sábado, 13 de agosto de 2011

As relações entre Física e Teologia nas universidades medievais


"Há diversas formas de entender a palavra natural. A primeira é quando a opomos a sobrenatural (e o efeito sobrenatural é o que chamamos de milagre). E está claro que os efeitos meteorológicos são efeitos naturais, porquanto são produzidos naturalmente e não miraculosamente. Os filósofos, por conseguinte, explicam-nos pelas causas naturais apropriadas; mas as pessoas comuns, não conhecendo as causas, acreditam que tais fenômenos são produzidos por um milagre de Deus, o que usualmente não é verdade."

JEAN BURIDAN, Comentário à Meteorologia de Aristóteles (séc. XIV)


Em posts anteriores tratamos da divisão de estudos nas universidades medievais a partir dos séculos XII e XIII. Mostramos como a formação universitária comum centrava-se na Faculdade de Artes, que era composta pelos estudos introdutórios do trivium (dialética, gramática e retórica) e do quadrivium (aritmética, astronomia, geometria e música), e eram completados pelo estudo detido da Física (Filosofia Natural), Filosofia Moral e Metafísica.

Aqueles que porventura sentissem inclinação para avançar nos seus estudos, podiam frequentar posteriormente as faculdade maiores: Teologia, Direito ou Medicina. Assim, todos os que haviam frequentado uma universidade tinham passado necessariamente pela Faculdade de Artes.

Os mestres de Artes, formados nessa faculdade, não tinham autorização para tratar academicamente de questões concernentes às faculdades superiores. Daí que o filósofo natural (ou físico) não incluía em seus estudos do mundo natural questões de ordem teológica, assuntos reservados aos mestres de teologia.

Ora, essa divisão não era derivada de uma simples questão administrativo-burocrática, mas de uma compreensão profunda dos limites e dos campos próprios de cada saber. A teologia deveria ser objeto dos teólogos e a filosofia natural, em suas diversas especialidades, deveria ser assunto dos filósofos naturais.

Essa compreensão de que a Física - concebida como uma ciência geral dos seres móveis, englobando seus aspectos qualitativos e quantitativos - tinha um modo próprio e autônomo de pesquisa que, em nenhum momento, deveria ser invadido por questões de fé, caracterizou o modo como as universidades medievais lidaram com a questão das relações entre a razão e a fé.

A Física é um ciência que busca explicações racionais, argumentativo-demonstrativas a partir de premissas hauridas na experiência comum, calcadas no conhecimento das naturezas das coisas. A Teologia é uma ciência argumentativo-demonstrativa cujas premissas são absolutamente verdadeiras, mas hauridas da revelação direta de Deus nas Escrituras e na Tradição.

Essa compreensão é exemplificada em figuras centrais do pensamento medieval daqueles séculos, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Jean Buridan e Nicolas Oresme. Comentando o De Caelo de Aristóteles, Alberto Magno trata da espinhosa questão da possibilidade de haver outros mundos (não planetas, mundo aqui teria o sentido aproximado de "universo"):

"Se alguém deve dizer que poderiam haver outros mundos - embora não existam na realidade -porque Deus poderia ter feito mais mundos se quisesse e que, mesmo agora, Ele poderia os criar se quisesse, eu nada digo quanto a isso, uma vez que eu concluo que é impossível que existam diversos mundos - ou que mais deles possam ser criados - e que é necessariamente verdadeiro que haja somente um. Aqui nosso entendimento é sobre o que é impossível e necessário com respeito às causas essenciais e próximas do mundo. E há uma grande diferença entre o que Deus pode fazer por meio de seu absoluto poder e o que pode ser feito na natureza [ou pela natureza]."

O texto é esclarecedor. A questão em discussão era uma daquelas situações que Aristóteles considerava como naturalmente impossíveis. Não poderia haver mais de um mundo, dizia o grego, porque, entre outras razões, haveria um espaço vazio (absolutamente vazio, nada) entre esses mundos.

Ora, Alberto é singularmente claro em sua resposta. Em termos naturais, ou seja, a partir somente daquilo que é lícito o físico depreender da observação e do raciocínio fundado nessas premissas, afastado de toda e qualquer interferência de questões de fé e de teologia, sua resposta só poderia ser negativa. Não havia espaço algum para a existência de outros mundos dentro da perspectiva da filosofia natural. Causa finita, magister dixit.

Contudo, abandonando a perspectiva natural e adentrando nos conteúdos da fé, nada impede que Deus possa realizar o que Aristóteles e a física indicam como impossível, pois Ele pode tudo aquilo que não é intrinsecamente contraditório.

Note-se que Alberto não está dizendo que Deus fez, ou fará desse modo. Ele simplesmente indica que, fora do âmbito dos deveres e dos métodos do filósofo natural, há uma possibilidade que só tem na fé sua âncora. Com isso ele não pretende obliterar as diferenças entre a física e a teologia, mas pô-las ainda mais em relevo.

A conclusão do físico deve ser aquela de que não há outros mundos e enquanto ele permanece como físico, nada pode ser contraposto a esse resulado absolutamente racional. Se ele abandona o âmbito natural e se aventura pelos véus da teologia, nada o impede de defender que Deus é capaz daquilo que Aristóteles acha impossível.

O filósofo e historiador da ciência Edward Grant, em seu God and Reason in the Middle Ages, explica que "não é o que Deus pode fazer que interessa a Alberto no seu Comentário ao De Caelo, mas o que a natureza pode fazer. (...) Alberto enfatiza que os investigadores da natureza não perguntam sobre como Deus usa das coisas que Ele criou para fazer um milagre que proclame Seu poder; mas, ao contrário, eles investigam 'o que pode ser feito nas coisas naturais de acordo com as causa inerentes da natureza.'"(p.194)

Essa posição é seguida pelo discípulo mais famoso de Alberto, Tomás de Aquino e se estende até os físicos do século XIV Jean Buridan e Nicolas Oresme.

O texto de Buridan reproduzido no início deste post indica o mesmo espírito de investigação racional da natureza manifestado desde antes do início das traduções aristotélicas por pensadores como Adelard de Bath. Deus cria as naturezas, mas estas agem segundo suas potencialidades e propriedades intrínsecas sem que seja necessária uma intervenção divina constante. Deus permanece, é certo, mantendo as coisas no ser, ou seja, elas existem e persistem por causa da ação direta de Deus, mas as suas operações são expressões de suas naturezas intrínsecas e, enquanto tais, independem da ação divina.

Diante de questões que tratavam de situações que Aristóteles considerava naturalmente impossíveis, Buridan tomava o partido do sábio grego enquanto a matéria repousasse sobre o curso comum da natureza (communis cursus nature). Se a questão fosse tratada a partir de um ângulo teológico, nada seria impossível a Deus, a não ser aquilo que fosse contraditório.

Nicolas Oresme, em seu tratado De Causis Mirabilium, asseverava que sua intenção na referida obra era "mostrar as causas de alguns efeitos que parecem ser maravilhas e mostrar que tais efeitos ocorrem naturalmente, como acontece com outros aos quais comumente vemos como maravilhas. Não há razão para buscar a causa desse efeitos nos céus - o último refúgio dos fracos - ou nos demônios, ou no nosso glorioso Deus, como se Ele produzisse tais efeitos diretamente."

A abordagem puramente racional das ciências naturais é evidente no trecho de Oresme. Edward Grant aponta para o fato de que essa mentalidade dominava o ambiente universitário medieval e que ela persistiu até meandros do século XVII, quando o filósofo natural passa a tratar de questões teológicas como parte de sua disciplina. Recorde-se o Escólio Geral do Principia de Newton.

É evidente, como foi mostrado em diversos posts anteriores, que nem todos concordavam com essa postura. Havia quem considerasse essa divisão praticada nas universidades como deletéria e pagã em suas origens e inspiração. Muitos religiosos de tradição agostiniana consideravam a filosofia como mera ancilla theologiae (serva da teologia) e negavam um valor autônomo aos estudos filosóficos. Mais radicais ainda eram aqueles que, herdeiros de Tertuliano, tomavam a filosofia como algo suspeito e prejudicial à fé pura e sincera, único bem e interesse de um cristão verdadeiro.

Apesar dessas oposições, a distinção clara entre um campo autônomo de estudos da natureza e um campo de estudos teológicos praticada e sustentada nas universidades protegeu a filosofia natural de uma subordinação servil à teologia. Do mesmo modo, a teologia se viu livre para tratar das matérias próprias à sua esfera sem precisar apoiar-se em nada além do que aquilo que as Escrituras e a Tradição ensinavam.


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2 comentários:

Emerson Moraes disse...

Boa tarde.
Eu li apenas dois artigos do seu site até agora. E com certeza já posso afirmar que você é um Professor com P maiúsculo.
Parabéns pela clareza!
Até mais!

R. Oleniski disse...

Obrigado Emerson! Abraços!