domingo, 18 de janeiro de 2009

Paul Feyerabend e a ciência como forma de vida


"Galileu progrediu mudando as ligações familiares entre palavras e palavras (introduzindo novos conceitos), entre palavras e sensações (introduzindo novas interpretações naturais), recorrendo a princípios novos , desconhecidos (como sua lei de inércia e seu princípio da relatividade universal) e alterando o núcleo sensorial dos enunciados de observação. Ele foi estimulado pelo desejo de adaptar o ponto de vista copernicano. O copernicanismo se choca claramente com certos fatos evidentes, é incompatível com princípios bem estabelecidos e não é ajustado à “gramática“ da linguagem ordinária falada. Enfim, não é ajustado às “formas de vida” que contêm esses fatos e princípios e essas regras de gramática. Mas nem as regras nem os princípios são sacrossantos. (...) Podemos então mudar, criar novos fatos e novas regras gramaticais." PAUL FEYERABEND



No trecho acima citado do capítulo 13 do Against Method, Paul Feyerabend interpreta a atividade científica como um jogo de linguagem e o copernicanismo como uma forma de vida.


Ora, Galileu estava em franca oposição à gramática do jogo aristotélico. O que ele faz é mostrar aos aristotélicos que diversos termos usados usualmente em seu jogo de linguagem podem ser reinterpretados (no caso, com o intuito de salvar a teoria de Copérnico).

Ou seja, Galileu mostra novas situações (ainda que muitas vezes somente em experimentos mentais), totalmente imprevistas pelos aristotélicos, onde as regras usuais de uso dos termos encontram dificuldades em sua aplicação. Galileu apresenta a textura aberta dos conceitos usados pelos aristotélicos.

No caso do conceito de movimento, que em Aristóteles tem implicações físicas e metafísicas, Galileu o reinterpreta reduzindo-o à locomoção espaço-temporal. Não mais o movimento como passagem de potência para ato, a queda como “tendência para ocupar seu lugar natural”, e sim o movimento como simples locomoção de um ponto geometricamente determinado à outro.

A observação, Galileu a reinterpreta não mais como uma evidência imediata, mas como uma evidência a ser julgada pelo raciocínio (a observação pode ser reinterpretada por meio do raciocínio especulativo).

Como no caso do movimento terrestre, cuja negação parece clara pela evidência empírica imediata de que o Sol se movimenta no horizonte. Ao contrário, Galileu afirma que a evidência empírica, ainda que constante e duradoura, pode estar errada e, no fim, ser somente uma ilusão. O raciocínio pode evidenciar seu erro.

Galileu toma um fato conhecido dos aristotélicos e o reinterpreta como o paradigma de seu novo jogo (semelhanças de família?). A queda retilínea aos pés da torre de uma pedra lançada de seu topo parece refutar o movimento terrestre.

No entanto, são conhecidos os casos onde dois ou mais movimentos de um determinado objeto ocorrem ao mesmo tempo, como o caso do desenhista que usa sua pena para desenhar dentro de um barco que descreve uma curva em sua navegação. Qual o movimento real da pena, aquele que ela compartilha com o barco, o arco descrito no mar ou o movimento imposto pelo desenhista em seu desenho?

Não pode ser que o mesmo ocorra com o caso da torre? Que a pedra compartilhe do movimento da terra e, ao mesmo tempo, se movimente em queda para os pés da torre? No caso, qual seu movimento real? O movimento que se observa imediatamente pode não ser absoluto, mas relativo. Galileu usa contra os aristotélicos esses casos (generalizando-os) em que seus termos encontram situações não previstas.

Assim, Galileu dá algumas regras para um novo jogo de linguagem. Esse jogo se desenvolverá aos poucos, com o tempo. Como Feyerabend defende, qualquer idéia necessita de tempo para que se desenvolva e encontre ciências auxiliares que lhes dê a evidência necessária.

Este é o sentido do anything goes de Feyerabend. Qualquer teoria, por mais absurda e sem apoio empírico que seja, pode se tornar relevante, pois pode, quem sabe, romper com hábitos metodológicos e mentais e com o engessamento de certas regras de um jogo determinado.

Um comentário:

Héber Sales disse...

A tese me faz lembrar das teorias como mapas mentais. A propósito, para Karl Weick, mesmo uma representação metal errada pode ser útil e, certamente, é melhor do que não ter nenhuma.

"Com o mapa na mão, não importa o quanto ele seja grosseiro, as pessoas codificam aquilo que vêem para que e conforme o máximo possível com o que está no mapa. Este prefixa as percepções dela, que vêem aquilo que esperam ver. Porém, à medida que se acumulam as discrepâncias, elas prestam mais atenção ao que está em sua experiência imediata, procuram padrões e prestam menos atenção ao mapa. Este torna-se então mais metafórico mas, ironicamente, somente porque foi o meio pelo qual outros mapas, mais atuais, foram formados" (p. 5).

WEICK, K. E. Cartographic Myhs in Organizations. Em A. S. Huff, ed., Mapping Strategic Thought. New York: Wiley, 1990: 1-10.