domingo, 13 de outubro de 2024

Aristóteles, Física e a natureza do lugar (Livro IV) - Parte 1

"A questão acerca do que é o lugar apresenta muitas dificuldades. O exame de todos os fatos relevantes parece conduzir a conclusões divergentes. Ademais, nada herdamos dos pensadores que nos antecederam, seja na forma de recensão das dificuldades, seja na forma de solução."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 1 (itálico meu)

O problema sobre o qual Aristóteles se debruça no início do Livro IV da Física é a existência ou não do lugar (τòπος). A sua importância provém do fato de que, primeiro, pensa-se usualmente que todas as coisas que existem estão em algum lugar, e, segundo, de que a mudança, em seu sentido mais geral e primário, a locomoção, significa exatamente "mudança de lugar"

Em que pese a ausência de opiniões herdadas dos pensadores anteriores sobre o tema, a existência do lugar é considerada evidente por diversos motivos. A água que sai de um vaso passa de um lugar a outro. Os corpos se dirigem naturalmente a lugares que lhes são próprios, alguns para cima (o fogo), outros para baixo (a terra), etc. Não são meramente posições relativas que variam de acordo com o ponto que estão com relação a nós. O mesmo corpo pode estar à nossa direita e depois à nossa esquerda dependendo do ponto ao qual nos dirigimos. 

Os objetos da matemática (geometria) não apresentam direções próprias. Eles podem estar à frente ou atrás, à esquerda ou à direita, acima ou abaixo somente com relação a nós. Sua posição é sempre relativa. Essas observações de Aristóteles são interessantes, entre outros motivos, porque colocam em relevo a diferença entre posições que são meramente relativas ao observador e aquelas que são naturais, portanto independentes de qualquer ser capaz de mudar sua própria posição com relação a elas. 

Ainda que não houvesse nenhum observador, o fogo sempre subiria. A sua posição no alto não depende de um outro que possa mudar a sua própria posição, alterando assim a relação entre os dois. De si mesmo, o fogo naturalmente sobe, e nisso não há nenhuma relatividade. O corpo formado de terra desce independentemente de haver um observador com relação ao qual ele pode estar acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás. 

Os entes geométricos não estão acima e nem abaixo, não estão à direita e nem à esquerda, não estão à frente ou atrás. É o geômetra que os pensa em tal ou qual posição com relação a ele. A ausência de movimento natural em alguma direção impede que os entes matemáticos assumam posições reais. Suas posições são necessariamente relativas por conta de seu caráter essencialmente estático. Objetos geométricos não são corpos reais, dotados de tendências intrínsecas que são atualizadas sempre que não se apresentam impedimentos.

Um corpo feito de terra vai se dirigir ao solo tão logo seja solto no ar e conquanto não haja nenhum anteparo que o interrompa no caminho. A chama do fogo vai se erguer na direção do céu se não houver qualquer coisa que a impeça de seguir a sua tendência natural. Um objeto geométrico não desce e nem sobe por alguma disposição intrínseca. Ele pode ser posto cá ou lá pelo pensamento do geômetra, e as suas posições existem exclusivamente com relação a essa atribuição extrínseca. 

Podemos supor que se o mundo físico fosse reduzido a uma representação puramente geométrica, as tendências naturais dos corpos deixariam de ser relevantes. A consequência seria a de que os corpos, identificados a objetos geométricos, teriam as suas posições estabelecidas não mais a partir da objetividade de suas tendências intrínsecas. Acima, abaixo, à direita, à esquerda, à frente e atrás seriam somente posições atribuídas extrinsecamente, sempre relativas a nós. Toda mudança de posição e todo repouso seriam então relativos ao ponto de referência escolhido pelo geômetra.

De tudo o que foi dito, o lugar é aparentemente algo existente e distinto das coisas que nele estão. Entretanto, a questão é saber qual é a sua natureza. Seria o lugar um corpo? Se fosse, possuiria dimensões como comprimentolargura e altura. O que se segue disso é que haveria dois corpos no mesmo lugar: o corpo que ocupa o lugar e o lugar que é um corpo. O mesmo se aplica se recordamos que o corpo possui limites como a superfície. superfície do corpo que está no lugar coincidiria com a superfície do corpo que é o lugar.

lugar tampouco pode ser um elemento que compõe os corpos ou ser ele mesmo composto de elementos, sejam estes corporais ou incorporais. Se fosse elemento que compõe os corpos, teria de ser corporal, uma vez que os corpos sensíveis são compostos por elementos corporais. Se fosse composto de elementos corporais, seria corpo. Mas, apesar de possuir tamanho, o lugar não é um corpo. Não poderia também ser composto de elementos incorporais porque aquilo que possui tamanho não é constituído por por algo adimensional.

O lugar não se encaixa entre as quatro causas. Não é causa material, formal, eficiente ou final de nada. Na suposição de que seja algo existente em ato, e se tudo o que existe ocupa um lugar, então o lugar ocupa um lugar, e assim ad infinitum. O que dizer das coisas que crescem? O corpo e o lugar serão indistintos? O conjunto de questões levantadas até o momento vai definir a discussão que virá a seguir. 

Podemos distinguir o lugar mais imediato no qual estamos daquele mais remoto no qual também nos encontramos. Alguém que está na Terra também está no Céu na medida em que o Céu contém a Terra, exemplifica Aristóteles. O continente contém o contido, e, por sua vez, o continente é contido por um outro continente maior. A água está contida no balde, o balde contido na Terra, a Terra no Céu. Onde está localizada a água mais imediatamente? No balde, embora este se encontre na Terra, e esta no Céu.

Se o lugar for aquilo que primariamente contém cada corpo, então trata-se de um limite que corresponde à forma (no sentido de formato) e à magnitude do corpo que ele contém. Ou será que o lugar é idêntico à forma e à magnitude do corpo? Não, estas duas pertencem inseparavelmente ao corpo, enquanto o lugar é separável do corpo. A experiência mostra que os corpos passam de um lugar a outro mantendo invariáveis as suas formas e as suas magnitudes. E o mesmo lugar é ocupado seguidamente por corpos diferentes (a água sai do balde e o ar entra).

Usualmente, o lugar é pensado como algo semelhante a um vaso (que é uma espécie de "lugar transportável"), um receptáculo. O vaso é materialmente extenso e diferente daquilo que ele contém. Portanto, o lugar, se for um receptáculo ou um continente, não se identifica com a forma ou com a magnitude do corpo que está contido nele. Além disso, a identidade é impossível naquilo cuja noção implica a alteridade: estar em algum local significa ser algo que tem outro algo fora dele.

Não poderia haver o movimento natural dos corpos que a experiência testemunha se lugar se identificasse com a forma e com a magnitude do corpo. Aquilo que está localizado pode mudar de local, e se o fizer, vai se mover em alguma direção. É impossível que o lugar seja idêntico à forma e à magnitude material do corpo se ambas não se referem à mudança ou às distinções entre as direções (alto, baixo, etc.). A forma de um corpo ou a sua magnitude não implicam a noção de possível deslocamento de um ponto a outro em determinada direção. Já o lugar implica a noção dessa possibilidade.

Fosse o lugar idêntico à forma e à magnitude do corpo, o lugar estaria no corpo. E se o corpo se deslocasse, o lugar também se deslocaria com ele. O corpo que se desloca de um ponto a outro sai de um lugar e vai a outro lugar. A consequência lógica seria a de que o lugar que está no corpo que se desloca se encontraria ele mesmo deslocando-se entre lugares. Isto é, o lugar estaria em algum lugar. 

Por fim, ocorrendo a evaporação de uma porção de água que ocupava algum lugar, este seria destruído? O corpo (a água) não existe mais, então o lugar (se idêntico ao corpo) deveria igualmente desaparecer. Porém, não é isso que testemunhamos na experiência. A água evapora, e o local onde ela estava permanece o mesmo.

Os argumentos apresentados acima refutam a tese da identidade do lugar com o objeto nele contido. Mas em quais sentidos podemos afirmar que um objeto está em outro? Algo está em outro como a parte está no todo (dedo na mão) e o todo está na parte (esta existe por causa daquele), a espécie está no gênero ("homem" está em "animal") e o gênero está na espécie (presente como fundamento), a forma está na matéria (na qualidade de ordenação), as coisas estão centradas no seu princípio movente (os assuntos do reino centrados no rei), a razão da existência de algo está no seu fim, e, no sentido estrito, algo está num receptáculo.

Aristóteles assinala que existe uma ambiguidade quando se diz que uma coisa pode estar em outra: algo pode estar em outro enquanto ele mesmo ou enquanto outro. Tomemos o caso de um Todo no qual as partes não são separáveis. Um homem pode ser dito branco por causa de seu rosto branco, embora a brancura de seu rosto seja apenas uma parte do ser que ele é. Em sua inteireza, o homem não é separável da sua cor, e, por conseguinte, esta está nele como algo está em si mesmo.

Considere-se o caso que envolve o jarro e o vinho. Tomados em si mesmos, ambos são entidades independentes e separáveis, e não formam um Todo. A situação é diferente quando consideramos o jarro de vinho. Analogamente ao homem branco, a parte está no Todo não enquanto outro, mas sim enquanto ela mesma. O jarro de vinho forma uma unidade na qual o vinho não está no jarro como um corpo está em outro. Antes, temos aqui uma parte que qualifica o Todo.

A brancura qualifica o homem. A cor branca está no homem enquanto outro corpo? Não. Em certo sentido, ela está nela mesma e não em outro. É verdade que a essência da parte (brancura) difere da essência do Todo (homem), porém, no homem branco, existe uma unidade indissolúvel na qual a parte é um qualificador ou uma propriedade do Todo, não um corpo contido num corpo continente. Dessa forma, é possível afirmar que o branco está nele mesmo, e não em outro.

O problema levantado por Zenão - de que se o lugar é algo, ele deve estar em algum lugar - pode agora ser resolvido facilmente a partir das distinções feitas acima. Nada impede que um esteja em outro da forma na qual a saúde está no quente como uma determinação positiva, e o quente está no corpo como um estado.

A solução do problema da natureza do lugar será apresentada por Aristóteles nas seções seguintes.

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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Lieh Tzu, a viagem e o Tao


"Há algo, um todo indiferenciado, anterior ao Céu e a Terra. (...) Atribuindo-lhe um nome, digo que é a Via".

LIVRO DE WEN TZU, capítulo 1

Conta-se que o grande mestre taoísta chinês Lieh Tzu (列子) apreciava viajar. Quando perguntado por seu mestre Hu Tzu sobre a razão daquele gosto, respondera que, enquanto os outros viajantes viam coisas, pessoas, casas e belas paisagens, ele via só e tão somente mudanças. Isso o distinguia dos demais que não sabiam o quanto ele era diferente deles. Enquanto estes viam coisas, Lieh Tzu via mudanças.

Hu Tzu, após ouvir a resposta de Lieh Tzu, o recrimina dizendo que, ambos, ele e os viajantes comuns não eram diferentes em nada. Se os viajantes ordinários apreciavam coisas, fascinados por sons e visões, Lieh Tzu, por seu turno, era capturado por aquilo que sempre muda. Nos dois casos, são pessoas que vivem ocupadas com as coisas exteriores. Nunca satisfeitas, atraídas pelo mundo fora delas, buscam incessantemente por algo novo e maravilhoso que agrade os seus sentidos. Somente quem olha para dentro de si logra encontrar a real satisfação.

Lieh Tzu, decepcionado por não haver compreendido o que significa viajar, desistiu de empreender outras viagens. Hu Tzu, vendo a reação de seu pupilo, esclareceu que viajar é uma excelente experiência quando se esquece completamente que se está viajando. Somente assim é possível aproveitar o que se apresenta a nós. Quem olha para dentro de si quando viaja não pensa sobre o que vê. Na verdade, não há distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto. Tudo é experienciado integralmente, de modo que cada montanha e cada lago serão partes de si mesmo.

Viajar é percorrer uma via ou caminho (Tao道). Há aqueles que, voltados para o mundo externo, enxergam somente coisas, e regulam seu interior de acordo com o que acontece no exterior. Querem isto ou aquilo, rejeitam isto ou aquilo. Acreditam na posse porque concebem que as coisas são estáveis, permanentes e seguras. Incapazes de perceber o fluxo, a impermanência, e moduladas por aquilo que está fora delas, nada pode satisfazê-las, contudo. 

A viagem, símbolo tradicional da vida humana (homo viator), é essencialmente mudança. As coisas se apresentam sucessivamente ao viajante em movimento. Nada permanece o mesmo em seu horizonte. Os viajantes ordinários tentam fixar e estabilizar o que é impermanente. Se almejarem a posse do que veem, terão de parar a viagem, abandonar a Via, e habitar lá onde está o objeto de seu desejo. Um navio perpetuamente ancorado, porém, perde seu propósito.

Lieh Tzu, ao contrário, sabe que fixar-se em algo é uma ilusão. Ele viaja apreciando o fluxo incessante das transformações das coisas. Tudo é impermanente. Lieh Tzu se crê diferente dos outros viajantes por seu espírito não se fixar em nada. O seu erro consiste em ainda regular seu interior por aquilo que acontece exteriormente. Lieh Tzu é o ponto fixo que contempla o fluxo das coisas. Há o interior e o exterior.

O mundo das dualidades não foi ultrapassado. A visão permanece obnubilada pela divisão. Nos viajantes comuns, o isto e o aquilo geram o desejo e a repulsa. A oscilação e a inquietude que se seguem foi simbolizada na tradição oriental pela mente de macaco (心猿) cujos pensamentos mudam incessantemente, pulando de um objeto a outro de acordo com as circunstâncias, semelhante a um macaco saltando sucessivamente sobre os galhos das árvores. 

Lieh Tzu não se engana, e enxerga as mudanças que as coisas sofrem. Mas é necessário que ele esqueça que está viajando, e olhe para dentro de si a fim de realmente apreciar o que experiencia. A advertência do mestre Hu Tzu não significa a defesa de algum tipo de subjetivismo ou de solipsismo. A questão não é rejeitar o exterior em nome do interior. Isso seria permanecer no campo das dualidades. 

"O caminho que se caminha não é o caminho", ensina o venerável Lao Tzu no primeiro verso do Tao Te Ching. Via não é oposta a nada. Este ou aquele caminho não é o Caminho. Quando não há distinções entre aquele que vê e aquilo que é visto, então existe a misteriosa unidade que transcende os polos. Fora de toda distinção, o homem é um espelho refletindo a realidade sem as nódoas deturpadoras dos desejos e das rejeições. 

A experiência unitiva que elimina a um só tempo o lutador e seu adversário, fundindo-os num todo não-dual, está presente também nos contos e nos discursos sobre as artes marciais do Zen japonês (cujas origens se encontram no budismo Ch'an chinês). A mente imóvel, tema do tratado escrito pelo monge Takuan Soho, dá conta do mais alto estado no qual um samurai pode enfrentar seu oponente. Sem se ater a este ou àquele aspecto, sem focar nele mesmo ou no seu adversário, experienciando a totalidade indistinta em que ambos desaparecem, o guerreiro pode responder sem obstáculos mentais os ataques proferidos contra ele.*

Livro de Wen Tzu (41), afirma que os sábios, "aptos a alcançar o ponto onde não há gozo, descobrem que não há nada que não seja apreciado. Não havendo nada que não apreciem, alcançam o pináculo da apreciação". Na Via (Tao), centro não-dual da realidade, as afirmações e as negações são transcendidas, a oscilação mental cessa, e não há mais o gozo disto ou daquilo. O sábio tudo aprecia porque não mais se identifica com seus desejos e aversões, vive a imperturbabilidade na qual todos os acontecimentos são recebidos equanimemente.

"Eles usam o interior para tornar o exterior apreciável, e não usam as coisas externas para fazer o interior apreciável. Portanto, possuem a apreciação espontânea neles mesmos". O sábio não regula sua interioridade pelos acontecimentos externos. O mestre Hu Tzu adverte Lieh Tzu que ele era idêntico aos viajantes comuns porque ainda se concentrava nas mudanças exteriores. Ao contrário, é o interior que deve regular o exterior. Reagir sempre de acordo com os eventos externos é condenar-se a viver na turbulência mental que nunca descansa.

Todo ser humano desenvolve algum grau mínimo de constância que o permite não ser absolutamente dominado pelos acontecimentos à sua volta. Não fosse assim, nenhum projeto poderia ser executado, qualquer que fosse o seu prazo. A simples leitura de um livro seria impossível se não ignorássemos tudo o acontece no ambiente circundante. A constância é a virtude que permite ao homem permanecer em um determinado estado de espírito diante das condições externas que se apresentam, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis.

Tampouco seria bom viver no interior se isso significasse solipsismo, subjetivismo ou egoísmo. Se a constância preserva o homem comum de ser arrastado pelas circunstâncias, a experiência o impede de isolar-se completamente em seu castelo interior, ignorando as urgências da preservação da vida. Pior seria querer impor ao mundo e aos outros a árdua tarefa da realização de nossos desejos, sempre cambiantes e amiúde contraditórios entre si.

"Usar o interior para tornar o exterior apreciável" significa contemplar tudo a partir da unidade originária anterior às dualidades. Nada é estranho ao sábio, nada se opõe à sua vontade porque ele está isento de vontade própria. Suas ações e seus juízos não são mais baseados nos desejos e nas aversões pessoais. Por essa razão, ele possui a apreciação espontânea, a Via flui nele sem os obstáculos duais dos gostos e das aversões.
 
A sabedoria, assevera em seguida o Livro de Wen Tzu (41), "não depende de outro, mas de si mesmo. Não depende de mais ninguém a não ser do indivíduo. Quando este a alcança, tudo está incluído". Nessa mudança na experiência comum, quando acontece, inexiste qualquer "distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto". O viajante, a paisagem e a viagem são uma só e mesma realidade na Via.

O sábio compreende, diz o Livro de Wen Tzu, que "os desejos, anseios, apreços e aversões são exteriores". Isto é, ele não se identifica com essas funções mentais. Portanto, nada o apetece, nada o incomoda, nada o agrada e nada o fere. "Tudo é misteriosamente o mesmo, nada é errado e nada é certo". Faz-se necessário aqui negar a acusação superficial e errônea de relativismo moral. Cumpre notar que, justamente por haver transcendido todas as dualidades, inclusive as dos gostos e das aversões, o sábio não é presa dos caprichos de uma vontade desordenada.

Chuang Tzu (莊子), o grande mestre taoísta, ensinava que onde isto e aquilo deixam de ser opostos encontra-se o "pivô da Via" (道樞). O sábio "enxerga tudo a partir da luz do Céu (天)". Ele está purificado das vontades e dos juízos comuns que conduzem ora ao certo, ora ao errado. Firmemente postado no pivô, sua ação é não-ação (無為), não age por desejo de obter algo que não possui ou para evitar algo que o desagrada. Ele é verdadeiramente livre e espontâneo.
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domingo, 1 de setembro de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 2 - final)

 

"Tal é o Pai de todas as coisas; pois esse é o Único, e essa é sua obra por si: ser Pai."

HERMES TRISMEGISTO, Corpus Hermeticum, Libellus V, 8 *

O quinto discurso do Corpus Hermeticum ensina "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Depois de explicar por que o imanifestado é o fundamento do manifestado, Hermes Trismegisto mostra em seguir de que modo se dá a manifestação visível do Nous"Se queres vê-lo, pensa no Sol, pensa no curso da Lua, pensa na ordem das estrelas. Quem é o preservador da ordem?" Os astros, submetidos ao Sol como a um rei, repetem seu curso invariável no céu. "Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?". A ordem manifesta sensivelmente o Nous. A ordenação do Cosmos torna impossível negar a existência do ordenador supremo. 

Uma vez mais, o caráter cosmológico do hermetismo é explicitado. O Nous é a causa inteligente do mundo, o que faz com que este seja uma teofania. O imanifestado é manifestado na ordem que o Cosmos apresenta. No Timeu, de Platão, o filósofo pitagórico que dá nome ao diálogo distingue dois tipos de causas fundamentais: a causa inteligente e a causa contribuinte ou necessária (Ἀνάγκη). A segunda é a causalidade cega, cujos efeitos se seguem necessariamente das características das coisas, de suas disposições materiais e das situações nas quais se encontram. 

"Quem quer que almeje compreensão e conhecimento deve buscar as suas causas primárias naquilo que é essencialmente inteligente, e procurar as suas causas secundárias no domínio das coisas que são movidas por outras coisas, e que, por seu turno, movem outras por necessidade automática." (Platão, Timeu, 46d)

Um corpo se choca com outro, e vai numa determinada direção, por exemplo. As propriedades materiais dos dois corpos e outras variáveis (também materiais) são suficientes para determinar a razão pela qual acontece isso em vez daquilo. Estamos no âmbito da física naturalista pré-socrática. Demócrito e Leucipo pretendiam explicar todas as mudanças naturais em termos somente do choque, agregação e desagregação de configurações de átomos com formatos geométricos materialmente sólidos. 

Sócrates, de acordo com o testemunho tanto de Platão quanto de Xenofonte, percebeu claramente a insuficiência desse tipo de explicações. Ele abandonou seu antigo mestre, Anaxágoras, porque este relegava o Nous à função de um simples iniciador do movimento universal, deixando a cargo de forças cegas a geração das coisas. A questão é que a ordem é sempre teleológica, ou seja, é uma tendência  à repetição dos mesmos efeitos sob as mesmas circunstâncias.

ordem, aquilo que acontece sempre ou na maior parte dos casos, não pode advir do acaso, como Aristóteles bem observou em sua Física. Átomos democritianos podem se chocar casualmente no vazio e tomarem certas direções a depender das circunstâncias. Contudo, isso não é suficiente para explicar por qual razão os átomos se reúnem em determinadas configurações constantes. As suas propriedades materiais não explicam a sua junção em formas nas quais as partes estão submetidas à realização do Todo.

As causas contribuintes ou necessárias são reais, mas estão submetidas às causas inteligentes sem as quais a ordem exibida no mundo só poderia ser explicada por um gigantesco milagre. Por isso o Timeu afirma que o Demiurgo é a causa inteligente primária, tendo os deuses o papel de causas segundas

"Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?" O modo ("tropos", τρόπος) é um tipo, uma configuração constante, uma razão ou escala (música). A grandeza ("megethos", μέγεθος) é uma magnitude (matemática), algo mensurável. A mensuração é um ato precípuo da mente ("mensurare", "mens", no Latim). Se as estrelas exibem trajetórias estáveismensuráveis, então há uma mente primária que mediu e impôs essas medidas. Ἀεὶ ὁ θεὸς γεωμετρεῖ.**

Os limites do mar e o assentamento da terra devem ser obra de um feitor e senhor (δεσπότης, "déspota", "mestre"). "Pois é impossível ser preservado o lugar, ou número, ou medida, sem aquele que fez". A manutenção do lugar (τόπος, "topos"), do número (ἀριθμός, "arithmos") e da medida (μέτρον, "metron") das coisas deste mundo evidencia cálculo, raciocínio escolha. E o que fundamenta essa conclusão é o fato de que a ordem não pode ser fruto do acaso (τύχη, "Tyché"), ela é eminentemente intencional.

"Pois toda ordem é feita, e somente a excentralidade e a incomensurabilidade são não feitos". O termo excêntrico ("fora do centro") traduz aqui "atopia" (ἀτοπία), e refere-se literalmente àquilo "fora de lugar" ou mesmo "sem lugar". Deixadas a si mesmas, as coisas não adquiririam lugares fixos ou constantes dentro do Cosmos. No máximo, tal qual indicava o Timeu, elas teriam movimentos caóticos que seriam vez por outra mudados pelo choque de umas com as outras de acordo com as suas características materiais e causas necessárias.

O termo incomensurável traduz o grego "ametros" (ἄμετρος), a negação daquilo que possui medida. acaso e o caótico não têm o poder de produzir (ποιεῖν) nada ordenado. Ninguém dá aquilo que não possui. O artífice, humano ou divino, pode ordenar porque possui em seu intelecto a forma a ser imposta. Medir algo é impor um padrão, o que exige a invariabilidade do metron utilizado. 

desordem, ao contrário, não é feita ou produzida. O construtor se esforça para erguer a casa, mas nenhum trabalho é necessário para a casa se deteriorar. Basta que o morador negligencie a sua manutenção para que a casa vá aos poucos deixando de ser habitável. Hermes Trismegisto assinala que até a desordem dentro do mundo, onde quer que ela diminua a ordem, não é insubmissa ao mestre ordenador. A fim de que o Todo seja preservado, se faz necessário que as desordens pontuais sejam mantidas dentro de certos limites.

Se Tat pudesse voar, postando-se no meio entre o céu e a terra, e contemplasse o espetáculo dos fenômenos (as ondas do mar, as correntezas dos rios, o curso das constelações, etc.), em um só instante, veria o imóvel sendo movido, e o imanifesto manifestado nas coisas que faz. O voo é símbolo da ascensão aos planos mais fundamentais da realidade. Postar-se no meio (μέσον) entre o céu e a terra é estar no centro entre as polaridades, as terrenas (materiais, sensíveis, individualizadas, mortais) e as celestes (imateriais, formais, universais, imortais).

Testemunhar a totalidade dos fenômenos a partir do meio, o ponto que não está nem cá e nem lá, é contemplá-los a partir do "atopos" (ἄτοπος, "fora de lugar"). Porém, diferente do "atopos" mencionado anteriormente, aquele da desordem (a falta da ordem), o "atopos" do meio simboliza aquilo que transcende a ordem do mundo por ser a sua fonte. Ver as coisas em um só instante (o nunc instans) é contemplá-las fora do tempo, sub specie aeternitatis. 

Tat veria "o imóvel sendo movido". Deus é imóvel, mas, divisado por meio dos fenômenos, é como se Ele se tornasse móvel na mudança visível das coisas. Enxergaria "o  imanifesto sendo manifestado nas coisas que faz". É desse modo que a invisibilidade do Nous se mostra aos olhos. "Essa é a ordem do mundo e esse é o mundo da ordem". O Cosmos (κόσμος) é ordem (τάξις), e vice-versa.***

Idêntica evidência do Nous é fornecida pelos seres mortais que são os homens. Hermes pergunta a Tat quem ordenou seus corpos, abriu suas bocas, furou suas narinas e seus ouvidos, quem fez seus ossos sólidos, etc. Quantas obras, todas belas, medidas com exatidão, e todas diferentes! Que tipo de pai ou de mãe poderia ter criado tudo isso por sua própria vontade senão o Deus Imanifesto (ἀφανής θεός)? 

Negar que essa obra cósmica tenha vindo a ser sem Demiurgo, seria como afirmar que uma estátua ou uma pintura veio a ser sem um escultor ou sem um pintor. Sobretudo, seria uma grande impiedade privar o Demiurgo de suas obras. A impiedade (ἀσέβεια, "asebeia") é a ausência da piedade (εὐσέβεια, no grego/pietas, no latim), a reverência e o respeito pelos pais, pelas normas, e, principalmente, pelos deuses. É um dever religioso atribuir a Deus o que somente Ele poderia haver produzido.****

"Porém, se necessitas que eu diga algo mais desafiador, a essência desse é o criar e fazer todas as coisas". O Absoluto é encarado no discurso de Hermes Trismegisto a partir de Sua relação com o Cosmos, isto é, sob o aspecto de Demiurgo, Artífice. Sem Deus não poderia haver nada do que há. As coisas sensíveis são engendradas, cada uma a seu tempo. Aquilo que não existia, e vem a ser, só pode ter passado a existir pela ação causal de algo existente. Esse fato demonstra a impotência ontológica dos entes sensíveis.

"Esse não pode sempre ser se não faz sempre todas as coisas". produção, "poiesis" (ποίησις) divina, é incessante, diferente daquela de um artífice humano que encerra seu trabalho tão logo sua obra está completa. Um homem possui a arte ("techné", τέχνη) da construção na qualidade de um saber adquirido, mas é propriamente construtor enquanto está construindo a casa. Terminada a obra, ele volta a ser construtor no sentido daquele que sabe construir.

A atividade produtora divina é incessante justamente porque não é temporal. Em Deus não há antes ou depois. São as coisas que vem a ser no tempo graças ao Seu poder gerador eterno. Segundo a bela definição do Timeu, o tempo é uma "imitação móvel da eternidade". A criação divina, encarada a partir da sucessão dos entes sensíveis que vem a ser e deixam de ser, adquire um aspecto temporal. Muitos seres existiram, muitos existem e muito ainda existirão. 

"As existentes, deveras, ele manifestou, porém, as não existentes ele tem em si mesmo". Do ponto de vista da sucessão temporal dos seres (onde estamos), e em comparação com as coisas que existem e que existiram, percebemos que outras tantas seriam igualmente possíveis. Elas foram, por assim dizer, preteridas. Se uma possibilidade se realiza, outras necessariamente são negadas, e permanecem no seio da divindade como possibilidades irrealizadas neste mundo.

"Deus é o melhor nome, esse é o imanifesto, esse é o mais manifesto; o visível pela mente, esse é perceptível pelos olhos". Sem contradição, o Deus que em si mesmo é imanifestado é manifestado pelas coisas que produz, e o que é inteligível é perceptível por meio dos entes sensíveis que o imitam a seu modo e dentro de suas capacidades. "Esse é incorpóreo, multicorpóreo, mas principalmente omnicorpóreo". Deus, embora seja incorporal, quando encarado a partir dos entes corporais, manifesta-se sensivelmente em todos os corpos, como se fosse corpóreo.

"Nada é que ele não é. Pois todas as coisas que existem também ele é". Deus está em todas as coisas enquanto seu fundamento, dado que tudo o que elas são provém exclusivamente dele. Nesse sentido, Ele é todas as coisas. A imanência divina (a presença real em tudo que há) não nega e nem diminui a transcendência divina (que ultrapassa tudo). Deus está intimamente presente em tudo porque é o poder infinito que faz todos os entes finitos existirem. 

"E por isso mesmo, ele tem todos os nomes, porque são de Um Único Pai". Todos os nomes pertencem a Ele porque o que quer que haja neste mundo não é mais do que uma manifestação limitada do absoluto poder divino. Os nomes das coisas pertencem a Deus de modo imperfeito, obviamente. Jamais será correto confundir ou identificar o manifestado com o imanifestado.

Analogamente, todos os números são formados pela unidade, mas a unidade não muda em nada em si mesma não importando quão grandes ou quão pequenos sejam os números que por ela são formados. Os números sofrem adição, subtração, divisão, multiplicação. A unidade permanece idêntica a fim de que essas operações sejam possíveis. A unidade é imanente aos números, está presente em qualquer um deles, e é transcendente, não pode ser reduzida ou limitada a nenhum deles. 

"Então, quem te bendirá abaixo de ti ou em direção a ti? Não existe um lugar ao qual se dirigir a fim de louvar a Deus. O que está em cima está embaixo. O Cosmos é uma teofania, uma manifestação divina. Qualquer lugar é idêntico no que tange à presença de Deus. "Todas as coisas estão em ti, todas as coisas vêm de ti". Deus é generoso, dá sem limites, e nada recebe de ninguém. De quem Ele poderia receber algo? "Pois tens todas as coisas, e nada existe que não tenhas". 

"E por que eu te cantarei? Como sendo de mim mesmo, como tendo algo próprio, como sendo outro?" Nada existe que não seja obra de Deus. Portanto, quando alguém canta hinos em Sua homenagem, inevitavelmente concebe Deus como um "outro" com o qual se relaciona. Converte-se Deus em um ente diferente de si do mesmo modo que João é diferente de Pedro. Hermes Trismegisto não está questionando a justiça do louvor. A questão é perceber que, na realidade, o manifestado não possui em si nenhum poder de existir. 

O homem, um ente manifestado, quando se enxerga a partir somente da manifestação, acaba atribuindo a si uma independência ontológica que não possui. Acredita que ele, Deus e todas as coisas existem num mesmo patamar. Rebaixa o Princípio ao nível das coisas sensíveis. Em certa medida, esse nivelamento é inevitável. O ser humano vive entre seres sensíveis, e não é de se espantar que acabe se relacionando com Deus segundo os modos próprios das coisas. 

O discurso iniciático de Hermes Trismegisto não visa eliminar essa tendência. Afinal, de que maneira alguém poderia se dirigir a Deus senão reduzindo-o a um ente, a um ser do qual está separado, e com o qual é necessário estabelecer comunicação? O objetivo do discurso é recordar/revelar que a linguagem do manifestado não é adequada ao imanifestado, e que, no fundo da realidade, somente o Absoluto existe"Pois tu és todas as coisas, e nenhuma outra coisa existe: o que não existe, tu és". O que há e o que pode haver residem sem diferença no poder infinito de Deus.

"Nous por ser pensado; e Pai por criar; e Deus por operar; e Bom por fazer todas as coisas". Princípio é único, sem quaisquer distinções ou divisões internas. Porém, captado pelo pensamento, assume o aspecto de Nous. Ele é o Pai, visto enquanto gerador das coisas. Tem o nome de Deus, quando encarado em Sua operação (ἐνέργεια) contínua de trazer os entes à existência. E é Bom (ᾰ̓γᾰθός) pela liberalidade (γενναιοδωρία) com a qual dá origem a tudo sem ciúme (Φθονος). 
 
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*Tradução do Prof. David Pessoa de Lira.
** "O deus sempre geometriza", em grego.
*** Compare-se mundo (do Latim mundus, "limpo", "puro", "adornado") com seu antônimo imundo (literalmente, o "não-mundo").
**** A impiedade estava entre os crimes pelos quais Sócrates foi condenado injustamente pelo tribunal da democracia ateniense em 399 antes de Cristo.
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domingo, 25 de agosto de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 1)


"Foi criado um ser vivo visível, abarcando dentro de si aquelas criaturas visíveis. Foi criado como um deus visível, feito à semelhança do deus inteligível. Este nosso cosmos é singular, o único do tipo. Não há maior ou melhor, nenhum mais belo, nenhum mais perfeito."

PLATÃO, Timeu, 92c

O Corpus Hermeticum é uma coleção de dezoito discursos em grego que faz parte de uma pletora mais ampla de textos afins a qual ficou conhecida posteriormente como Hermetica. Os libelli que formam o Corpus remontam aos primeiros séculos da era cristã, e foram atribuídos a Hermes Trismegistos (Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, o "Hermes Triplamente Grande"), figura mítica que combina em si aspectos do deus grego Hermes, o mensageiro divino e psicopompo e de Thoth, divindade egípcia da sabedoria, da escrita, da magia e do julgamento. 

A influência do hermetismo, enquanto tradição filosófico-religiosa, se fez sentir na alquimia, na magia, no neoplatonismo, e mesmo no cristianismo. Preservados pelos mil anos do Império Romano do Oriente, enquanto a Europa ocidental vivia a chamada Idade Média, os discursos herméticos foram traduzidos ao latim somente em 1463 pelo padre católico, filósofo neoplatônico e mago Marsilio Ficino, a pedido de Cosimo de Medici, antes mesmo que completasse a tradução dos diálogos platônicos. 

A grande historiadora Frances Yates, em seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, mostra que o projeto de restauração religiosa de Giordano Bruno estava centrado em concepções greco-egípcias de uma prisca theologia contida nos escritos herméticos, os quais considerava serem mais antigos que a lei mosaica. Porém, em 1614, o filólogo e classicista Isaac Casaubon determinou que a data de composição do Corpus Hermeticum estaria entre os séculos III e IV da era cristã. Não obstante, o hermetismo permaneceu sendo uma das principais fontes (se não a principal) do esoterismo ocidental.

No artigo La Tradition Hermétique, publicado em 1931 na revista Le Voile d'Isis, René Guénon esclarece que o hermetismo é um conhecimento de ordem estritamente cosmológica, não da ordem metafísica pura. Portanto, não representa uma doutrina tradicional completa, mas sim um ponto de vista secundário e contingente de aplicação dos princípios metafísicos ao "mundo intermediário". No ano seguinte, na mesma revista, em artigo intitulado Hermès, Guénon reitera seu juízo sobre o hermetismo, acrescentando que

"De todo modo, deve ser bem entendido que não quisemos de forma alguma depreciar as ciências tradicionais que são da alçada do hermetismo, nem aquelas que lhes correspondem em outras formas doutrinais no Oriente e no Ocidente. Todavia, é necessário saber colocar cada coisa em seu lugar, e tais ciências, como todo conhecimento especializado, são somente secundárias e derivadas com relação aos princípios, dos quais não são mais que a sua aplicação a uma ordem inferior de realidade." (tradução minha do original em francês)

O próprio caduceu (κηρύκειον, "kerykeion"), o "cajado do arauto", que a tradição grega atribui a Hermes, simboliza o âmbito do hermetismo: duas serpentes (ou uma única serpente com duas cabeças) que se enrolam em espiral em uma bastão, e cujas cabeças se encaram mutualmente. O bastão vertical representa o Axis Mundi, o "Eixo do Mundo", que unifica e fundamenta todos os níveis da realidade, da Terra ao Céu. As duas serpentes que se encaram horizontalmente representam as dualidades e a manifestação dos diversos estados do Ser que são reunidos pelo "Eixo do Mundo".

Hermes, o Mercúrio romano, é uma divindade do intermediário. Na Grécia antiga, as estradas eram pontuadas por hermas (ἕρμα), pilares de pedra encimadas por cabeças esculpidas de Hermes e com um pênis na parte inferior, onde os gregos faziam libações e oferendas. O deus grego era o protetor dos arautos, dos ladrões, dos viajantes e dos comerciantes*, aqueles cujas atividades se dão na estrada, o medium que separa e une a um só tempo.  No canto XXIV da Ilíada, Hermes guia e protege o incognito rei troiano Príamo na sua rota até à tenda de Aquiles, a quem implorará a devolução do corpo de seu filho, o herói Heitor. 

O condutor realiza a união entre pontos distanciados, é um intermediário que possui a arte (τέχνη) da orientação não somente no espaço, mas também entre domínios da realidade. Hermes Chtonico é o psicopompo, o guia das psychai, invocado ao fim do terceiro dia da festa dionisíaca da Anthesteria para reconduzir os mortos que haviam entrado na cidade de Atenas aos campos de asfódelos no Hades, tal como narrado por Homero no canto XXIV da Odisséia:

"E o Auxiliador, Hermes, levou-as por caminhos bolorentos; chegaram às correntes do Oceano e ao rochedo branco; passaram além dos portões do Sol e da terra dos sonhos e chegaram rapidamente às pradarias de asfódelo, onde moram as almas, fantasmas dos que morreram." (tradução de Frederico Lourenço)

O caráter intermediário do hermetismo fica claro na doutrina da correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo da Tabula Smaragdina: "quod est superius est sicut quod est inferius, et quod est inferius est sicut quod est superius". O que está em cima é como o que está embaixo, e vice-versa. Existe uma simpatia (συμπάθεια, tema caro aos neoplatônicos)** que une todos os níveis do Cosmos, o deuteros theos (δεύτερος θεός, o "segundo deus"). Sejam eles simbólicos, cósmicos ou ontológicos, os vínculos que unem todas as coisas permitem que se passe de um nível a outro da realidade, desde que as transposições adequadas sejam feitas.

No Corpus Hermeticum, o quinto libellus de Hermes a seu filho Tat esclarece o aparente paradoxo de "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Trata-se de um discurso iniciático acerca do melhor dos nomes, que é Deus, e constitui-se numa ascensão ontológica que vai do manifestado ao imanifestado. O que é para muitos o imanifesto (ἀφανής, "invisível", "oculto"), vai se tornar para Tat o mais manifesto.***

Na tradição hindu, o termo sânscrito prādurbhāva significa "aparecer", "vir-a-ser" ou ainda "manifestar-se", e é geralmente empregado para designar aquilo que está no mundo de nāmarūpa ("nome-forma"), isto é, no mundo das limitações (upādhi) e das condições que constituem os seres. Por conseguinte, Brahman, Incondicionado, "Um sem Segundo", a realidade absoluta e fundamental, é, par excellence, Imanifestado.

A maioria dos homens só consegue reconhecer o fenômeno (φαινόμενον, "aquilo que aparece"), o que pode ser testemunhado pelos sentidos. O fundamento da realidade visível, no entanto, é invisível. O orfismo atribuía a origem do mundo a Phanes (Φάνης), divindade nascida do "ovo cósmico", símbolo tradicional das potências cosmológicas enquanto ainda contidas no Princípio. Associado etimologicamente ao brilho e à luminosidade, Phanes simboliza a relação intrínseca entre o Cosmos e o visível. 

Hermes Trismegistos afirma que Deus é ἀφανής, imanifesto, invisível. Isto é, ao contrário de Phanes, o "primeiro nascido" (Πρωτογόνος), Deus não é cósmico. Tudo o que é manifestado é engendrado, tem uma origem (genesis, Γένεσις), não existe desde sempre. Vir-a-ser, manifestar-se, implica ser engendrado, significa não existir desde sempre. "Pois não existiria sempre se não fosse imanifesto". A eternidade ou atemporalidade de Deus o distingue essencialmente das coisas manifestadas. O Cosmos é visível, e só comporta entes engendrados, temporais.

Note-se que já no Timeu de Platão são postulados dois axiomas fundamentais para a construção do Cosmos"o que sempre é, e nunca vem a ser" e "o que vem a ser, e nunca é". O primeiro refere-se àquilo que possui absoluta estabilidade ontológica, e que, portanto, nunca passa por qualquer mudança. Em particular, não "vem a ser", não é gerado, engendrado em algum tempo.

O segundo axioma refere-se àquilo que "vem a ser", que é gerado, engendrado em algum tempo, e que, por isso mesmo, não possui estabilidade ontológica. Algo assim nunca é, nunca existe realmente, dado que não era, veio a ser, e depois deixará de ser. O que "é sempre" é conhecido pelo intelecto, enquanto o que "vem a ser" é conhecido pela sensação. Em suma, o sensível, visível, o temporal, tem a sua tênue realidade ancorada ontologicamente no inteligível, no invisível, no atemporal.

Hermes Trismegisto prossegue dizendo sobre Deus que "sendo ele imanifesto, faz todas as outras coisas manifestas". Princípio, é o fundamento das coisas limitadas e condicionadas justamente por não estar submetido às limitações e às condições dos seres por Ele originados. A afirmação seguinte, "como sempre existe, ele não é manifestado pelas coisas manifestas", parece negar o que foi prometido no início do discurso, a saber, que o imanifestado se tornaria a Tat o mais manifesto. A explicação para essa passagem é que as coisas não manifestam Deus tal como Ele é, fora de qualquer relação com elas.

As coisas são como lentes que permitem que o invisível seja visto, mas que "distorcem" em alguma medida aquilo que é visto. Se, por um lado, um objeto postado à longa distância só pode ser visto graças ao poder das lentes de um binóculo, por outro lado, aquele que vê o objeto deve descontar o efeito das lentes para fazer um juízo adequado da situação e não crer que o objeto esteja realmente próximo. As coisas revelam Deus na medida de suas capacidades. As suas limitações intrínsecas não devem ser atribuídas a Ele. 

Sendo atemporal, Deus não é manifestado pelas coisas temporais. A razão ontológica disso é que a manifestação, o engendramento, é o modo de aparecimento próprio dos entes. O ilimitado não se manifesta enquanto ilimitado. Se o fizesse, tornar-se-ia limitado, o que é absurdo. O modo de "aparecimento" de Deus é o "desaparecimento" dos entes. Enquanto estes não são abstraídos, ultrapassados, nenhum conhecimento de Deus é possível. 

"Pois a aparência sensível é somente dos engendrados. Por isso, nada mais é o engendramento do que a aparência sensível". O discurso hermético estabelece a implicação mútua entre ser sensível e ser gerado. É sempre sensível o ente que não existia e passa a existir (pela ação causal de outro ente que já existe). "E o inengendrado, plenamente e inaparente e imanifesto é Um". Deus é mónos (μόνος, "único", "sozinho", "desacompanhado"), não como indivíduo (ser numericamente distinto dos outros seres), mas como Princípio de todas as coisas.

Contrastando com a unicidade divina, as coisas sensíveis são múltiplas, e se manifestam em todas as coisas. Hermes Trismegisto exorta seu filho a orar ao Senhor (κύριος) e Pai (πατήρ), pois um só raio que seja lançado por Ele no pensamento de Tat em resposta à sua petição pode fazê-lo compreender tão grande Deus. "Pois somente a intelecção, e como sendo ela imanifesta, vê o imanifesto". Na filosofia grega, platônica ou aristotélica, a intelecção ("nóesis", νόησις) capta a Forma (εἶδος, no sentido de "padrão", "essência") das coisas individuais que são percebidas pela sensação (αἴσθησῐς, "aísthēsis"). 

O intelecto (νοῦς,"nous") é, ao mesmo tempo, o atributo que define o ser humano e a sua parte mais divina. É por meio dele que o homem possui ciência (ἐπιστήμη,"epistēmē") daquilo que é mais fundamental e universal nas coisas, e, portanto, mais verdadeiro e mais real. Os sentidos só percebem o sensível, o múltiplo. O intelecto apreende aquilo que, não sendo sensível, unifica e causa os entes sensíveis. Subindo na cadeia das causas dos entes, Deus é a causa universal de tudo o que há e pode haver.

Nos discursos anteriores do Corpus Hermeticum, Deus é repetidamente denominado Nous. Ele é o intelecto que produz todas as coisas, e o ser humano, dotado de nous é capaz de apreendê-Lo. O que está em cima é como o que está embaixo. O intelecto divino é refletido no homem como um objeto é refletido no espelho. A imagem guarda semelhançaembora nunca seja o objeto na sua inteireza. nous humano é o Nous divino refletido no espelho das condições que definem o tipo de ser que é o homem.

"Se puderes, ele se manifestará aos olhos da mente, ó Tat". Caso seu intelecto seja forte o suficiente, preparado para isso, o Nous vai se revelar ao nous de Tat. "Pois o Senhor é livre para se manifestar através de todo o mundo". O termo grego "aphthónos"(ἄφθονος)que é traduzido aqui como "livre", é o antônimo de "phthónos" (φθονος,"ciúme" ou "inveja"), pode ser traduzido também por "liberalidade" ou "generosidade". 

No Timeu, o mesmo termo ἄφθονος é atribuído ao Demiurgo (δημιουργός, "artífice"), o criador do mundoA intenção era opor a "generosidade" (generoso é quem gera, genesis) do Demiurgo ao temido "ciúme" das divindades tradicionais. Na religião grega, o homem cuja vida fosse excepcionalmente feliz atrairia a "inveja" dos deuses, que o castigariam com a desgraça. O Nous é isento de mesquinhez, e gera todas as coisas sem reservas.

"Podes ver a intelecção e receber com as próprias mãos, e contemplar a imagem de Deus?". O conhecimento adequado de Deus não se dá pelos sentidos e nem pela imaginação (φαντασία, "phantasia", "fantasia"), que só pode combinar e recombinar os dados sensíveis guardados pela memória. A imagem (εἰκών, "ícone") que é objeto de contemplação (θεωρία, "theoria") não é sensível e nem imaginativa. 

"Porém, o imanifesto está em ti e por ti". O Nous está em Tat. "Como, o si mesmo em ti mesmo, através dos olhos, será manifestado a ti?" De que modo é possível reconhecer o imanifestado naquilo que é manifestado é a questão a que vai se dedicar na sequência o quinto discurso de Hermes Trismegisto.

(continuará na parte 2)

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* Note-se que o comerciante é um intermediador entre o que é produzido e o consumidor.

** A simpatia, por sinal, é o fundamento da magia segundo Plotino nas Enéadas.

*** Sigo basicamente a excelente edição bilíngue do Corpus Hermeticum Graecum do Prof. David Pessoa de Lira, publicada em 2023 pela editora Cultrix. Consultei também a tradução inglesa de Clement Salaman, Dorine van Oyen, William D. Wharton e Jean-Pierre Mahé, intitulada The Way of Hermes, de 1999.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

As armas, os livros e os limites da realidade

                    Ilustração de Jörg Breu para o Fechtbucher (1540) de Paulus Hector Mair
                                         
"A espada é a mente. Estude a mente para conhecer a espada. Mente maligna, espada maligna."

TORANOSUKE SHIMADA, "Dai-bosatsu Tōge", 1966

A pergunta “você prefere armas ou livros?” é constante nos debates públicos. A depender de sua resposta, o questionado é alocado na classe dos bons ou na classe dos maus. Se há algo que parece caracterizar os tempos atuais é certo infantilismo intelectual, uma recusa persistente a enxergar as complexidades e os limites intrínsecos da realidade em nome de slogans ou de chavões reconfortantes que têm por objetivo primário atuar como sinais externos e rasos de pertencimento a determinados grupos considerados a priori como representantes inequívocos da moralidade e da civilização.

A vida ética se constitui pela contínua atividade tentativa de identificar nas situações concretas quais são as ações mais adequadas para realizar o bem, para preservá-lo, ou, ao menos, para diminuir o mal, levando em conta para isso todas as circunstâncias e informações relevantes em cada caso. Optar abstratamente pelas “armas” ou pelos “livros” está longe de ser suficiente para determinar o valor moral de alguém.

First things first. Em termos lógicos, é óbvio que a escolha “armas ou livros”, do modo como é colocada, é um exemplo claro da falácia da falsa disjunção. A falácia consiste em apresentar uma disjunção como se as opções em jogo fossem as únicas e necessariamente incompatíveis entre si. No caso em questão, não há absolutamente nada em “armas” e em “livros” que os tornem completamente irreconciliáveis. Não há impedimento lógico de compor uma conjunção do tipo “armas e livros”.

O debate já se inicia utilizando uma falácia para que o interlocutor seja obrigado a escolher somente um dos lados. A desonestidade intelectual está no modo mesmo como a pergunta é formulada. Mas não é só isso. O segundo aspecto de desonestidade reside no fato de que a disjunção é formada por termos puramente abstratos. O que significaria optar por “livros” ou por “armas” abstratamente é algo que escapa à compreensão de qualquer pessoa racional.

No mínimo, a pergunta deveria ser acompanhada por um complemento como “na situação X” ou “para alcançar o objetivo Y”. Jogadas ao ar como se elas significassem algo fora de quaisquer circunstâncias, as duas opções não dizem rigorosamente nada. “Em uma guerra, o senhor prefere estar de posse de uma arma ou de um livro?” Esta é uma indagação com sentido. Sem esse tipo de complemento, “armas” e “livros” flutuam no ar como pássaros no céu.

Entretanto, é preciso reconhecer que “armas ou livros?” adquire um arremedo de sentido por conta de algumas premissas ocultas. A pergunta talvez pudesse ser traduzida em termos de “você é uma má pessoa, um ogro violento e inculto, ou você é uma pessoa boa e esclarecida que acredita na superioridade ética do trabalho intelectual?” A indagação ganha contornos de uma verdadeira coação moral: “veja lá se você vai responder corretamente, disso depende sua aprovação ou desaprovação no grupo”. A única resposta possível é estar de acordo com algumas categorias éticas muito genéricas que são aprovadas pelos “esclarecidos” ou pelos "ungidos", segundo o termo empregado por Thomas Sowell.

Tudo isso não resiste a um exame racional mais detido. Os termos “arma” e “livro” designam objetos da realidade criados pelo homem para certos objetivos. Os livros são veículos de informações impressas e as armas são instrumentos potencialmente letais de defesa ou de ataque. Enquanto tais, não são intrinsecamente bons ou maus. A idolatria dos livros e a demonização das armas são exemplos inequívocos da simplificação infantil da realidade.

Poucos fenômenos são tão constrangedores nos debates do que os suspiros de elevação celestial com que certos interlocutores reagem à mera menção a livros. É como se estivessem diante da mais sacrossanta e pura das realidades divinas. Assinale-se, en passant, que frequentemente o elogio exaltado dos livros está em relação proporcional inversa à efetiva leitura dos mesmos.

O livro tornou-se um fetiche socialmente aceito e incentivado. As ofensas (e as falácias) mais frequentes em discussões públicas ou privadas são aquelas que pretendem imputar ao interlocutor o grave crime de não ser muito chegado à leitura. “Vá estudar!” é a pretensa reductio ad absurdum dos acalorados debates atuais. Em outros termos, a ordem significa que “eu li muito, e gosto de ler, portanto sei mais do que você que não lê nada.”

O fetiche vai tão longe que adquire contornos soteriológicos. O livro vai salvar o mundo, e tornar a todos bons cidadãos. O livro teria um efeito mágico benéfico a despeito de seu conteúdo objetivo. Todos já ouviram a afirmação de que se deve ler qualquer coisa, o que cair nas suas mãos, pois o importante é ler e adquirir o famoso hábito da leitura. Todo esse culto irracional do valor intrínseco do livro deixa de ver o óbvio: não existe o livro in abstracto.

Às vezes é necessário lembrar às pessoas que o Mein Kampf é um livro. Há algum efeito mágico positivo naquelas odientas e mal escritas páginas? Ninguém imagina que ao optar pelo “livro” esteja optando também pelo Mein Kampf. Por isso não faz sentido exaltar o “livro” em abstrato. Na realidade, há sempre livros com conteúdos determinados. Eles podem ser considerados bons ou maus de acordo com o que veiculam. Nada mais óbvio.

Algo semelhante se dá com as armas. Elas não são más em si mesmas como se pretende muitas vezes. Mau ou bom, justo ou injusto, é aquele que empunha a arma. É um erro categorial básico atribuir intenções morais a um objeto inanimado. Dirão certamente que a arma é feita para matar. Nem sempre. Em boa parte dos casos, as armas têm o efeito de dissuasão. A razão pela qual os países bandoleiros não invadem seus vizinhos é o receio de enfrentar reação armada do país invadido ou de seus vizinhos. Não é preciso dizer que o mesmo cálculo informa a mente dos bandidos.

Por outro lado, quando usada, a arma não é sempre agressiva. Ela pode ser defensiva. Ninguém em sã consciência pode negar o direito à legítima defesa. E é mais do que evidente que o uso da arma nesses casos pode resultar na morte do agressor. Alguém pode alegar que a vítima da agressão também pode morrer. Sim, não existe segurança perfeita ou certeza de sucesso neste mundo. Contudo, uma chance é melhor do que nenhuma. It is what it is.

O importante é notar que a realidade possui mais nuances e sutilezas do que sugere a disjunção simplista entre armas e livros. Houve civilizações e sociedades sem livros, e mesmo sem escrita, mas jamais houve civilização ou sociedades sem armas. A ideia de que as armas serão um dia abolidas totalmente pela ação educadora dos livros é pura fantasia utópica. O mundo não é assim, e temos que adotar uma posição mais realista e mais adulta acerca desses temas.

Não há um pote de ouro no fim do arco-íris. Não há uma direção fantasmagórica na História, e nem um progresso moral necessário que desemboca no paradisíaco reino de Preste João. O mistério da consciência humana é insondável e avesso a qualquer tentativa determinística de amoldamento educacional. O que se pode fazer é apresentar a cada indivíduo o nosso patrimônio civilizacional acumulado, e torcer para que ele opte por aquilo que de melhor produziu o ser humano. É uma esperança apenas, não há garantias.

Outra forma da disjunção falaciosa entre armas e livros se apresenta como uma suposta relação de proporção inversa: “mais livros, menos armas”. Se a quantidade de livros for maior, a quantidade de armas será menor. De novo, não há qualquer relação lógica necessária que ampare essa relação. Colocada nesses termos, trata-se ou de um sofisma puro e simples ou, na melhor das hipóteses, de wishful thinking.

Curiosamente, desde Gutenberg até nossos dias, não parece ter havido nenhuma diminuição digna de nota em termos de guerras, massacres, revoluções sangrentas, genocídios, opressão e violência armada em geral. Se tomarmos só o século XX, nunca houve tantos livros em circulação, e isso não impediu que as guerras mais mortíferas e os regimes mais sanguinários e genocidas acontecessem justamente nessa quadra histórica.

Quantos milhões não foram mortos por inspiração do Mein Kampf, do Manifesto do Partido Comunista ou do Livro Vermelho? Os citados acima são apenas alguns, mas a quantidade de exemplos de livros deletérios que direta ou indiretamente instigaram violência é incontável. Não foram as armas diretamente que mataram tantos, foram homens imbuídos por ideias contidas em livros. Seres humanos usam armas, não o contrário. Não se trata aqui tampouco de condenação dos livros. O busílis é desfazer o maniqueísmo de que livros são intrinsecamente bons e armas intrinsecamente más.

Ao fim e ao cabo, livros não defendem bibliotecas. Armas defendem bibliotecas. Só é possível manter bibliotecas e livrarias abertas pela razão necessária, mas não suficiente, de que há homens armados assegurando a ordem interna e defendendo a integridade territorial de forças hostis externas. Considere-se quem defendeu as bibliotecas monacais contra as investidas destruidoras dos vikings na Idade Média. Não foram eruditos citando Aristóteles.

A violência é um traço ineliminável da realidade. Ela pode ser contida ou diminuída, jamais extinta. Armas são necessárias para a preservação da cultura e da civilização. A Atenas de Sólon, Péricles, Sócrates e Platão foi também a Atenas de Maratona e de Salamina. Não é preciso optar por armas ou por livros. É preciso entender os lugares adequados de cada um desses entes dentro da vida humana tal como ela é.
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terça-feira, 13 de agosto de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos VII e VIII)

"O singular é de per si incomunicável. Contudo, há comunicação entre os singulares, mas pelo que têm de universal, de comum. Toda coisa tem uma diferença individual e uma natureza universal. Se houvesse só a singularidade, não haveria assimilação, nem conhecimento."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 49

Qualquer ente atua, opera, segundo o seu eidos. Só pode realizar e sofrer aquilo que está contido na sua estrutura eidética, no tipo de ser que ele é. Qualquer cachorro pode realizar e sofrer tudo o que é permitido dentro da estrutura eidética dos cachorros. Voar não está inscrito nessa estrutura eidética, portanto cachorros não voam. Resumindo de uma forma negativa, ninguém dá aquilo que não tem.

Os seres concretos que nos cercam possuem também uma estrutura hilética, isto é, são constituídos por componentes materiais que são ordenados segundo a estrutura eidética, que, por sua vez, pode ser substancial (intrínseca nos seres naturais como o cachorro) ou acidental (extrínseca nos seres artificiais como o relógio). Entãopodemos pensar na estrutura eidética do cachorro fazendo abstração de todos os cachorros concretos, e nesse caso ela corresponderá puramente à espécie, ao gênero (no sentido ontológico, não biológico).

O cachorro concreto, por ser um compositum, um composto dessa estrutura eidética que ordena uma estrutura hilética, adquire uma realidade própria que é incomunicável a qualquer outro ser. Primordialmente, o cachorro difere de todos os outros seres (não é um ser humano, nem um gato, nem uma águia, etc.) por conta da estrutura eidética que determina/define o tipo de ser que ele é. Mas, além disso, todo cachorro é um cachorro, este cachorro hic et nunc, aqui agora, diferente de todos os outros cachorros que existem, existiram e existirão.

A estrutura eidética que pertence a todos os cães é individualizada, aqui e agora, neste cão concreto que possui características distintas de outros cães (cor, tamanho, etc.). Quando consideramos a estrutura eidética de todos os cães, ela é invariável. Quando consideramos a estrutura eidética concretizada nos cães individuais, ela adquire variabilidade. O meu cachorro é numérica e materialmente diferente do cachorro do meu vizinho, possui características individuais (temperamento, cor, tamanho, idade, etc.) e  sofreu, sofre e sofrerá mudanças (internas e externas) que o distinguiram, o distinguem e o distinguirão do cachorro do meu vizinho (e de todos os cães).

Analogamente, em um ente artificial, a estrutura eidética imposta à matéria é sempre formalmente idêntica e invariável. Um oleiro que faz vasos aplica na massa amorfa sobre a qual trabalha sempre a mesma forma (o vaso) que possui em sua mente. Todavia, ao realizar essa operação, o artista individualiza o eidos na matéria gerando assim vasos concretos que serão igualmente vasos na sua estrutura eidética, mas que diferirão uns dos outros numérica e materialmente. 

Este vaso aqui e agora é tão invariavelmente vaso quanto qualquer outro vaso, embora este possua características variadas que o distinguem dos outros. Por exemplo, a massa pode ser materialmente mais ou menos adequada para o vaso que o oleiro quer moldar, o que resulta em vasos que são melhores ou piores a depender do caso.  Mais ainda, cada vaso sofreu, sofre e sofrerá mudanças, sejam internas ou externas, que o distinguirão individualmente de todos os outros. Este vaso sofre uma queda e se quebra, aquele não sofre uma queda, mas é demasiadamente exposto ao Sol, adquirindo uma coloração diferente da original, etc.

A variabilidade pertence à estrutura eidética considerada in concreto, no compositum, naquilo que Aristóteles denominava sínolo (συνόλων, aproximadamente "todo unido" ou "todo ao mesmo tempo"). Mário Ferreira distingue uma estrutura eidética concreta (variável em cada ser considerado individualmente) do eidos (a estrutura eidética invariável quando abstraída dos seres concretos). Uma não pode ser confundida com a outra sob pena de não se compreender o que é dinâmico e o que é estático nos seres.

O cão não pode possuir ao mesmo tempo a estrutura eidética de um papagaio, e o armário não pode possuir a mesma estrutura eidética da cadeira. O que não significa que a matéria da qual o cachorro é feito não guarde potencialidades que poderiam se atualizar com outras formas. O cachorro morre, deixa de ser cachorro pela corrupção corporal, e seus componentes (físicos, químicos, etc.) servem de matéria para outros seres vivos (vermes, plantas, etc.). O armário pode ser desfeito, e suas partes serem reutilizadas na construção de cadeiras. 

Nem toda matéria é apta a realizar qualquer forma, há que haver proporcionalidade ou adequação entre ambas. Um transatlântico real não pode ser feito de papelão. Porém, toda matéria é apta a realizar alguma forma, inclusive algumas que não estão realizadas nela em um determinado tempo. É isso que permite as transformações que testemunhamos no mundo. A matéria que compõe um cão poderia compor outros seres vivos, e efetivamente vai compor outros seres vivos quando ele deixar de ser cão por conta da morte e da corrupção. A madeira do armário poderia compor outros artefatos, e efetivamente vai compô-los tão logo o armário seja desfeito e suas partes sejam reutilizadas para construir cadeiras.

A matéria recebe a estrutura eidética individuando-a, tornando-a este ou aquele. A humanidade, tomada mentalmente como universalidade, está presente inteira em cada ser humano, mas de modo individualizado, nos entes concretos João, Pedro, Maria, Paulo, etc. A humanidade nunca se manifesta concretamente enquanto humanidade, somente como estes ou aqueles indivíduos. Não haverá jamais no mundo "o vaso" (ou a "vasidade"), mas tão somente estes ou aqueles vasos.

O indivíduo, contudo, não é comunicável a outro. Pedro e João possuem individualmente tudo aquilo que é próprio da natureza humana (que é "comunicada" a eles ou "partilhada" por ambos). Pedro é tão humano quanto João, mas não existe uma "Pedreidade" que Pedro possa partilhar com João, e nem uma "Joanidade" que João possa comunicar à Pedro. O indivíduo, tomado na sua singularidade, não é compreensível em conceitos que englobam necessariamente outros indivíduos.

Este Pedro (nascido em tal local, em tal data, com aqueles pais, com tais e quais características físicas, etc.) é absolutamente único e irrepetível. Só podemos compreender Pedro naquilo que ele compartilha com muitos outros. Quando afirmamos que "Pedro é brasileiro", comunicamos seu pertencimento a um grupo humano específico: o brasileiro. Se dizemos que "Pedro é impaciente", comunicamos um aspecto psicológico que ele partilha com muitos outros seres humano: a impaciência. 

Ao nos referirmos a Pedro, somos capazes de apontar várias de suas características físicas, psicológicas, sociais, biográficas, etc. Apesar de todas essas informações darem alguma ideia de como é Pedro, jamais chegaremos a uma "Pedreidade" no sentido de uma essência que, em tese, poderia ser compartilhada por outros. Os indivíduos não são esquemas eidéticos presentes nas coisas concretas, e, por conseguinte, não podem ser compreendidos abstratamente pela inteligência como o são os esquemas eidético-noéticos.

Mário Ferreira explica que "o que faz que a unidade formal, que há no indivíduo, seja incomunicável, não se deve a ser formal, mas à sua individuação, o que pertence à onticidade. Onticamente é incomunicável, porque o comunicável é apenas segundo o aspecto formal, que é o aspecto repetível." 

Este Pedro é humano por que repete em si o mesmo padrão (a humanidade) presente em todos os seres humanos. Porém, este Pedro só é absolutamente idêntico a ele mesmo. Não há, e nem haverá, outro Pedro igual a este. Para que existissem concretamente dois "Pedros" seria necessário que houvesse alguma mínima diferença entre eles. Se não existe nada que diferencie Pedro dele mesmo, então não existe nada que possa ser abstraído deste Pedro e comunicado (ou aplicado, atribuído) a um suposto "outro Pedro". 

Nenhum indivíduo pode ser repetido em muitos. Somente o aspecto formal possui essa faculdade. A humanidade não é um indivíduo, dado que está presente nos indivíduos humanos. Se a humanidade fosse um indivíduo, ela seria numericamente distinta de Pedro e de João do mesmo modo que estes são numericamente distintos um do outro. Haveria três indivíduos em vez de dois: Pedro, João e a humanidade. Excluída a universalidade que os unia essencialmente, Pedro e João não seriam mais humanos. 

Dito de outro modo, em uma terminologia que o próprio Mário Ferreira não emprega, a realidade comporta condicionantes e condicionados. condicionante é um estado que define as condições sob as quais um ente vai se manifestar concretamente. O condicionado é o ente concreto informado pelos condicionantes. A humanidade é um estado condicionante que reúne os atributos do que é um ser humano. Trata-se de um conjunto ordenado e permanente de camadas de limitação (que os hindus denominam Upādhi)

O estado condicionante não é este ou aquele ser individualmente. Ele é, façon de parler, o feixe de condições que torna possível que haja este ou aquele ser. Por exemplo, corporalidade é uma das condições implicadas na humanidade. Todo ser humano individual será, portanto, corporal. O erro fundamental daqueles que negam qualquer realidade às universalidades está em confundir o modo de ser dos condicionantes com o modo de ser dos condicionados: se Pedro e João são homens, então o que eles têm em comum (homem) será um "terceiro homem".

O modo de ser do estado condicionante tem que ser real para que o modo de ser do condicionado também possa sê-lo. O individual encontra o seu fundamento no universal. E se o fundamento é mais real do que aquilo que ele fundamenta, então, cremos, encontra-se aqui a positividade insuperável do platonismo. Em que pese o fato de que só existem concretamente os indivíduos, estes possuem seu fundamento em estados condicionantes cujo modo de ser, por definição, não está submetido às condições que impõem aos condicionados (os indivíduos).

Se negamos que a humanidade exista fora dos indivíduos humanos, daí não se segue que a humanidade seja irreal sob qualquer sentido. Certo, ela não existe individualmente como Pedro e João existem. Todavia, enquanto estado condicionante, a humanidade possibilita perpetuamente a existência desses indivíduos. O condicionado (o indivíduo) é o limite último, nec plus ultra, para além do qual não se pode descer. É o precipitado final que surge dos estados condicionantes.

Pedro, enquanto indivíduo, é incomunicável a outro. O individual é impartilhável, não pode ser transmitido inteiramente a um outro sem perder a sua individualidade. Posso partilhar um bolo com meus amigos, mas para isso tenho que dividí-lo, isto é, separá-lo em partes menores que o todo. O bolo perde a sua individualidade para ser partilhado. A humanidade não perde nada de si quando é "partilhada" em muitos indivíduos. Cada um destes será integralmente humano. Se a humanidade fosse um indivíduo, teria de ser dividida numericamente em Pedro e em João tal qual o bolo é dividido em porções a fim de ser distribuído aos convivas da festa.

Afirma Mário Ferreira que "o singular é o que é um em número; universal, o eidos do que é um". O ente concreto, encarado a partir de seu ser individual, de sua singularidade numérica, de sua heceidade (haecceitas, qualidade de ser "isto"), é incomunicável. Somente o universal é comunicável, sendo aquilo que o ente individual possui em comum com muitos. Negar a realidade do universal acarreta negar a possibilidade do conhecimento. O saber científico busca identificar o universal que explica os fenômenos singulares. 

Uma fórmula da Física, por exemplo, expressa matematicamente a relação que se apresenta em diversos casos de um mesmo tipo. Se negamos a realidade dos universais, não haverá jamais dois casos sobre os quais aplicar a mesma fórmula ("pequena forma"). Cada ente singular será completamente diferente de todos os outros, seus atributos sendo irredutíveis a qualquer comunidade. Serão ilhas incomunicáveis indizíveis. Como chamar dois entes de gatos se não há entre eles nada em comum?

Não obstante, nem sempre possuímos noeticamente (no intelecto) com precisão a estrutura eidética dos seres. Sabemos que gatos são diferentes de cachorros. Captamos as suas respectivas estruturas eidéticas, que são independentes de nossa mente. Não as produzimos ou as inventamos. Estão lá nos gatos e nos cachorros tornando-os o que eles são. Porém, nos referimos tentativamente ao quid ("o que é", quidditas) das coisas mesmo quando não conseguimos formular conceitos adequados para expressar as suas estruturas eidéticas.
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terça-feira, 30 de julho de 2024

Meister Eckhart, união mística e a incompreensibilidade divina

"Quando o pote é quebrado, o espaço interior é absorvido no espaço infinito e torna-se indiferenciado. Quando a mente (mánas) torna-se pura, não percebo qualquer diferença entre a mente e o supremo Ser (Śiva)."

DATTATREYA, Avadhūta Gītā, Capítulo I, 16

"Pois aquilo que é transformado em outra coisa torna-se um com essa coisa. Se, então, sou transformado n'Ele de tal maneira que Ele me produz como a Seu próprio ser, um com Ele e não semelhante a Ele, pelo Deus vivente, então é verdade que aqui não há distinção."

MEISTER ECKHART, Sermão 6

Mestre Eckhart comenta no Sermão 6 a passagem bíblica do livro da Sabedoria (5,15) segundo a qual "os justos viverão eternamente, e sua recompensa está no Senhor". Quem são os justos dos quais fala o texto inspirado? São aqueles que dão a Deus aquilo que é Lhe próprio: a glória. Glorificam a Deus os que não buscam nada de seu no que quer que seja. Nem o bem, nem a glória, nem a concordância, nem o prazer, nem o interesse, nem a interioridade, nem a santidade, nem a recompensa e nem mesmo o Reino dos Céus.

O segundo sentido de justo se refere àqueles que recebem como equanimemente o que quer venha de Deus, sejam elas grandes ou pequenas, agradáveis ou peníveis. Os justos não possuem absolutamente nenhuma vontade própria. No Céu ou no Inferno, tudo seria o mesmo. Eckhart não quer dizer com isso que o justo, que é a mais alta expressão da santidade, possa ser equiparado ao réprobo condenado merecidamente ao Inferno.

O que o mestre renano sinaliza com sua hipérbole é que o mais desesperador estado concebível de sofrimento seria aceito pelo justo tão equanimemente quanto o mais sublime estado concebível de gozo. Não são estados agradáveis ou desagradáveis que importam para o homem justo. Se desejasse um estado e rejeitasse o outro, estaria ainda preso às suas preferências, e não permaneceria o mesmo em tudo.

A equanimidade e a ataraxia (ἀταραξία, "imperturbabilidade") são tradicionalmente características definidoras do sábio. O imperador romano e filósofo estoico Marco Aurélio considerava que o homem deveria receber com absoluta imperturbabilidade e equanimidade qualquer situação que o Todo lhe trouxesse. A renúncia às avaliações e aos juízos sobre a realidade fundados nas preferências pessoais é o outro lado da identificação do sábio com a ordenação suprapessoal do Todo. 

Os acontecimentos não são nem bons e nem maus, diz o estoico. São meramente o resultado da ordenação intrínseca que rege o Todo. Porém, o juízo pessoal sobre o que nos acontece é o que tinge os acontecimentos com as cores da ventura ou do infortúnio. Quando encarados a partir das razões do Todo, os mesmos acontecimentos são libertados da superimposição dos juízos e se apresentam segundo a sua natureza verdadeira. 

Analogamente, o justo de Eckhart não possui vontade própria, não faz juízos sobre a realidade baseados nas suas preferências. Mas, diferente do sábio estoico, identificado com a ordenação cósmica do Todo, o justo é imperturbável e equânime porque está identificado com o Uno, o fundamento último e indizível da realidade no qual as dualidades são absorvidas e abolidasAusente a diferença, não nascem as preferências.

"Os justos viverão", diz a passagem bíblica. A vida é o maior bem de todos os seres vivos. Eckhart afirma que "o ser divino é a minha vida. Aquilo que está em Deus, deve estar em mim, e a entidade de Deus deve ser minha própria entidade" O termo que o mestre utiliza na passagem citada, em alemão medieval, é "isticheit"*, do qual a tradução e a interpretação são difíceis. Pode ser traduzido como "entidade" ou mesmo "talidade", o tal de um ente. Algumas traduções utilizaram "essência", cujo correspondente em Latim é "essentia".

Se o justo está unido ao Princípio, então nada pode haver de diferente do Princípio. O ser do homem se perde na istcheit divina. Assim como Deus, o justo não será igual ou semelhante a nada, uma vez que Deus mesmo não possui imagem e nem forma. Novamente, nenhuma preferência pessoal ou inclinação às coisas mundanas pode se formar quando só há o Pai na Sua eternidade inenarrável e inexprimível. 

Tudo o que o Pai opera na Sua unidade originária e absoluta é Um. Na eternidade, o Pai engendra o Filho, e, por isso, engendra a própria alma do justo. Se este se identifica com Uno, então Deus engendra seu Filho, o Logos, e o justo numa única operação. Que fique claro que Eckhart em momento nenhum nega a diferença ontológica entre a geração do Logos e criação ex nihilo das almas e de todas as coisas contingentes. Essas afirmações têm sentido na alma totalmente mergulhada no Pai, e que por isso possui a operação una do Pai que é sempre a geração eterna do Filho.

"E o Pai, operando senão uma só obra, eis a razão pela qual ele me engendra enquanto Seu único Filho, sem nenhuma distinção." Tudo o que há no mundo é criado pelo Logos e no Logos. O justo, no seio do Pai, no Urgrung, no "fundo originário", testemunha o "momento" eterno no qual não somente o Filho é engendrado, mas também, por meio d'Ele, são engendradas todas as coisas, inclusive a si mesmo.

Tudo mais que a alma poderia desejar que não fosse o próprio Deus seria necessariamente algo infinitamente inferior a Ele. Se a beatitude fosse fundada na vontade, ela não seria una. A vontade implica separação, distinção. No amor, a alma entra em Deus. Ali, a alma é como a madeira lançada ao fogo, e que, absorvida e transformada, toma a natureza do fogo. Semelhantemente, Eckhart declara, "somos transformados em Deus, de modo a conhecê-Lo tal como Ele é".

Não obstante, nenhum discurso humano pode descrever a experiência da Unyo Mystica, tampouco definir o que é o Princípio. No Sermão 9, o mestre renano examina a definição formulada por um outro mestre segundo a qual "Deus é alguma coisa que necessariamente está acima do Ser". Nenhum dos entes que possuem ser, são temporais e espaciais, alcançam Deus em Sua sublimidade. No entanto, Ele está em todos os entes na medida em possuem ser, embora ultrapassando-os completamente. 

Eckhart refere-se nessa passagem aos temas tradicionais da transcendência e da imanência de Deus. Não há disjunção entre, respectivamente, o fato de que Ele está acima de todas as criaturas e o fato de Ele está inteiramente presente em todas as criaturas. Ao contrário, é justamente porque Ele está presente, imanente, em cada um dos entes que Deus os ultrapassa, transcende, a todos. A razão disso é que aquilo que é uno em muitos (ένα στα πολλά) necessariamente deve estar acima das coisas.

Tomemos o exemplo da humanidade no sentido de essência humana. Em cada ser humano, quaisquer que sejam as suas características particulares (local de nascimento, cor, etnia, altura, etc.), a humanidade está presente una e inteiramente, ao mesmo tempo em que transcende os indivíduos nos quais se encontra. Platão e Sócrates são identicamente humanos na sua natureza, mas diferem enquanto indivíduos materialmente existentes. Isto é, a humanidade está imanente como natureza em cada indivíduo justamente porque os transcende a todos.

Do mesmo modo, a alma está presente indivisa em cada porção do corpo na qualidade de seu princípio de organização e de vida. Ela está presente tanto no ouvido quanto no dedão do pé, mas não como algo material, e sim como a ordem imanente que organiza a matéria e dá vida ao corpo. É o corpo que existe por causa da alma e não o contrário. A alma é o princípio pelo qual um corpo vivente possui existência. Por essa razão, a alma transcende todas as partes do corpo. 

Cada período de tempo determinado é sempre diferente de outro período de tempo determinado. O instante presente, todavia, contém em si, enquanto princípio, todos os períodos de tempo. Qualquer medição temporal inicia-se em um instante e encerra-se em outro instante. É no instante presente, nunc instans, que Deus cria o mundo. Nessa simultaneidade atemporal, eterna, o Juízo Final está tão próximo quanto o dia de ontem.

Os exemplos acima ilustram a inseparabilidade da imanência e da transcendência. Analogamente, Deus está presente em tudo e transcende tudo. "Deus é alguma coisa que necessariamente está acima do Ser", ou seja, acima das limitações típicas dos entes. O Princípio não está submetido às limitações próprias do principiado e nem pode ser compreendido completamente a partir do principiado.

Eckhart prossegue seu sermão comentando em seguida a definição de outro mestre segundo a qual "Deus é alguma coisa que opera na eternidade, indiviso em si". Todo ente opera segundo o que permite a sua natureza. O que um ente pode fazer e pode sofrer é determinado pelo tipo de ser que ele é. O homem, por exemplo, sendo um animal, é capaz de locomoção, e sendo racional, é capaz de encadear raciocínios. A natureza humana não inclui, contudo, o poder de voar que alguns tipos de animais possuem.

Ora, esse princípio universal da natureza não se aplica a Deus. Ele opera acima do Ser, no Não-Ser, antes do Ser. Deus opera o próprio Ser. Nesse momento, Mestre Eckhart ascende aos cumes da metafísica, e contempla o poder divino que "antecede" (atemporalmente) todo e qualquer ente. Na tradição neoplatônica, o Ser tem seu fundamento no Uno, uma vez que todo ente é sempre um antes de pertencer a algum tipo. Um cachorro deve ser primordialmente um para que possa ser cachorro. 

O Ser, assim considerado, é um princípio de limitação essencial, ou seja, é aquilo que define (portanto, circunscreve) o tipo (a essência ou a natureza) de um ente. Deus não cabe em nenhuma categoria, nada pode defini-lo ou circunscreve-Lo. Consequentemente, a operação divina é ilimitada e absoluta. A própria estrutura da realidade que dá existência a todos os entes limitados, tal como a testemunhamos, é "posterior" a seu fundamento derradeiro, Deus.

Os mestres grosseiros, afirma Eckhart, dizem que Deus é um Ser Puro. Ele está tão distante do Ser quanto uma mosca está distante de um anjo. Seria tão errôneo dizer que Deus é um ser quanto dizer que o Sol é pálido ou que o Sol é negro. Deus não é nem isto e nem aquilo  Essas declarações do mestre alemão estão em consonância com o radical apofatismo neoplatônico. Compreender o que é Deus significa não compreendê-Lo. 

Filho espiritual de Platão, de Dionísio Areopagita e de Meister Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, cerca de um século depois, utilizará a expressão Docta Ignorantia para designar o "conhecimento ignorante" que o homem pode alcançar acerca de Deus. O intelecto compreende propriamente aquilo que é formal (logo, limitado), mas o ser humano é capaz de vislumbrar o que está acima da forma, ainda que jamais possa traduzir esse conhecimento (ou experiência) em palavras ou em conceitos.

As categorias, as formas de predicamento pelas quais descrevemos os entes (substância, qualidade, quantidade, relação, etc.), não se aplicam a Deus. A substância, que designa basicamente aquilo que existe de forma independente de outros, possui mais realidade que a relação, que só se estabelece entre dois ou mais entes. Sócrates e Platão são dois homens, duas substâncias que existem de modo independente uma da outra. Platão é discípulo de Sócrates, e essa relação se estabelece por causa dessas duas substâncias, e depende delas para existir.

As categorias, que expressam diferenças entre as coisas, são absolutamente iguais na unidade divina. Eckhart expõe essa verdade dizendo que "em Deus, as imagens de todas as coisas são iguais, ainda que sejam imagens de coisas desiguais". A substância (que possui mais realidade) é igual à relação, e o anjo vale tanto quanto uma mosca. Eis a Coincidentia Oppositorum, segundo a expressão de Nicolau de Cusa, na qual todas as coisas estão contidas em Deus como possibilidades não efetivadas. Na unicidade absoluta do Uno só há o Uno.

Sequer podemos afirmar que Deus é bondade. Esta pertence ao Ser, ao mundo dos entes finitos. Só conhecemos o bom limitadamente, então Deus não é bom, nem melhor e nem o melhor. Toda gradação é uma relação de mais e de menos, e é estranha a Deus. Tudo isso que foi dito não está em contradição com a passagem evangélica na qual Jesus diz que só o Pai é bom? Mas, Eckhart pergunta, o que é o bom senão aquilo que comunica? Um homem é bom quando se comunica e se torna útil.

Deus é o que há de mais comum. O que quer que seja que alguma coisa comunique à outra, ela não o possui por si mesma, recebe-a antes de Deus. Para compreender a doutrina do mestre renano, é necessário entender que todo ente sempre comunica algo a outro ente. Há comunicações de vários tipos (verbal, corporal, etc.) a depender do tipo de ser em questão. No mínimo, no caso de um ser inanimado (uma pedra, por exemplo) ele comunica a seu ambiente imediato algumas de suas caraterísticas (dureza, impenetrabilidade, extensão, etc.).

Ser algo é sempre comunicar aquilo que é próprio do seu tipo de ser. Um ente absolutamente incomunicável não é um ente. Tudo opera segundo sua natureza (Agere sequitur esse). As operações de um ente são variadas, e não se restringem ao que ele faz ou causa em outro por uma ação deliberada. Uma pedra transmite a seu ambiente a sua presença, ainda que não o faça consciente e deliberadamente. Sob essa perspectiva, ser é operar, ser é agir e ser é comunicar.

Os entes possuem características, poderes, capacidades, potencialidades e atualidades que compartilham com outros entes, sejam eles de sua natureza ou não. Sócrates e Platão possuem inteira e individualmente tudo aquilo que está contido na humanidade. Sócrates e um prego, não obstante não partilharem da mesma natureza, são ambos igualmente extensos e impenetráveis. Os atributos de um ente estão sempre presentes em outros entes.

Ora, tudo o que pertence aos seres, e que eles comunicam uns aos outros, tem a sua origem exclusivamente em Deus, o único que comunica aquilo que realmente é Seu. É por essa razão que Deus é o que há de mais comum. Ele é o comunicante supremo. A clássica fórmula medieval "bonum est diffusivum sui" expressa a verdade de que o bem naturalmente comunica-se, difunde-se, não se encerra em si, não é inoperante.

Quando contemplamos Deus no Ser, nós O vemos em Seu pórtico. O pórtico é um espaço coberto que à frente da entrada de um templo. Se o Ser é o pórtico de Deus, isso significa que os seres estão à frente da entrada do templo, e este não seria outra coisa senão Deus voltado a Si mesmo, fora da "influência" das percepções, das imagens e dos conceitos que têm a sua origem nos seres limitados.

O filósofo e islamólogo francês Henry Corbin, no texto Théophanies et Miroirs: idoles ou icônes?, publicado em 1980 na revista Les Études philosophiques, resume bem a ambiguidade ontológica fundamental da imagem. Ao expor a doutrina do Mundo Imaginal do grande místico sufi persa medieval Shahab al-Din Suhrawardī, Corbin comenta o papel duplo da imaginação de ligação e de separação, uma espécie de entre-deux. Submetida aos dados da percepção, a imagem se presta a combinações que não ultrapassam o nível do sensível. Quando a serviço do intelecto, a imagem é uma mediadora entre o sensorium e o intellectus sanctus, o órgão de conhecimento dos místicos, dos visionários e dos profetas. 

Henry Corbin explica:  

"A ambiguidade da Imagem reside no fato de que ela pode ser, por um lado, um ídolo (no grego, eidolon), e pode ser, por outro, um ícone (no grego, eikon). É um ídolo quando estaciona sobre si mesma a visão do contemplador. Ela é opaca, sem transparência, permanece no nível daquilo de onde saiu. Mas é um ícone quando se trata de uma imagem pintada ou de uma imagem mental, quando sua transparência permite ao contemplador enxergar por meio dela para além dela, e porque aquilo que está para além dela não pode ser percebido a não ser por meio dela. Tal é precisamente o estatuto da Imagem denominada 'forma teofânica'." (tradução minha do original em francês)

As imagens são formas teofânicas, servem como teofanias, quando o contemplador consegue ultrapassar a imagem na direção daquilo que ela aponta. O mesmo vale para todos os entes da realidade. Eles podem ser tanto ídolos quanto ícones. Contemplado enquanto forma teofânica, o mundo é um espelho (no latim, speculum) que reflete limitadamente a fonte da Luz. Compreendida adequadamente, toda contemplação torna-se especulativa. 

A imagem refletida corresponde parcialmente àquilo que é o seu modelo. Vemos refletido perfeitamente somente aquilo que o espelho tem capacidade de reproduzir. No caso de um homem à frente de um espelho, vemos o seu formato, as suas cores, o seu tamanho, etc. Sabemos, contudo, que esses aspectos estão longe de reproduzir o que é o homem na sua inteireza. A imagem no espelho não possui, por exemplo, a interioridade, a mente, e outros aspectos, que o homem real possui.

Os seres simultaneamente revelam e ocultam a sua Fonte. A porta que separa a casa da rua também une a rua à casa. Não à toa, os limites eram sagrados para os romanos, que os cultuavam sob o nome do deus Terminus. Ou ainda, Janus, o deus de duas faces opostas, simboliza a sacralidade do limiar, aquilo que separa ligando e liga separando. Na sua função teofânica, quando translúcidos, os entes deixam penetrar sem obstáculo a luz que os faz brilhar. São o pórtico do templo.

Quod est superius est sicut quod inferius, et quod inferius est sicut quod est superius, diz o axioma hermético. Só se ascende à Fonte passando pelos entes, mas é necessário cuidado para fazer as transposições corretas de um nível ontológico a outro. O mundo é uma teofania, uma iconostase, na feliz expressão utilizada por Henry Corbin. Porém, não se pode aplicar univocamente ao Absoluto os termos que são adequados somente aos entes, sob pena de criar também um ídolo.

Eckhart ensina que o templo onde Deus habita, e no qual brilha a Sua santidade, encontra-se no intelecto. A alma, entre as suas diversas potências, possui uma gota, uma faísca de intelecto. Essa é uma doutrina central no pensamento do mestre renano. Alain de Libera e Jeanne Ancelet-Hustache, ambos historiadores da filosofia medieval e estudiosos da mística eckhartiana, traduzem o termo alemão medieval vünkelîn para o francês como étincelle, o qual, por seu turno, pode ser traduzido como "faísca".

Na Escolástica, o intellectus (o νοῦς grego), é tradicionalmente entendido como a capacidade abstrativa característica da alma humana. Dotado de um corpo, o homem possui potências que estão mais ligadas à corporeidade (percepção, estimativa, imaginação) e uma potência cuja função é separar (abstrahere) dos dados perceptivo-imaginativos as Formas dos seres da realidade. Em outros termos, o intelecto capta o padrão próprio de cada tipo de ente, o que torna possível falarmos com sentido de gato sem nos referirmos a este ou àquele gato particular.

O intelecto é a parte mais divina do homem, a faísca que permite penetrar na opacidade dos entes sensíveis e divisar os padrões que fundamentam a existência individuada de cada ser singular. Interpretada platonicamente, a função do intelecto é retirar os obstáculos que as características individuais dos seres opõem à contemplação das Formas. Nenhum discurso sobre os fundamentos universais da realidade seria possível se a capacidade cognitiva humana se encerrasse nas composições da imaginação.

O templo de Deus se encontra no intelecto justamente por conta dessa capacidade de desnudar as coisas, de despi-las de sua materialidade e de sua individualidade. O homem que ama a Deus por Sua bondade ainda O contempla sob as vestes da vontade. A bondade, nesse caso, é um obstáculo ou um ídolo (segundo Corbin). O intelecto, superior à vontadenão contempla Deus sob nenhuma vestimenta. Ao contrário, ele O desnuda, retira-Lhe a bondade e até o Ser.

O intelecto ultrapassa o pórtico das criaturas e alcança Deus no templo, fora de qualquer referência ao mundo da limitação. A imagem tem a sua realidade mais propriamente naquele de onde ela sai do que no espelho na qual é refletida imperfeitamente. O espelho cai, quebra-se, e a imagem some. O modelo (a coisa da qual a imagem é um reflexo) permanece idêntico.**

Ademais, todo ente tem o seu ser exclusivamente graças ao intelecto divino. A beatitude, observa Eckhart, não é a bondade divina. A contemplação de Deus a partir da bondade é uma redução que capta o Absoluto sob as vestes de uma relação entre dois entes. O intelecto opera sempre na direção do interior, e quanto mais o seu objeto de intelecção é sutil e espiritual, mais ele é potente e sutil. Deus, desnudado de todo vestígio das coisas, Se faz um com o intelecto.***

intelecto de Eckhart parece assumir uma função na união mística que ultrapassa as suas atribuições clássicas. Entretanto, é preciso recordar que nenhum discurso será jamais adequado para expressar a incompreensibilidade divina. O mestre renano luta ao mesmo tempo com as limitações da terminologia de sua tradição escolástica em particular e com as limitações da linguagem humana em geral. Ao fim e ao cabo, o silêncio é a única saída.
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"Istcheit" é formado pela terceira pessoa do singular ("ist") do verbo "sein" ("ser") e pelo sufixo "cheit", que indica a essência de algo. Por exemplo, qualquer coisa que seja justa (gerecht) exibe o caráter geral e essencial da "justiça" (Gerechtigkeit). Porém, é preciso recordar que, em se tratando de Deus, a Sua infinita "istcheit" é absolutamente diferente das essências dos seres limitados.

** Compreendemos melhor a posição de Platão sobre as artes na República se nos recordamos que a imitação de uma árvore só é capaz de reproduzir alguns de seus aspectos, o que significa uma perda de realidade. Se os seres sensíveis são imitações individuadas das Formas (o que os torna suscetíveis à mudança, à geração e à corrupção), os objetos artísticos são imitações de imitações, implicando numa diminuição de realidade ainda mais acentuada.

*** Mutatis mutandis, a distinção que Eckhart formula entre as duas experiências espirituais tem semelhanças evidentes com a distinção vedantina entre Īśvara-Vidyā Brahma-Vidyā.
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