segunda-feira, 8 de maio de 2017

"Silêncio" de Shusaku Endo



"'Orgulho? É, se os japoneses acreditassem no Deus que ensinávamos. Mas, nas igrejas que construímos por todo este país, eles não estavam rezando ao Deus cristão. Distorceram Deus para a maneira de pensar deles, e o fizeram  de um modo que nunca conseguirias imaginar. Agora, se ainda chamas aquilo de Deus...'"

Padre Ferreira, em Silêncio de Shusaku Endo.


O livro Silêncio (1966), de Shusaku Endo, é belíssimo, muito bem escrito e retrata conflitos reais em uma situação limite de conflitos morais e religiosos. A obra conta a história do jovem missionário jesuíta português Sebastião Rodrigues que, junto com o igualmente jovem jesuíta Francisco Garpe, viaja ao Japão com a finalidade de socorrer espiritualmente a pequena comunidade cristã naquele país, naquele momento sob terrível perseguição.

Ainda que só apareça no fim do livro, há uma importante figura que se mantém presente por toda a narrativa: o jesuíta Cristóvão Ferreira, um famoso missionário que, para escândalo de seus ex-pupilos, submetido à tortura pelas autoridades japonesas, sucumbiu e apostatou. Rodrigues é informado desse fato antes de viajar ao Japão e a vontade de encontrar o apóstata torna-se parte de sua motivação para a sua empreitada.

Em certo sentido, a presença ausente de Ferreira é semelhante a de Kurtz em Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Tanto um como o outro são missionários que, de alguma forma, sucumbem à força daqueles aos quais deveriam catequizar. Em vez de suplantar as crenças dos nativos e as condições do ambiente hostil, eles são derrotados e absorvidos. E, como Marlow, é Rodrigues que narra os acontecimentos que cercam a sua viagem.

O silêncio de Deus é certamente o tema central do livro. Como o Senhor pode ficar calado quando seus fiéis são submetidos a suplícios e provações sem conta? Mas, talvez, o silêncio mais importante do livro não seja o de Deus, mas o do apóstata. Ao silêncio divino seguir-se-ia o silêncio daquele que não quer mais seguir na conversação com alguém que nada responde.

Obviamente, nem sempre silenciar significa abandonar a conversa. A interrupção silenciosa de um diálogo pode ser sinal de profundo entendimento e de tácita concordância. Ou ainda, motivo de atenta perscrutação dos motivos e sinais sutis do interlocutor calado. O apóstata, todavia, interpreta o silêncio divino como indiferença e como abandono.

Resta saber se há uma apostasia que não seja uma desistência do diálogo. Quando Rodrigues é finalmente capturado pelas autoridades japonesas, ele sente que pode apostatar. Ele é torturado e ameaçado. Por fim, uma escolha é-lhe dada: apostasia ou morte de seus fiéis. O silêncio de Deus é máximo. Eli, Eli, llama sabactani?

Rodrigues, que sempre teve devoção especial pelo rosto sofrido de Cristo, deve escolher entre a vida de seus fiéis e o vilipêndio da imagem do Salvador. Ele decide apostatar. Pisa na representação de Cristo e salva seus irmãos de fé do suplício. Deus, então, quebra o silêncio:

"Você pode pisar. Você pode pisar. Eu, mais do que qualquer um, sei da dor em seu pé. Você pode pisar. Era para ser espezinhado pelos homens que eu nasci neste mundo. Foi para compartilhar a dor dos homens que eu carreguei minha cruz. "

A apostasia do jovem missionário jesuíta que pisa na imagem de Cristo representa a percepção de uma nova modalidade do amor cristão e da kenosis da Encarnação divina. Seria absolutamente indefensável se Rodrigues se recusasse a apostatar tendo como consequência o martírio e o sofrimento de outrem.

Assim como não se dá a outra face a não ser que a face seja a sua, não se empurra o outro na direção do martírio. Rodrigues entende isso quando descobre que sua obstinação pode conduzir seus fiéis à morte. Quem é ele para pôr sua própria convicção em um patamar superior à vida humana? O martírio é uma decisão pessoal. Assim como a decisão de sacrificar-se pelos outros, como Rodrigues o faz.

Ademais, Cristo veio para isso mesmo, para ser negado, cuspido e vilipendiado. A apostasia ali é um evento meramente externo e a recusa em apostatar naquelas circunstâncias seria um apego pouco cristão ao cumprimento de regras exteriores em detrimento do sentido espiritual dos mandamentos e do amor ao próximo. Há momentos em que aquilo que melhor realiza a verdade espiritual de uma tradição é sua aparente negação em atos radicais.

E Kishijiro, o apóstata reincidente que segue Rodrigos qual uma sombra, é o fraco que cai e cai, mas sempre retorna. Ele é covarde, superficial, tolo e, não obstante, a seu modo, fiel. Afinal ele sempre retorna. O Senhor disse para perdoar setenta vezes sete. Deus não perdoará setenta vezes sete apostasias? Kishijiro é o fiel comum que não resistiria ao suplício e, não obstante, jamais deixaria de retornar à fé logo depois.

Kishijiro crê. De uma forma torta, de soslaio, mais ou menos da mesma forma em que ele acompanha o jovem missionário. Ele está e não está. Longe quando está perto e perto quando está longe. Mas sempre lá. E isso fica belamente simbolizado na humilhação pública do jesuíta. Ele, ali, é o Cristo e Kishijiro é o fiel comum, limitado, um Zaqueu ainda menor que nem consegue subir na árvore para ver o Salvador. No entanto, ele não deixa de seguir. De longe, de soslaio. Vira a cara quando é encarado pelo Cristo nas peles de Rodrigues. Mas sempre está lá, sempre retorna.

Além do tema da apostasia, há um outro tema em Silêncio: a impossibilidade de ressignificação de certos símbolos ou a redução do novo símbolo religioso a um símbolo anterior. É isso que o jovem jesuíta missionário descobre quando finalmente encontra o alquebrado Cristóvão Ferreira, o padre apóstata. Os japoneses não são cristãos a não ser exteriormente. No fundo, eles tomam o novo símbolo cristão e o reduzem a seus símbolos tradicionais sem jamais atentar ao seu real significado.

A ressignificação simbólica é algo que acontece desde sempre nas religiões. Símbolos antigos são mantidos enquanto seu significado é mudado para servir a uma nova experiência espiritual. Por exemplo, a água tem significados simbólicos em diversas tradições pré-cristãs. Quando o cristianismo a utiliza como símbolo do batismo (e, portanto, da renovação), ele a um tempo mantém certos vínculos simbólicos comuns e ressignifica aquele símbolo para expressar uma nova realidade espiritual que tem elementos doutrinários claramente diferentes da tradição anterior.

Mas isso não acontece sempre. Às vezes o processo é o contrário. O novo símbolo é, por assim dizer, engolido pelo antigo e jamais o horizonte espiritual e doutrinário da nova tradição é plenamente reconhecido ou compreendido. Por essa razão, não há nenhuma "metanóia" simbólica, não há real mudança de visão da estrutura do mundo espiritual.

Ambos os temas, o da apostasia e o da impossibilidade de ressignificação de certos símbolos, tratam, no fundo, de uma questão comum, a saber, o conflito entre o exterior e o interior. Assim como é possível, tal qual Ferreira assevera, que os japoneses sejam exteriormente cristãos sem jamais crerem interiormente, da mesma forma a apostasia exterior de Rodrigues pode ser um ato de fidelidade interior ao Cristo que sofre e que ama os sofridos. Se, de fato, as coisas são assim, Silêncio pode ser considerada uma obra perturbadora de hagiografia ficcional.

Um comentário:

Philo-SciFi disse...

Belíssimo texto acerca do filme. Mas lendo-o fiquei em dúvida em relação a dois pontos: a) qual critério para saber quando o silêncio divino é uma observação/aceitação do evento que está a ocorrer por parte de Deus e quando é uma má interpretação da parte do apóstata, no caso, a saber, o Pe. Rodrigues? A segunda dúvida diz respeito à resignificação. Até que ponto se pode tomar como verdadeira a frase do Pe. Ferreira quando este diz que os japoneses não são cristãos verdadeiros pelo fato de tomarem os símbolos dessa mesma religião, porém resignificá-lo de maneira que seja compreensível àquela cultura?
Mais uma vez parabéns pelo texto.