momento do embate. Mas a oportunidade do uso da técnica e a sua aplicação adaptada às reações do adversário não estão contidas na forma do kata e só são aprendidas na luta real.

Cumpre não levar muito longe os paralelos aqui expostos entre as artes marciais e a vida moral. Como Aristóteles já havia advertido na Ética a Nicômaco, a arte é um reto raciocínio na produção de algo, isto é, a arte é uma técnica de produção. É um meio para um fim. As artes marciais são um conjunto de técnicas que, entre outras coisas, visa aprimorar a capacidade de defesa do indivíduo. Já a ação ética não é um fazer ou um produzir algo, pois a ação virtuosa não tem outro fim que ela mesma. Agir virtuosamente é um fim em si mesmo e não um meio para um fim ulterior.

Ser bom é bom para o próprio homem. É de seu maior interesse, pois é bom escolher aquilo que é nobre. A vida boa é a sua recompensa. Só não é fácil identificar o bem em todas as situações da vida. Assim como não é fácil aplicar o golpe certeiro em um combate.
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