segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo IX - Dos conjuntos)


"Diz-se que é conjunto o que está junto com, contíguo, que está pegado, que está próximo. Conjunto é uma totalidade, pois ele é tomado como um todo"

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.53

O capítulo IX de "A Sabedoria da Unidade" discorre sobre os conjuntos, e sobre as relações que se estabelecem entre as partes e o Todo. Quando se trata de um todo lógico (eidético noético), concebido pela mente, suas partes são as notas que o constituem. O todo real, ao contrário, constitui-se de partes hiléticas, atuais, fisicamente separáveis. 

Existem partes essenciais em um todo, sem as quais o todo se desfaz. Por exemplo, em se tratando do conceito de "ser humano" ("animal racional"), suas notas essenciais são "animal" e "racional". Se qualquer uma dessas notas for retirada, o conceito é obliterado. Há outras partes, desde que não sejam essenciais, que podem estar ausentes ou podem ser removidas sem que o todo deixe de existir. Um homem sem braço não deixa de ser humano. 

O conjunto é o que está junto com, unido como um todo. Possuindo partes, estas são chamadas elementos quando são irredutíveis a qualquer outra parte. O conjunto pode ser pleno (já se encontra na realidade) vazio (não possui ainda quaisquer elementos), possível (seus elementos são possíveis) e impossível (elementos são impossíveis). Os elementos são irredutíveis se não podemos derivá-los de outras partes mais simples, e se, retirando-se os elementos, o todo deixa de existir. 

A água deixa de ser água no momento em que seus elementos constituintes, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, são separados na análise química. Ou seja, a água perde o logos da água quando seus elementos são retirados ou separados. O que não significa que as moléculas não possam formar outras substâncias químicas ou conjuntos em combinação com outros elementos. As duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são os elementos irredutíveis que formam o logos da água: a fórmula H2O. 

O ponto, a linha, o volume são elementos sem os quais não poderia haver o espaço tridimensional, e também não são redutíveis a outros elementos. Algo é irredutível enquanto permanece dentro de seu logos. O fato biológico não pode ser reduzido à dimensão físico-química, embora na vida haja elementos físico-químicos. Estes não são suficientes para explicar o fenômeno biológico. Os fatos psicológicos não podem ser reduzidos à fisiologia cerebral, em que pese o fato de que a fisiologia cerebral esteja implicada nos fatos psicológicos. 

"Ora, compreendendo a multiplicidade dos logoi, vemos, então, que a irredutibilidade é proporcionada a cada logos, havendo, portanto, uma redutibilidade, sim, mas com corrupção, deixando de pertencer àquele logos" (p.55). 

A irredutibilidade significa que há um limite intrínseco na divisão de um todo além do qual ele deixa de ser o que é, e corrompe sua estrutura essencial. Por exemplo, os logoi da biologia e da psicologia não são redutíveis indefinidamente a quaisquer de suas partes. Quando reduzidos respectivamente às dimensões físico-química e fisiológica, eles deixam de ser o que são, corrompem-se, e se tornam outras coisas.

Os conjuntos plenos são unidades, e, portanto, obedecem às leis da unidade. Há uma harmonia entre as partes que é dada por uma norma, e esta, como já visto no caso das unidades, pode ser acidental ou substancial. Os elementos estão ordenados, uns sendo o ponto de partida para os outros (o ponto é o princípio da linha, etc.) ou implicados uns nos outros (a linha está implicada na superfície, mas não vice-versa).
 
Os conjuntos vazios possíveis (ainda não realizados, atualizados) são regidos pelas leis da potência real, aquela que é princípio de ação  ou de afecção. Potencialidades contrárias não são contraditórias enquanto permanecem potencialidades. João pode ou não ir ao teatro, mas uma vez que tenha ido, não pode ter ido ao teatro e não ido ao teatro ao mesmo tempo. A possibilidade de ir ao teatro é realizada, tornada real, naquele momento em que João foi efetivamente ao teatro. A possibilidade de não ter ido ao teatro, não pode mais se realizar naquele momento. 

Ao atualizar uma possibilidade, outras são rejeitadas, e outras ainda adquirem um fundamento para a sua realização futura. João escolheu ir ao teatro, e, por isso, não pode mais escolher ir ao cinema, uma das tantas possibilidades rejeitadas. Tendo ido ao teatro, no entanto, João abre um conjunto de possibilidades. Ele pode sair do teatro e jantar num restaurante próximo, o que não poderia fazer se tivesse ido ao cinema do outro lado da cidade ou tivesse permanecido em casa.

A atualização de uma potencialidade corresponde à negação da potencialidade contrária e à virtualização de potencialidades que se tornam passíveis de realização futura graças àquela atualização. As potencialidades negadas, embora não possam mais ser atualizadas, não deixam de ser potencialidades reais. Por assim dizer, elas pertencem ao mundo  alternativo "daquilo que poderia ter sido". E aquilo que se efetivou na realidade, e já não mais existe, também não deixa de ser uma potencialidade real. Ela foi realizada, não pode mais se efetivar porque já foi real.

João foi ao teatro. Não pode mais ir ao teatro naquele momento (ou situação). Pode ir no futuro, sem dúvida, mas não pode mudar o que aconteceu: o fato de ter ido ao teatro. Tanto as possibilidades rejeitadas por João ao escolher ir ao teatro quanto o fato passado de que efetivamente foi ao teatro entram naquilo que Mário Ferreira chama de epimeteico. A efetivação de um possível que acarreta a virtualização de outros possíveis, ele chama de prometeico.
 
No conjunto pleno a potencialidade é real e subjetiva, isto é, enraizada no sujeito (subjectum, supósito) existente, em algo que existe. Se tomamos um conjunto qualquer, há uma série de potencialidades que ali estão contidas por conta da sua natureza intrínseca. Está sob o poder de um time de pedreiros, por exemplo, erguer uma casa. Certos materiais reunidos num conjunto possuem capacidades determinadas.  

A potência real subjetiva não corresponde a todas as possibilidades lógicas, mas somente àquelas de um determinado ente  (ou conjunto) da realidade. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas de um conjunto, podemos também conceber e estudar essas potencialidades mesmo que o conjunto em questão seja meramente possível.  Conhecendo as potencialidades reais de uma casa, posso conceber as vantagens e desvantagens de construí-la, os materiais necessários e suas respectivas potencialidades reais, etc.

As impossibilidades ou potências irreais são aquelas que não possuem qualquer fundamento para existirem. Um conjunto formado por entes ficcionais (Sherlock Holmes, Drácula, etc.) é um conjunto irreal e impossível, não existe e nem pode ser trazido à existência por ninguém. Entes cujos conceitos implicam contradição (triângulo quadrado), ou conjuntos formados por eles, são absolutamente impossíveis. 

Observe-se que um conjunto é vazio porque seus elementos não existem. Não obstante, isso não significa que ele seja impossível. Um conjunto formado por máquinas que não existem é vazio. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas dessas máquinas (ou de seus materiais constitutivos), não havendo nelas individualmente ou em conjunto nenhuma contradição, nada impede que elas possam ser construídas. Se serão ou não construídas, isso dependerá de outras considerações.
 
A falta de condições materiais e de trabalhadores qualificados pode impossibilitar a construção dessas máquinas. Porém, existe aqui apenas uma impossibilidade relativa, não uma impossibilidade absoluta como a de um conjunto de triângulos quadrados. Elas serão efetivamente construídas se mudarem as condições que ora impedem a sua construção. Ao contrário, quaisquer que tenham sido as condições no passado e quaisquer as condições futuras, nunca houve e nem haverá um conjunto de triângulos quadrados. 
 
No caso das máquinas inexistentes, nada impede que examinemos esse conjunto vazio a partir das potencialidades reais e subjetivas que contém. É mesmo possível examinar intelectualmente um conjunto cujas potencialidades reais e subjetivas não se efetivaram. Um historiador pode examinar situações e acontecimentos alternativos baseado somente nas potencialidades reais e subjetivas daquele conjunto que poderia ter se realizado. 
 
Obviamente, um conjunto que poderia ter sido é vazio, e tornou-se impossível no momento em que foi preterido pela efetivação de outro conjunto. Nada impedia lógica e metafisicamente que o conjunto A se efetivasse no lugar de B. Todavia, no momento em que B se efetivou, então, pelo princípio da não-contradição, A não poderia se efetivar ao mesmo tempo. O conjunto A continua sendo metafisicamente possível em qualquer outro momento que não aquele no qual B se efetivou. 

Os conjuntos A e B não entram em contradição enquanto são possíveis. Somente quando um deles se efetiva na realidade é que o outro necessariamente fica impedido de se efetivar ao mesmo tempo. Aquele que foi preterido, embora sendo possível, torna-se impossível para aquele momento, e entra no âmbito do epimeteico, daquilo que poderia ter sido efetivado e não o foi. Mas como sempre foi algo possível, não há impedimento algum em examinar as suas potencialidades e quais seriam as suas consequências se houvesse sido efetivado.
  
O conjunto dos triângulos quadrados é zero, não pode ser pensado em termos de possibilidade que não foi efetivada. É um conjunto absolutamente impossível porque seus elementos são instrinsecamente contraditórios. A contradição não se refere a quaqluer coisa que possua alguma aptidão para ser, por mínima que seja. Afirmar o contraditório é afirmar nada.
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domingo, 20 de outubro de 2024

Eneias, piedade e religião romana na "Eneida" (Livro II)


“Tudo o que agora acontece se passa de acordo com os planos das divindades."

CREÚSA, Eneida, Livro II, 775 (Tradução de Carlos Alberto Nunes)

No decurso do segundo livro da Eneida, épico composto pelo poeta romano Públio Virgílio Maro (70/19 A.C.), são apresentados vários aspectos importantes da religião romana tradicional. O poema narra as agruras e as peripécias de Eneias, o herói fundador de Roma, desde a queda de Troia ante as hostes dos aqueus até a sua chegada na Itália após longa e custosa viagem marítima. 

Na Ilíada, Homero relata a cólera de Aquiles em meio à campanha dos gregos contra os troianos, e vai até os funerais de Pátroclo, enquanto Virgílio, no primeiro canto da Eneida, anuncia que irá cantar "as armas e o varão" que, já em alto mar após a destruição da sagrada Ílion, tantas dores sofreu na viagem que o conduziu ao Lácio, onde daria nascimento à raça latina. 

Enéias é notável pela pietas (piedade)*, a virtude (virtus) romana da reverência e do respeito para com as leis, os ancestrais e, principalmente, os deuses da cidade. A religião tradicional de Roma, a religio, constituía-se numa série de deveres recíprocos que uniam os homens e os incontáveis deuses em uma comunidade. Tratava-se sobretudo de "etiqueta" ou de "ortopraxis" cívica que não implicava obrigatoriamente qualquer vínculo sentimental entre o ser humano e as divindades.

O historiador John Scheid, no seu "Introduction to Roman Religion" elenca as características principais da religião romana: ausência de revelação (no sentido abraâmico), dogmas ou ortodoxia doutrinal;  tradicionalismo centrado na observação minuciosa dos ritos e dos deveres determinados de acordo com o nascimento e a posição social do indivíduo (família, cidadania, cargo, etc.); forte senso de bem-estar comunitário que, se não excluía a experiência individual, privilegiava o pertencimento à comunidade e, em particular, aos grupos dentro da comunidade; ausência de um ensinamento moral especificamente religioso ou espiritual e de autoridades supremas (como o papado).

Enéias não é culpado de impietas, a negação intencional ou por negligência das honras devidas aos deuses, então o poeta invoca a Musa a fim de recordá-lo da razão de tão grandes tormentos sofridos pelo herói: a ira de Juno (Iūnō, a Hera grega), esposa-irmã de Júpiter (Iūpiter, o Zeus grego), ofendida pela escolha de Páris Alexandre (que preferiu Vênus no célebre certame de beleza entre as divas), pelo rapto do belo jovem troiano Ganimedes (tomado por Júpiter como amante), e, principalmente, pela futura destruição de Cartago, sua cidade predileta.

Caso Eneias chegasse vivo à Itália, ali fundaria a raça romana, "belicosa e arrogante", que no devido tempo destruiria Cartago, segundo o que foi tecido pelas Parcas fiandeiras. Virgílio alude aqui às três guerras púnicas (265-146 A.C.), um dos maiores e mais sangrentos conflitos da Antiguidade, que resultou na queda e na completa devastação da cidade líbia pelas legiões da então república romana. A Eneida, portanto, tem o seu motor nos esforços de Juno para impedir a realização do decreto das Parcas**, as três deusas ancestrais (Nona, Decima, Morta) responsáveis por fiar, medir e cortar as tramas das vidas dos mortais e dos deuses. 
 
O destino de Eneias espelha o desafio de uma deusa, Juno, aos decretos das Parcas, forças mais arcaicas no interior do mundo divino. A predileção ou a aversão por determinados mortais, povos e cidades, causa de inúmeras rivalidades entre os deuses, era tema tradicional da mitologia grega, como testemunha a poesia épica na Ilíada e na Odisséia. O conflito entre a geração dos Olímpicos e os Titãs foi tema da poesia teológica de Hesíodo, a Teogonia, e das tragédias de Ésquilo Prometeu Acorrentado e a trilogia Orestíada.

"Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?". Com tais pensamentos, Juno, a soberana dos divos, convoca Éolo, deus dos ventos, e este lança tormenta sobre a frota de Enéias que, por fim, desembarca na Líbia, onde, guiado e protegido por sua mãe Vênus (Venus, a Afrodite grega), é recebido por Dido, a rainha de Cartago. No belo livro II, o herói troiano narra à soberana o famoso episódio do cavalo de Tróia, o horror do saque e da destruição da cidade e a sua posterior fuga da terra natal. 

"Timeo danaos et dona ferentes". A despeito das advertências do vidente Laocoonte, que teme os dânaos (gregos) mesmo quando dão presentes, os troianos trazem para dentro dos muros de sua cidade o imenso cavalo de madeira que, sem o saberem, porta dentro de si escondidos os seus inimigos. À noite, os aqueus saem do equino, incendeiam a cidade e iniciam horrendo massacre. Eneias reúne um grupo de bravos guerreiros troianos e se lança à pugna sangrenta.

Consternado, o herói testemunha a desdita de Cassandra, filha dileta de Príamo, rei de Troia, amarrada e arrastada por Ajax para fora do templo onde se abrigava. A mesma que, amaldiçoada por Apolo com o dom da profecia sem que jamais a ninguém pudesse convencer, pouco antes advertira os troianos do que aconteceria se o cavalo entrasse na sagrada cidade. 

No furor da destruição, destaca-se Pirro, ou Neoptólemo, o ímpio filho de Aquiles, responsável pelo triste fim do nobre rei Príamo. Pela boca de Eneias, Virgílio narra a coragem patética do vetusto soberano que, vendo seu reino e seu lar conspurcados, veste sua antiquada armadura e empunha sua espada sem gume a fim de enfrentar os indomáveis aqueus. A rainha e esposa, Hécuba, vendo o marido partir para a morte certa, o traz para junto de si, onde também estavam as suas filhas, abrigadas todas em torno de um altar ladeado por antigo loureiro.

O referido altar era dedicado aos Lares, divindades domésticas protetoras das casas e dos palácios, e, portanto, tratava-se de um recinto sagrado. Na religio romana, o sacer (sagrado) correspondia àquilo que juridicamente pertence aos deuses. O profanus (profano), por contraste, correspondia ao que não era propriedade dos divos. Segundo John Scheid, o sagrado não era alguma espécie de "força mágica" que residiria nos objetos, mas sim uma simples qualidade jurídica:

"Como toda propriedade pública ou privada, a propriedade dos deuses era inviolável, mais ainda porque seus proprietários eram terrivelmente superiores aos homens e a sua vingança era inexorável. O verdadeiro sentido de sacrilégio era a violação da propriedade divina." (Scheid, p.24)

O termo sanctus (santo) era aplicado a qualquer coisas cuja violação constituísse um sacrilegium (sacrilégio). Leis, tratados, tribunos, tumbas, embaixadores, pessoas comuns e até os deuses poderiam ser considerados santos. Descumprir um tratado que foi oficializado por um sacrificium (sacrifício) ou matar um embaixador eram exemplos de violação do santo. O sacrilégio, especificamente o ato de roubar ou de causar prejuízo ao sagrado, era parte da impietas (impiedade).

A impiedade consistia em negar aos deuses as honras devidas, intencionalmente (prudens dolo malo) ou não (imprudens). Neste último, quando a ofensa se dá por negligência, por erro ou por qualquer outra modalidade em que não esteja presente a malícia deliberada, o mal pode ser expiado via sacrifício ou via reparação material dos danos. O caso oposto, quando a ofensa é deliberada, o mal é inexpiável. A comunidade se desvencilha para sempre do ofensor entregando-o à justiça dos deuses (sacratio) e fazendo sacrifícios apaziguadores.

Desde a religião grega, havia veneranda tradição de acordo com a qual ninguém que estivesse sob a proteção ou nas dependências (τέμενος) de um templo, de um santuário ou de um altar poderia ser retirado, atacado ou morto, sob pena de sacrilégio. Tomado de fúria, Neoptólemo persegue e mata Polites na frente de seu pai Príamo. O rei protesta contra esse ato desnecessário de pura crueldade, e invoca a lembrança de Aquiles que fora honrado ao concordar com o pedido de Príamo de que devolvesse o corpo de seu filho Heitor (canto XXIV da Ilíada).

Neoptólemo, insensível, responde ao velho que vá ele próprio ao Hades contar a Aquiles as proezas de seu filho degenerado. Assim dizendo, arrasta o idoso trêmulo cujos pés resvalam no sangue de Polites, e agarrando-o pelos cabelos, enterra sua espada até o fim da lâmina no peito frágil do rei. O sacrílego Neoptólemo traz sobre si mesmo, ipso facto, a sacratio (sagração), ritual romano que punia certos crimes entregando o ofensor aos Dii Inferisoberanos do Orcus (Hades): Dis Pater (Plutão) e Proserpina (Perséfone). Nessa autoconsagração, o criminoso tornava-se sacer (sagrado), propriedade dos divos do subterrâneo, num sentido negativo de horror. 

                                      (Neoptólemo mata Polites na frente do rei Príamo)

O pio Eneias recorda-se então de seu velho pai Anquises, de sua esposa Creúsa e de seu filho Ascânio, e temendo que tivessem idêntico destino que Príamo, imediatamente corre para a sua casa com a finalidade de proteger seus entes queridos. No caminho, encontra Helena, abrigada num altar, sozinha, rejeitada por todos. Seria certo permitir que retornasse a Micenas, para o leito de Menelau, onde viveria cercada de servas enquanto tantos troianos perdiam a vida ou eram escravizados? Refletindo que lá estava a causa primeira das desgraças que se abateram sobre Tróia, a fúria o possui, e o herói avança na direção da grega com intenções homicidas. 

Vênus, tão brilhante que faz da noite dia, aparece ao filho Eneias, toma-lhe a destra, e reprova a cólera que o domina. Não é Helena ou Páris a causa de tanto infortúnio, diz a mãe, e sim a inclemência dos deuses (divum inclementia). Retirando a cortina que cobre os olhos do herói, a diva revela a realidade que os mortais não conseguem enxergar. Ele vê Netuno (Poseidon) abalando as fundações da cidade, Juno instigando os aqueus nos portões ocidentais, Minerva (Atena) do alto da torre ameaçando os teucros com a Górgona terrível, e mesmo Jove (Júpiter) anima os dânaos e convoca os outros deuses para a batalha. 

A teofania demove Eneias de seu intento. Vênus desaparece na noite, não sem antes ordenar que deixe de lado a luta e vá proteger os entes queridos. Ao contrário do celerado Neoptólemo, a pietas do troiano o impede de cometer o sacrilégio de matar Helena, alguém sob a proteção do altar sagrado. Ademais, a sua cólera é apaziguada pelas palavras da deusa e mãe. Note-se, en passant, que foi a funesta cólera (μῆνις) de Aquiles, pai de Neoptólemo, a causa "de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos", segundo afirma Homero no primeiro verso da Ilíada. (trad. Carlos Alberto Nunes)
 
Tendo alcançado sua casa, Eneias encontra seu pai, sua esposa e seu filho pequeno vivos e bem. Todavia, o velho Anquises recusa-se a fugir e a deixar para trás a sua terra amada. Um augúrio acontece: uma chama sobe a testa do pequeno Ascânio sem o queimar. Impressionado, Anquises roga aos divos que confirmem o sinal. Imediatamente um trovão ilumina o céu no seu lado esquerdo, seguido por uma estrela que se dirige ao sacro monte Ida. O prodígio o convence da ordem divina de abandonar a cidade.
 
Na religio romana, o augúrio era um sinal dos deuses, requerido ou inesperado, cujo sentido benéfico ou funesto deveria ser interpretado pelo áugure. A observação e a interpretação desses sinais era uma das práticas oraculares mais importantes para os romanos. A inauguratio (inauguração), por exemplo, era a caerimoniae (cerimônia) pela qual os áugures interpretavam os augúrios e determinavam se um terreno estava livre para ser utilizado sem violar qualquer propriedade divina. Outra prática oracular era o auspicium (auspício), a interpretação do voo dos pássaros no céu realizada pelos áuspices.***

Eneias atravessa a cidade em chamas na direção do monte Ida carregando o pai Anquises sobre os seus ombros, o filho Anquises conduzido pela mão, a esposa Creúsa seguindo-o logo atrás. O pio herói solicita que o progenitor traga consigo os Penates (divindades domésticas como os Lares), pois ele estava coberto do sangue da batalha e só poderia tocá-los após limpar-se nas águas do rio. Eneias, tendo matado a tantos, encontrava-se maculado pela polluo (polução), o que o impedia de tocar nas imagens dos Penates enquanto não estivesse casto (puro).

Analogamente, na religião grega, o miasma (μίασμα) era uma polução que maculava a pessoa quando esta tinha contato físico com cadáveres, com sangue (inclusive menstrual), ou quando era culpada de matar alguém. Embora não tivesse explicitamente uma conotação moral, o miasma interditava a participação nos ritos sagrados da polis (sacrifícios, festas, etc.). A hagnea (ἁγνεία), a pureza cultual, era readquirida somente pela realização dos katharmoi (kαθαρμοι), rituais de purificação que incluíam banhos em rios sagrados. Para os gregos, Apolo era, par excellence, o deus das purificações.

No meio do caminho, Eneias percebe que perdera Creúsa de vista. Deixa Anquises e Ascânio no templo de Cibele no monte Ida e retorna transtornado para buscar a esposa. O cenário doloroso do saque de Troia pelos aqueus o deprime. Brada muitas vezes pela consorte, e desespera-se pela ausência de resposta. Eis que um infeliz simulacro, a sombra de Creúsa aparece-lhe, de muito maior imagem (imago). 

A esposa estava morta? A expressão "infeliz simulacro" (infelix simulacrum) parece indicar que já não se trata da Creúsa que acompanhava o marido na fuga. E o termo "sombra" (umbra), traduziria a percepção grega tradicional de que são as ψυχές, as sombras dos vivos, que descem ao Hades? Sua maior estatura, no entanto, sugere divinização ("apoteose", ἀποθέωσις). Por exemplo, no mito narrado no Hino a Demeter, atribuído a Homero, a deusa, vagando pela terra até então incógnita, revela a sua divindade à rainha Metaneira mudando a sua forma e aumentando a sua estatura. 

Seja como for, Eneias ouve a repreensão de Creúsa emudecido e assustado. Por que ele se entrega a tantas dores? "Non haec sine numine divum eveniunt". Essas coisas não acontecem sem o numen (a vontade ou o poder) dos deuses. Eneias, ela profetiza, ainda sofreria um longo exílio e teria muitos trabalhos antes de desembarcar na Hespéria (Ἑσπερια, como os gregos chamavam a Itália), onde corre o rio Tibre. Lá, um reino e uma rainha de alta estirpe o aguardam.

Quanto ao destino de Creúsa, Eneias não deve se preocupar. Sendo nora de Vênus, ela foi poupada por Cibele, a Grande Mãe (Magna Mater), da terrível humilhação de ser escrava das mulheres dos aqueus. O herói tenta por três vezes abraçar a esposa amada, mas a aparição escapa entre os seus dedos e desaparece. A intangibilidade dos mortos é um tema recorrente na literatura antiga. Vide a aparição do eidolon (εἴδωλον, imagem) de Pátroclo que Aquiles tenta abraçar no canto XXIII da Ilíada.

Obediente aos deuses e aos Di Manes (os entes queridos falecidos), o piedoso Eneias parte de Troia numa jornada que culminará no ato sagrado da fundação de Roma. 
...
* A εὐσέβεια, "eusebia" grega.
** As Parcae correspondem às três Moiras (Μοῖραι) entre os gregos: Lotho, Láchesis e Átropos.
*** Os termos "agouro" e "auspicioso" têm origem nessas práticas.

domingo, 13 de outubro de 2024

Aristóteles, Física e a natureza do lugar (Livro IV) - Parte 1

"A questão acerca do que é o lugar apresenta muitas dificuldades. O exame de todos os fatos relevantes parece conduzir a conclusões divergentes. Ademais, nada herdamos dos pensadores que nos antecederam, seja na forma de recensão das dificuldades, seja na forma de solução."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 1 (itálico meu)

O problema sobre o qual Aristóteles se debruça no início do Livro IV da Física é a existência ou não do lugar (τòπος). A sua importância provém do fato de que, primeiro, pensa-se usualmente que todas as coisas que existem estão em algum lugar, e, segundo, de que a mudança, em seu sentido mais geral e primário, a locomoção, significa exatamente "mudança de lugar"

Em que pese a ausência de opiniões herdadas dos pensadores anteriores sobre o tema, a existência do lugar é considerada evidente por diversos motivos. A água que sai de um vaso passa de um lugar a outro. Os corpos se dirigem naturalmente a lugares que lhes são próprios, alguns para cima (o fogo), outros para baixo (a terra), etc. Não são meramente posições relativas que variam de acordo com o ponto que estão com relação a nós. O mesmo corpo pode estar à nossa direita e depois à nossa esquerda dependendo do ponto ao qual nos dirigimos. 

Os objetos da matemática (geometria) não apresentam direções próprias. Eles podem estar à frente ou atrás, à esquerda ou à direita, acima ou abaixo somente com relação a nós. Sua posição é sempre relativa. Essas observações de Aristóteles são interessantes, entre outros motivos, porque colocam em relevo a diferença entre posições que são meramente relativas ao observador e aquelas que são naturais, portanto independentes de qualquer ser capaz de mudar sua própria posição com relação a elas. 

Ainda que não houvesse nenhum observador, o fogo sempre subiria. A sua posição no alto não depende de um outro que possa mudar a sua própria posição, alterando assim a relação entre os dois. De si mesmo, o fogo naturalmente sobe, e nisso não há nenhuma relatividade. O corpo formado de terra desce independentemente de haver um observador com relação ao qual ele pode estar acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás. 

Os entes geométricos não estão acima e nem abaixo, não estão à direita e nem à esquerda, não estão à frente ou atrás. É o geômetra que os pensa em tal ou qual posição com relação a ele. A ausência de movimento natural em alguma direção impede que os entes matemáticos assumam posições reais. Suas posições são necessariamente relativas por conta de seu caráter essencialmente estático. Objetos geométricos não são corpos reais, dotados de tendências intrínsecas que são atualizadas sempre que não se apresentam impedimentos.

Um corpo feito de terra vai se dirigir ao solo tão logo seja solto no ar e conquanto não haja nenhum anteparo que o interrompa no caminho. A chama do fogo vai se erguer na direção do céu se não houver qualquer coisa que a impeça de seguir a sua tendência natural. Um objeto geométrico não desce e nem sobe por alguma disposição intrínseca. Ele pode ser posto cá ou lá pelo pensamento do geômetra, e as suas posições existem exclusivamente com relação a essa atribuição extrínseca. 

Podemos supor que se o mundo físico fosse reduzido a uma representação puramente geométrica, as tendências naturais dos corpos deixariam de ser relevantes. A consequência seria a de que os corpos, identificados a objetos geométricos, teriam as suas posições estabelecidas não mais a partir da objetividade de suas tendências intrínsecas. Acima, abaixo, à direita, à esquerda, à frente e atrás seriam somente posições atribuídas extrinsecamente, sempre relativas a nós. Toda mudança de posição e todo repouso seriam então relativos ao ponto de referência escolhido pelo geômetra.

De tudo o que foi dito, o lugar é aparentemente algo existente e distinto das coisas que nele estão. Entretanto, a questão é saber qual é a sua natureza. Seria o lugar um corpo? Se fosse, possuiria dimensões como comprimentolargura e altura. O que se segue disso é que haveria dois corpos no mesmo lugar: o corpo que ocupa o lugar e o lugar que é um corpo. O mesmo se aplica se recordamos que o corpo possui limites como a superfície. superfície do corpo que está no lugar coincidiria com a superfície do corpo que é o lugar.

lugar tampouco pode ser um elemento que compõe os corpos ou ser ele mesmo composto de elementos, sejam estes corporais ou incorporais. Se fosse elemento que compõe os corpos, teria de ser corporal, uma vez que os corpos sensíveis são compostos por elementos corporais. Se fosse composto de elementos corporais, seria corpo. Mas, apesar de possuir tamanho, o lugar não é um corpo. Não poderia também ser composto de elementos incorporais porque aquilo que possui tamanho não é constituído por por algo adimensional.

O lugar não se encaixa entre as quatro causas. Não é causa material, formal, eficiente ou final de nada. Na suposição de que seja algo existente em ato, e se tudo o que existe ocupa um lugar, então o lugar ocupa um lugar, e assim ad infinitum. O que dizer das coisas que crescem? O corpo e o lugar serão indistintos? O conjunto de questões levantadas até o momento vai definir a discussão que virá a seguir. 

Podemos distinguir o lugar mais imediato no qual estamos daquele mais remoto no qual também nos encontramos. Alguém que está na Terra também está no Céu na medida em que o Céu contém a Terra, exemplifica Aristóteles. O continente contém o contido, e, por sua vez, o continente é contido por um outro continente maior. A água está contida no balde, o balde contido na Terra, a Terra no Céu. Onde está localizada a água mais imediatamente? No balde, embora este se encontre na Terra, e esta no Céu.

Se o lugar for aquilo que primariamente contém cada corpo, então trata-se de um limite que corresponde à forma (no sentido de formato) e à magnitude do corpo que ele contém. Ou será que o lugar é idêntico à forma e à magnitude do corpo? Não, estas duas pertencem inseparavelmente ao corpo, enquanto o lugar é separável do corpo. A experiência mostra que os corpos passam de um lugar a outro mantendo invariáveis as suas formas e as suas magnitudes. E o mesmo lugar é ocupado seguidamente por corpos diferentes (a água sai do balde e o ar entra).

Usualmente, o lugar é pensado como algo semelhante a um vaso (que é uma espécie de "lugar transportável"), um receptáculo. O vaso é materialmente extenso e diferente daquilo que ele contém. Portanto, o lugar, se for um receptáculo ou um continente, não se identifica com a forma ou com a magnitude do corpo que está contido nele. Além disso, a identidade é impossível naquilo cuja noção implica a alteridade: estar em algum local significa ser algo que tem outro algo fora dele.

Não poderia haver o movimento natural dos corpos que a experiência testemunha se lugar se identificasse com a forma e com a magnitude do corpo. Aquilo que está localizado pode mudar de local, e se o fizer, vai se mover em alguma direção. É impossível que o lugar seja idêntico à forma e à magnitude material do corpo se ambas não se referem à mudança ou às distinções entre as direções (alto, baixo, etc.). A forma de um corpo ou a sua magnitude não implicam a noção de possível deslocamento de um ponto a outro em determinada direção. Já o lugar implica a noção dessa possibilidade.

Fosse o lugar idêntico à forma e à magnitude do corpo, o lugar estaria no corpo. E se o corpo se deslocasse, o lugar também se deslocaria com ele. O corpo que se desloca de um ponto a outro sai de um lugar e vai a outro lugar. A consequência lógica seria a de que o lugar que está no corpo que se desloca se encontraria ele mesmo deslocando-se entre lugares. Isto é, o lugar estaria em algum lugar. 

Por fim, ocorrendo a evaporação de uma porção de água que ocupava algum lugar, este seria destruído? O corpo (a água) não existe mais, então o lugar (se idêntico ao corpo) deveria igualmente desaparecer. Porém, não é isso que testemunhamos na experiência. A água evapora, e o local onde ela estava permanece o mesmo.

Os argumentos apresentados acima refutam a tese da identidade do lugar com o objeto nele contido. Mas em quais sentidos podemos afirmar que um objeto está em outro? Algo está em outro como a parte está no todo (dedo na mão) e o todo está na parte (esta existe por causa daquele), a espécie está no gênero ("homem" está em "animal") e o gênero está na espécie (presente como fundamento), a forma está na matéria (na qualidade de ordenação), as coisas estão centradas no seu princípio movente (os assuntos do reino centrados no rei), a razão da existência de algo está no seu fim, e, no sentido estrito, algo está num receptáculo.

Aristóteles assinala que existe uma ambiguidade quando se diz que uma coisa pode estar em outra: algo pode estar em outro enquanto ele mesmo ou enquanto outro. Tomemos o caso de um Todo no qual as partes não são separáveis. Um homem pode ser dito branco por causa de seu rosto branco, embora a brancura de seu rosto seja apenas uma parte do ser que ele é. Em sua inteireza, o homem não é separável da sua cor, e, por conseguinte, esta está nele como algo está em si mesmo.

Considere-se o caso que envolve o jarro e o vinho. Tomados em si mesmos, ambos são entidades independentes e separáveis, e não formam um Todo. A situação é diferente quando consideramos o jarro de vinho. Analogamente ao homem branco, a parte está no Todo não enquanto outro, mas sim enquanto ela mesma. O jarro de vinho forma uma unidade na qual o vinho não está no jarro como um corpo está em outro. Antes, temos aqui uma parte que qualifica o Todo.

A brancura qualifica o homem. A cor branca está no homem enquanto outro corpo? Não. Em certo sentido, ela está nela mesma e não em outro. É verdade que a essência da parte (brancura) difere da essência do Todo (homem), porém, no homem branco, existe uma unidade indissolúvel na qual a parte é um qualificador ou uma propriedade do Todo, não um corpo contido num corpo continente. Dessa forma, é possível afirmar que o branco está nele mesmo, e não em outro.

O problema levantado por Zenão - de que se o lugar é algo, ele deve estar em algum lugar - pode agora ser resolvido facilmente a partir das distinções feitas acima. Nada impede que um esteja em outro da forma na qual a saúde está no quente como uma determinação positiva, e o quente está no corpo como um estado.

A solução do problema da natureza do lugar será apresentada por Aristóteles nas seções seguintes.

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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Lieh Tzu, a viagem e o Tao


"Há algo, um todo indiferenciado, anterior ao Céu e a Terra. (...) Atribuindo-lhe um nome, digo que é a Via".

LIVRO DE WEN TZU, capítulo 1

Conta-se que o grande mestre taoísta chinês Lieh Tzu (列子) apreciava viajar. Quando perguntado por seu mestre Hu Tzu sobre a razão daquele gosto, respondera que, enquanto os outros viajantes viam coisas, pessoas, casas e belas paisagens, ele via só e tão somente mudanças. Isso o distinguia dos demais que não sabiam o quanto ele era diferente deles. Enquanto estes viam coisas, Lieh Tzu via mudanças.

Hu Tzu, após ouvir a resposta de Lieh Tzu, o recrimina dizendo que, ambos, ele e os viajantes comuns não eram diferentes em nada. Se os viajantes ordinários apreciavam coisas, fascinados por sons e visões, Lieh Tzu, por seu turno, era capturado por aquilo que sempre muda. Nos dois casos, são pessoas que vivem ocupadas com as coisas exteriores. Nunca satisfeitas, atraídas pelo mundo fora delas, buscam incessantemente por algo novo e maravilhoso que agrade os seus sentidos. Somente quem olha para dentro de si logra encontrar a real satisfação.

Lieh Tzu, decepcionado por não haver compreendido o que significa viajar, desistiu de empreender outras viagens. Hu Tzu, vendo a reação de seu pupilo, esclareceu que viajar é uma excelente experiência quando se esquece completamente que se está viajando. Somente assim é possível aproveitar o que se apresenta a nós. Quem olha para dentro de si quando viaja não pensa sobre o que vê. Na verdade, não há distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto. Tudo é experienciado integralmente, de modo que cada montanha e cada lago serão partes de si mesmo.

Viajar é percorrer uma via ou caminho (Tao道). Há aqueles que, voltados para o mundo externo, enxergam somente coisas, e regulam seu interior de acordo com o que acontece no exterior. Querem isto ou aquilo, rejeitam isto ou aquilo. Acreditam na posse porque concebem que as coisas são estáveis, permanentes e seguras. Incapazes de perceber o fluxo, a impermanência, e moduladas por aquilo que está fora delas, nada pode satisfazê-las, contudo. 

A viagem, símbolo tradicional da vida humana (homo viator), é essencialmente mudança. As coisas se apresentam sucessivamente ao viajante em movimento. Nada permanece o mesmo em seu horizonte. Os viajantes ordinários tentam fixar e estabilizar o que é impermanente. Se almejarem a posse do que veem, terão de parar a viagem, abandonar a Via, e habitar lá onde está o objeto de seu desejo. Um navio perpetuamente ancorado, porém, perde seu propósito.

Lieh Tzu, ao contrário, sabe que fixar-se em algo é uma ilusão. Ele viaja apreciando o fluxo incessante das transformações das coisas. Tudo é impermanente. Lieh Tzu se crê diferente dos outros viajantes por seu espírito não se fixar em nada. O seu erro consiste em ainda regular seu interior por aquilo que acontece exteriormente. Lieh Tzu é o ponto fixo que contempla o fluxo das coisas. Há o interior e o exterior.

O mundo das dualidades não foi ultrapassado. A visão permanece obnubilada pela divisão. Nos viajantes comuns, o isto e o aquilo geram o desejo e a repulsa. A oscilação e a inquietude que se seguem foi simbolizada na tradição oriental pela mente de macaco (心猿) cujos pensamentos mudam incessantemente, pulando de um objeto a outro de acordo com as circunstâncias, semelhante a um macaco saltando sucessivamente sobre os galhos das árvores. 

Lieh Tzu não se engana, e enxerga as mudanças que as coisas sofrem. Mas é necessário que ele esqueça que está viajando, e olhe para dentro de si a fim de realmente apreciar o que experiencia. A advertência do mestre Hu Tzu não significa a defesa de algum tipo de subjetivismo ou de solipsismo. A questão não é rejeitar o exterior em nome do interior. Isso seria permanecer no campo das dualidades. 

"O caminho que se caminha não é o caminho", ensina o venerável Lao Tzu no primeiro verso do Tao Te Ching. Via não é oposta a nada. Este ou aquele caminho não é o Caminho. Quando não há distinções entre aquele que vê e aquilo que é visto, então existe a misteriosa unidade que transcende os polos. Fora de toda distinção, o homem é um espelho refletindo a realidade sem as nódoas deturpadoras dos desejos e das rejeições. 

A experiência unitiva que elimina a um só tempo o lutador e seu adversário, fundindo-os num todo não-dual, está presente também nos contos e nos discursos sobre as artes marciais do Zen japonês (cujas origens se encontram no budismo Ch'an chinês). A mente imóvel, tema do tratado escrito pelo monge Takuan Soho, dá conta do mais alto estado no qual um samurai pode enfrentar seu oponente. Sem se ater a este ou àquele aspecto, sem focar nele mesmo ou no seu adversário, experienciando a totalidade indistinta em que ambos desaparecem, o guerreiro pode responder sem obstáculos mentais os ataques proferidos contra ele.*

Livro de Wen Tzu (41), afirma que os sábios, "aptos a alcançar o ponto onde não há gozo, descobrem que não há nada que não seja apreciado. Não havendo nada que não apreciem, alcançam o pináculo da apreciação". Na Via (Tao), centro não-dual da realidade, as afirmações e as negações são transcendidas, a oscilação mental cessa, e não há mais o gozo disto ou daquilo. O sábio tudo aprecia porque não mais se identifica com seus desejos e aversões, vive a imperturbabilidade na qual todos os acontecimentos são recebidos equanimemente.

"Eles usam o interior para tornar o exterior apreciável, e não usam as coisas externas para fazer o interior apreciável. Portanto, possuem a apreciação espontânea neles mesmos". O sábio não regula sua interioridade pelos acontecimentos externos. O mestre Hu Tzu adverte Lieh Tzu que ele era idêntico aos viajantes comuns porque ainda se concentrava nas mudanças exteriores. Ao contrário, é o interior que deve regular o exterior. Reagir sempre de acordo com os eventos externos é condenar-se a viver na turbulência mental que nunca descansa.

Todo ser humano desenvolve algum grau mínimo de constância que o permite não ser absolutamente dominado pelos acontecimentos à sua volta. Não fosse assim, nenhum projeto poderia ser executado, qualquer que fosse o seu prazo. A simples leitura de um livro seria impossível se não ignorássemos tudo o acontece no ambiente circundante. A constância é a virtude que permite ao homem permanecer em um determinado estado de espírito diante das condições externas que se apresentam, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis.

Tampouco seria bom viver no interior se isso significasse solipsismo, subjetivismo ou egoísmo. Se a constância preserva o homem comum de ser arrastado pelas circunstâncias, a experiência o impede de isolar-se completamente em seu castelo interior, ignorando as urgências da preservação da vida. Pior seria querer impor ao mundo e aos outros a árdua tarefa da realização de nossos desejos, sempre cambiantes e amiúde contraditórios entre si.

"Usar o interior para tornar o exterior apreciável" significa contemplar tudo a partir da unidade originária anterior às dualidades. Nada é estranho ao sábio, nada se opõe à sua vontade porque ele está isento de vontade própria. Suas ações e seus juízos não são mais baseados nos desejos e nas aversões pessoais. Por essa razão, ele possui a apreciação espontânea, a Via flui nele sem os obstáculos duais dos gostos e das aversões.
 
A sabedoria, assevera em seguida o Livro de Wen Tzu (41), "não depende de outro, mas de si mesmo. Não depende de mais ninguém a não ser do indivíduo. Quando este a alcança, tudo está incluído". Nessa mudança na experiência comum, quando acontece, inexiste qualquer "distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto". O viajante, a paisagem e a viagem são uma só e mesma realidade na Via.

O sábio compreende, diz o Livro de Wen Tzu, que "os desejos, anseios, apreços e aversões são exteriores". Isto é, ele não se identifica com essas funções mentais. Portanto, nada o apetece, nada o incomoda, nada o agrada e nada o fere. "Tudo é misteriosamente o mesmo, nada é errado e nada é certo". Faz-se necessário aqui negar a acusação superficial e errônea de relativismo moral. Cumpre notar que, justamente por haver transcendido todas as dualidades, inclusive as dos gostos e das aversões, o sábio não é presa dos caprichos de uma vontade desordenada.

Chuang Tzu (莊子), o grande mestre taoísta, ensinava que onde isto e aquilo deixam de ser opostos encontra-se o "pivô da Via" (道樞). O sábio "enxerga tudo a partir da luz do Céu (天)". Ele está purificado das vontades e dos juízos comuns que conduzem ora ao certo, ora ao errado. Firmemente postado no pivô, sua ação é não-ação (無為), não age por desejo de obter algo que não possui ou para evitar algo que o desagrada. Ele é verdadeiramente livre e espontâneo.
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domingo, 1 de setembro de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 2 - final)

 

"Tal é o Pai de todas as coisas; pois esse é o Único, e essa é sua obra por si: ser Pai."

HERMES TRISMEGISTO, Corpus Hermeticum, Libellus V, 8 *

O quinto discurso do Corpus Hermeticum ensina "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Depois de explicar por que o imanifestado é o fundamento do manifestado, Hermes Trismegisto mostra em seguir de que modo se dá a manifestação visível do Nous"Se queres vê-lo, pensa no Sol, pensa no curso da Lua, pensa na ordem das estrelas. Quem é o preservador da ordem?" Os astros, submetidos ao Sol como a um rei, repetem seu curso invariável no céu. "Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?". A ordem manifesta sensivelmente o Nous. A ordenação do Cosmos torna impossível negar a existência do ordenador supremo. 

Uma vez mais, o caráter cosmológico do hermetismo é explicitado. O Nous é a causa inteligente do mundo, o que faz com que este seja uma teofania. O imanifestado é manifestado na ordem que o Cosmos apresenta. No Timeu, de Platão, o filósofo pitagórico que dá nome ao diálogo distingue dois tipos de causas fundamentais: a causa inteligente e a causa contribuinte ou necessária (Ἀνάγκη). A segunda é a causalidade cega, cujos efeitos se seguem necessariamente das características das coisas, de suas disposições materiais e das situações nas quais se encontram. 

"Quem quer que almeje compreensão e conhecimento deve buscar as suas causas primárias naquilo que é essencialmente inteligente, e procurar as suas causas secundárias no domínio das coisas que são movidas por outras coisas, e que, por seu turno, movem outras por necessidade automática." (Platão, Timeu, 46d)

Um corpo se choca com outro, e vai numa determinada direção, por exemplo. As propriedades materiais dos dois corpos e outras variáveis (também materiais) são suficientes para determinar a razão pela qual acontece isso em vez daquilo. Estamos no âmbito da física naturalista pré-socrática. Demócrito e Leucipo pretendiam explicar todas as mudanças naturais em termos somente do choque, agregação e desagregação de configurações de átomos com formatos geométricos materialmente sólidos. 

Sócrates, de acordo com o testemunho tanto de Platão quanto de Xenofonte, percebeu claramente a insuficiência desse tipo de explicações. Ele abandonou seu antigo mestre, Anaxágoras, porque este relegava o Nous à função de um simples iniciador do movimento universal, deixando a cargo de forças cegas a geração das coisas. A questão é que a ordem é sempre teleológica, ou seja, é uma tendência  à repetição dos mesmos efeitos sob as mesmas circunstâncias.

ordem, aquilo que acontece sempre ou na maior parte dos casos, não pode advir do acaso, como Aristóteles bem observou em sua Física. Átomos democritianos podem se chocar casualmente no vazio e tomarem certas direções a depender das circunstâncias. Contudo, isso não é suficiente para explicar por qual razão os átomos se reúnem em determinadas configurações constantes. As suas propriedades materiais não explicam a sua junção em formas nas quais as partes estão submetidas à realização do Todo.

As causas contribuintes ou necessárias são reais, mas estão submetidas às causas inteligentes sem as quais a ordem exibida no mundo só poderia ser explicada por um gigantesco milagre. Por isso o Timeu afirma que o Demiurgo é a causa inteligente primária, tendo os deuses o papel de causas segundas

"Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?" O modo ("tropos", τρόπος) é um tipo, uma configuração constante, uma razão ou escala (música). A grandeza ("megethos", μέγεθος) é uma magnitude (matemática), algo mensurável. A mensuração é um ato precípuo da mente ("mensurare", "mens", no Latim). Se as estrelas exibem trajetórias estáveismensuráveis, então há uma mente primária que mediu e impôs essas medidas. Ἀεὶ ὁ θεὸς γεωμετρεῖ.**

Os limites do mar e o assentamento da terra devem ser obra de um feitor e senhor (δεσπότης, "déspota", "mestre"). "Pois é impossível ser preservado o lugar, ou número, ou medida, sem aquele que fez". A manutenção do lugar (τόπος, "topos"), do número (ἀριθμός, "arithmos") e da medida (μέτρον, "metron") das coisas deste mundo evidencia cálculo, raciocínio escolha. E o que fundamenta essa conclusão é o fato de que a ordem não pode ser fruto do acaso (τύχη, "Tyché"), ela é eminentemente intencional.

"Pois toda ordem é feita, e somente a excentralidade e a incomensurabilidade são não feitos". O termo excêntrico ("fora do centro") traduz aqui "atopia" (ἀτοπία), e refere-se literalmente àquilo "fora de lugar" ou mesmo "sem lugar". Deixadas a si mesmas, as coisas não adquiririam lugares fixos ou constantes dentro do Cosmos. No máximo, tal qual indicava o Timeu, elas teriam movimentos caóticos que seriam vez por outra mudados pelo choque de umas com as outras de acordo com as suas características materiais e causas necessárias.

O termo incomensurável traduz o grego "ametros" (ἄμετρος), a negação daquilo que possui medida. acaso e o caótico não têm o poder de produzir (ποιεῖν) nada ordenado. Ninguém dá aquilo que não possui. O artífice, humano ou divino, pode ordenar porque possui em seu intelecto a forma a ser imposta. Medir algo é impor um padrão, o que exige a invariabilidade do metron utilizado. 

desordem, ao contrário, não é feita ou produzida. O construtor se esforça para erguer a casa, mas nenhum trabalho é necessário para a casa se deteriorar. Basta que o morador negligencie a sua manutenção para que a casa vá aos poucos deixando de ser habitável. Hermes Trismegisto assinala que até a desordem dentro do mundo, onde quer que ela diminua a ordem, não é insubmissa ao mestre ordenador. A fim de que o Todo seja preservado, se faz necessário que as desordens pontuais sejam mantidas dentro de certos limites.

Se Tat pudesse voar, postando-se no meio entre o céu e a terra, e contemplasse o espetáculo dos fenômenos (as ondas do mar, as correntezas dos rios, o curso das constelações, etc.), em um só instante, veria o imóvel sendo movido, e o imanifesto manifestado nas coisas que faz. O voo é símbolo da ascensão aos planos mais fundamentais da realidade. Postar-se no meio (μέσον) entre o céu e a terra é estar no centro entre as polaridades, as terrenas (materiais, sensíveis, individualizadas, mortais) e as celestes (imateriais, formais, universais, imortais).

Testemunhar a totalidade dos fenômenos a partir do meio, o ponto que não está nem cá e nem lá, é contemplá-los a partir do "atopos" (ἄτοπος, "fora de lugar"). Porém, diferente do "atopos" mencionado anteriormente, aquele da desordem (a falta da ordem), o "atopos" do meio simboliza aquilo que transcende a ordem do mundo por ser a sua fonte. Ver as coisas em um só instante (o nunc instans) é contemplá-las fora do tempo, sub specie aeternitatis. 

Tat veria "o imóvel sendo movido". Deus é imóvel, mas, divisado por meio dos fenômenos, é como se Ele se tornasse móvel na mudança visível das coisas. Enxergaria "o  imanifesto sendo manifestado nas coisas que faz". É desse modo que a invisibilidade do Nous se mostra aos olhos. "Essa é a ordem do mundo e esse é o mundo da ordem". O Cosmos (κόσμος) é ordem (τάξις), e vice-versa.***

Idêntica evidência do Nous é fornecida pelos seres mortais que são os homens. Hermes pergunta a Tat quem ordenou seus corpos, abriu suas bocas, furou suas narinas e seus ouvidos, quem fez seus ossos sólidos, etc. Quantas obras, todas belas, medidas com exatidão, e todas diferentes! Que tipo de pai ou de mãe poderia ter criado tudo isso por sua própria vontade senão o Deus Imanifesto (ἀφανής θεός)? 

Negar que essa obra cósmica tenha vindo a ser sem Demiurgo, seria como afirmar que uma estátua ou uma pintura veio a ser sem um escultor ou sem um pintor. Sobretudo, seria uma grande impiedade privar o Demiurgo de suas obras. A impiedade (ἀσέβεια, "asebeia") é a ausência da piedade (εὐσέβεια, no grego/pietas, no latim), a reverência e o respeito pelos pais, pelas normas, e, principalmente, pelos deuses. É um dever religioso atribuir a Deus o que somente Ele poderia haver produzido.****

"Porém, se necessitas que eu diga algo mais desafiador, a essência desse é o criar e fazer todas as coisas". O Absoluto é encarado no discurso de Hermes Trismegisto a partir de Sua relação com o Cosmos, isto é, sob o aspecto de Demiurgo, Artífice. Sem Deus não poderia haver nada do que há. As coisas sensíveis são engendradas, cada uma a seu tempo. Aquilo que não existia, e vem a ser, só pode ter passado a existir pela ação causal de algo existente. Esse fato demonstra a impotência ontológica dos entes sensíveis.

"Esse não pode sempre ser se não faz sempre todas as coisas". produção, "poiesis" (ποίησις) divina, é incessante, diferente daquela de um artífice humano que encerra seu trabalho tão logo sua obra está completa. Um homem possui a arte ("techné", τέχνη) da construção na qualidade de um saber adquirido, mas é propriamente construtor enquanto está construindo a casa. Terminada a obra, ele volta a ser construtor no sentido daquele que sabe construir.

A atividade produtora divina é incessante justamente porque não é temporal. Em Deus não há antes ou depois. São as coisas que vem a ser no tempo graças ao Seu poder gerador eterno. Segundo a bela definição do Timeu, o tempo é uma "imitação móvel da eternidade". A criação divina, encarada a partir da sucessão dos entes sensíveis que vem a ser e deixam de ser, adquire um aspecto temporal. Muitos seres existiram, muitos existem e muito ainda existirão. 

"As existentes, deveras, ele manifestou, porém, as não existentes ele tem em si mesmo". Do ponto de vista da sucessão temporal dos seres (onde estamos), e em comparação com as coisas que existem e que existiram, percebemos que outras tantas seriam igualmente possíveis. Elas foram, por assim dizer, preteridas. Se uma possibilidade se realiza, outras necessariamente são negadas, e permanecem no seio da divindade como possibilidades irrealizadas neste mundo.

"Deus é o melhor nome, esse é o imanifesto, esse é o mais manifesto; o visível pela mente, esse é perceptível pelos olhos". Sem contradição, o Deus que em si mesmo é imanifestado é manifestado pelas coisas que produz, e o que é inteligível é perceptível por meio dos entes sensíveis que o imitam a seu modo e dentro de suas capacidades. "Esse é incorpóreo, multicorpóreo, mas principalmente omnicorpóreo". Deus, embora seja incorporal, quando encarado a partir dos entes corporais, manifesta-se sensivelmente em todos os corpos, como se fosse corpóreo.

"Nada é que ele não é. Pois todas as coisas que existem também ele é". Deus está em todas as coisas enquanto seu fundamento, dado que tudo o que elas são provém exclusivamente dele. Nesse sentido, Ele é todas as coisas. A imanência divina (a presença real em tudo que há) não nega e nem diminui a transcendência divina (que ultrapassa tudo). Deus está intimamente presente em tudo porque é o poder infinito que faz todos os entes finitos existirem. 

"E por isso mesmo, ele tem todos os nomes, porque são de Um Único Pai". Todos os nomes pertencem a Ele porque o que quer que haja neste mundo não é mais do que uma manifestação limitada do absoluto poder divino. Os nomes das coisas pertencem a Deus de modo imperfeito, obviamente. Jamais será correto confundir ou identificar o manifestado com o imanifestado.

Analogamente, todos os números são formados pela unidade, mas a unidade não muda em nada em si mesma não importando quão grandes ou quão pequenos sejam os números que por ela são formados. Os números sofrem adição, subtração, divisão, multiplicação. A unidade permanece idêntica a fim de que essas operações sejam possíveis. A unidade é imanente aos números, está presente em qualquer um deles, e é transcendente, não pode ser reduzida ou limitada a nenhum deles. 

"Então, quem te bendirá abaixo de ti ou em direção a ti? Não existe um lugar ao qual se dirigir a fim de louvar a Deus. O que está em cima está embaixo. O Cosmos é uma teofania, uma manifestação divina. Qualquer lugar é idêntico no que tange à presença de Deus. "Todas as coisas estão em ti, todas as coisas vêm de ti". Deus é generoso, dá sem limites, e nada recebe de ninguém. De quem Ele poderia receber algo? "Pois tens todas as coisas, e nada existe que não tenhas". 

"E por que eu te cantarei? Como sendo de mim mesmo, como tendo algo próprio, como sendo outro?" Nada existe que não seja obra de Deus. Portanto, quando alguém canta hinos em Sua homenagem, inevitavelmente concebe Deus como um "outro" com o qual se relaciona. Converte-se Deus em um ente diferente de si do mesmo modo que João é diferente de Pedro. Hermes Trismegisto não está questionando a justiça do louvor. A questão é perceber que, na realidade, o manifestado não possui em si nenhum poder de existir. 

O homem, um ente manifestado, quando se enxerga a partir somente da manifestação, acaba atribuindo a si uma independência ontológica que não possui. Acredita que ele, Deus e todas as coisas existem num mesmo patamar. Rebaixa o Princípio ao nível das coisas sensíveis. Em certa medida, esse nivelamento é inevitável. O ser humano vive entre seres sensíveis, e não é de se espantar que acabe se relacionando com Deus segundo os modos próprios das coisas. 

O discurso iniciático de Hermes Trismegisto não visa eliminar essa tendência. Afinal, de que maneira alguém poderia se dirigir a Deus senão reduzindo-o a um ente, a um ser do qual está separado, e com o qual é necessário estabelecer comunicação? O objetivo do discurso é recordar/revelar que a linguagem do manifestado não é adequada ao imanifestado, e que, no fundo da realidade, somente o Absoluto existe"Pois tu és todas as coisas, e nenhuma outra coisa existe: o que não existe, tu és". O que há e o que pode haver residem sem diferença no poder infinito de Deus.

"Nous por ser pensado; e Pai por criar; e Deus por operar; e Bom por fazer todas as coisas". Princípio é único, sem quaisquer distinções ou divisões internas. Porém, captado pelo pensamento, assume o aspecto de Nous. Ele é o Pai, visto enquanto gerador das coisas. Tem o nome de Deus, quando encarado em Sua operação (ἐνέργεια) contínua de trazer os entes à existência. E é Bom (ᾰ̓γᾰθός) pela liberalidade (γενναιοδωρία) com a qual dá origem a tudo sem ciúme (Φθονος). 
 
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*Tradução do Prof. David Pessoa de Lira.
** "O deus sempre geometriza", em grego.
*** Compare-se mundo (do Latim mundus, "limpo", "puro", "adornado") com seu antônimo imundo (literalmente, o "não-mundo").
**** A impiedade estava entre os crimes pelos quais Sócrates foi condenado injustamente pelo tribunal da democracia ateniense em 399 antes de Cristo.
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domingo, 25 de agosto de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 1)


"Foi criado um ser vivo visível, abarcando dentro de si aquelas criaturas visíveis. Foi criado como um deus visível, feito à semelhança do deus inteligível. Este nosso cosmos é singular, o único do tipo. Não há maior ou melhor, nenhum mais belo, nenhum mais perfeito."

PLATÃO, Timeu, 92c

O Corpus Hermeticum é uma coleção de dezoito discursos em grego que faz parte de uma pletora mais ampla de textos afins a qual ficou conhecida posteriormente como Hermetica. Os libelli que formam o Corpus remontam aos primeiros séculos da era cristã, e foram atribuídos a Hermes Trismegistos (Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, o "Hermes Triplamente Grande"), figura mítica que combina em si aspectos do deus grego Hermes, o mensageiro divino e psicopompo e de Thoth, divindade egípcia da sabedoria, da escrita, da magia e do julgamento. 

A influência do hermetismo, enquanto tradição filosófico-religiosa, se fez sentir na alquimia, na magia, no neoplatonismo, e mesmo no cristianismo. Preservados pelos mil anos do Império Romano do Oriente, enquanto a Europa ocidental vivia a chamada Idade Média, os discursos herméticos foram traduzidos ao latim somente em 1463 pelo padre católico, filósofo neoplatônico e mago Marsilio Ficino, a pedido de Cosimo de Medici, antes mesmo que completasse a tradução dos diálogos platônicos. 

A grande historiadora Frances Yates, em seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, mostra que o projeto de restauração religiosa de Giordano Bruno estava centrado em concepções greco-egípcias de uma prisca theologia contida nos escritos herméticos, os quais considerava serem mais antigos que a lei mosaica. Porém, em 1614, o filólogo e classicista Isaac Casaubon determinou que a data de composição do Corpus Hermeticum estaria entre os séculos III e IV da era cristã. Não obstante, o hermetismo permaneceu sendo uma das principais fontes (se não a principal) do esoterismo ocidental.

No artigo La Tradition Hermétique, publicado em 1931 na revista Le Voile d'Isis, René Guénon esclarece que o hermetismo é um conhecimento de ordem estritamente cosmológica, não da ordem metafísica pura. Portanto, não representa uma doutrina tradicional completa, mas sim um ponto de vista secundário e contingente de aplicação dos princípios metafísicos ao "mundo intermediário". No ano seguinte, na mesma revista, em artigo intitulado Hermès, Guénon reitera seu juízo sobre o hermetismo, acrescentando que

"De todo modo, deve ser bem entendido que não quisemos de forma alguma depreciar as ciências tradicionais que são da alçada do hermetismo, nem aquelas que lhes correspondem em outras formas doutrinais no Oriente e no Ocidente. Todavia, é necessário saber colocar cada coisa em seu lugar, e tais ciências, como todo conhecimento especializado, são somente secundárias e derivadas com relação aos princípios, dos quais não são mais que a sua aplicação a uma ordem inferior de realidade." (tradução minha do original em francês)

O próprio caduceu (κηρύκειον, "kerykeion"), o "cajado do arauto", que a tradição grega atribui a Hermes, simboliza o âmbito do hermetismo: duas serpentes (ou uma única serpente com duas cabeças) que se enrolam em espiral em uma bastão, e cujas cabeças se encaram mutualmente. O bastão vertical representa o Axis Mundi, o "Eixo do Mundo", que unifica e fundamenta todos os níveis da realidade, da Terra ao Céu. As duas serpentes que se encaram horizontalmente representam as dualidades e a manifestação dos diversos estados do Ser que são reunidos pelo "Eixo do Mundo".

Hermes, o Mercúrio romano, é uma divindade do intermediário. Na Grécia antiga, as estradas eram pontuadas por hermas (ἕρμα), pilares de pedra encimadas por cabeças esculpidas de Hermes e com um pênis na parte inferior, onde os gregos faziam libações e oferendas. O deus grego era o protetor dos arautos, dos ladrões, dos viajantes e dos comerciantes*, aqueles cujas atividades se dão na estrada, o medium que separa e une a um só tempo.  No canto XXIV da Ilíada, Hermes guia e protege o incognito rei troiano Príamo na sua rota até à tenda de Aquiles, a quem implorará a devolução do corpo de seu filho, o herói Heitor. 

O condutor realiza a união entre pontos distanciados, é um intermediário que possui a arte (τέχνη) da orientação não somente no espaço, mas também entre domínios da realidade. Hermes Chtonico é o psicopompo, o guia das psychai, invocado ao fim do terceiro dia da festa dionisíaca da Anthesteria para reconduzir os mortos que haviam entrado na cidade de Atenas aos campos de asfódelos no Hades, tal como narrado por Homero no canto XXIV da Odisséia:

"E o Auxiliador, Hermes, levou-as por caminhos bolorentos; chegaram às correntes do Oceano e ao rochedo branco; passaram além dos portões do Sol e da terra dos sonhos e chegaram rapidamente às pradarias de asfódelo, onde moram as almas, fantasmas dos que morreram." (tradução de Frederico Lourenço)

O caráter intermediário do hermetismo fica claro na doutrina da correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo da Tabula Smaragdina: "quod est superius est sicut quod est inferius, et quod est inferius est sicut quod est superius". O que está em cima é como o que está embaixo, e vice-versa. Existe uma simpatia (συμπάθεια, tema caro aos neoplatônicos)** que une todos os níveis do Cosmos, o deuteros theos (δεύτερος θεός, o "segundo deus"). Sejam eles simbólicos, cósmicos ou ontológicos, os vínculos que unem todas as coisas permitem que se passe de um nível a outro da realidade, desde que as transposições adequadas sejam feitas.

No Corpus Hermeticum, o quinto libellus de Hermes a seu filho Tat esclarece o aparente paradoxo de "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Trata-se de um discurso iniciático acerca do melhor dos nomes, que é Deus, e constitui-se numa ascensão ontológica que vai do manifestado ao imanifestado. O que é para muitos o imanifesto (ἀφανής, "invisível", "oculto"), vai se tornar para Tat o mais manifesto.***

Na tradição hindu, o termo sânscrito prādurbhāva significa "aparecer", "vir-a-ser" ou ainda "manifestar-se", e é geralmente empregado para designar aquilo que está no mundo de nāmarūpa ("nome-forma"), isto é, no mundo das limitações (upādhi) e das condições que constituem os seres. Por conseguinte, Brahman, Incondicionado, "Um sem Segundo", a realidade absoluta e fundamental, é, par excellence, Imanifestado.

A maioria dos homens só consegue reconhecer o fenômeno (φαινόμενον, "aquilo que aparece"), o que pode ser testemunhado pelos sentidos. O fundamento da realidade visível, no entanto, é invisível. O orfismo atribuía a origem do mundo a Phanes (Φάνης), divindade nascida do "ovo cósmico", símbolo tradicional das potências cosmológicas enquanto ainda contidas no Princípio. Associado etimologicamente ao brilho e à luminosidade, Phanes simboliza a relação intrínseca entre o Cosmos e o visível. 

Hermes Trismegistos afirma que Deus é ἀφανής, imanifesto, invisível. Isto é, ao contrário de Phanes, o "primeiro nascido" (Πρωτογόνος), Deus não é cósmico. Tudo o que é manifestado é engendrado, tem uma origem (genesis, Γένεσις), não existe desde sempre. Vir-a-ser, manifestar-se, implica ser engendrado, significa não existir desde sempre. "Pois não existiria sempre se não fosse imanifesto". A eternidade ou atemporalidade de Deus o distingue essencialmente das coisas manifestadas. O Cosmos é visível, e só comporta entes engendrados, temporais.

Note-se que já no Timeu de Platão são postulados dois axiomas fundamentais para a construção do Cosmos"o que sempre é, e nunca vem a ser" e "o que vem a ser, e nunca é". O primeiro refere-se àquilo que possui absoluta estabilidade ontológica, e que, portanto, nunca passa por qualquer mudança. Em particular, não "vem a ser", não é gerado, engendrado em algum tempo.

O segundo axioma refere-se àquilo que "vem a ser", que é gerado, engendrado em algum tempo, e que, por isso mesmo, não possui estabilidade ontológica. Algo assim nunca é, nunca existe realmente, dado que não era, veio a ser, e depois deixará de ser. O que "é sempre" é conhecido pelo intelecto, enquanto o que "vem a ser" é conhecido pela sensação. Em suma, o sensível, visível, o temporal, tem a sua tênue realidade ancorada ontologicamente no inteligível, no invisível, no atemporal.

Hermes Trismegisto prossegue dizendo sobre Deus que "sendo ele imanifesto, faz todas as outras coisas manifestas". Princípio, é o fundamento das coisas limitadas e condicionadas justamente por não estar submetido às limitações e às condições dos seres por Ele originados. A afirmação seguinte, "como sempre existe, ele não é manifestado pelas coisas manifestas", parece negar o que foi prometido no início do discurso, a saber, que o imanifestado se tornaria a Tat o mais manifesto. A explicação para essa passagem é que as coisas não manifestam Deus tal como Ele é, fora de qualquer relação com elas.

As coisas são como lentes que permitem que o invisível seja visto, mas que "distorcem" em alguma medida aquilo que é visto. Se, por um lado, um objeto postado à longa distância só pode ser visto graças ao poder das lentes de um binóculo, por outro lado, aquele que vê o objeto deve descontar o efeito das lentes para fazer um juízo adequado da situação e não crer que o objeto esteja realmente próximo. As coisas revelam Deus na medida de suas capacidades. As suas limitações intrínsecas não devem ser atribuídas a Ele. 

Sendo atemporal, Deus não é manifestado pelas coisas temporais. A razão ontológica disso é que a manifestação, o engendramento, é o modo de aparecimento próprio dos entes. O ilimitado não se manifesta enquanto ilimitado. Se o fizesse, tornar-se-ia limitado, o que é absurdo. O modo de "aparecimento" de Deus é o "desaparecimento" dos entes. Enquanto estes não são abstraídos, ultrapassados, nenhum conhecimento de Deus é possível. 

"Pois a aparência sensível é somente dos engendrados. Por isso, nada mais é o engendramento do que a aparência sensível". O discurso hermético estabelece a implicação mútua entre ser sensível e ser gerado. É sempre sensível o ente que não existia e passa a existir (pela ação causal de outro ente que já existe). "E o inengendrado, plenamente e inaparente e imanifesto é Um". Deus é mónos (μόνος, "único", "sozinho", "desacompanhado"), não como indivíduo (ser numericamente distinto dos outros seres), mas como Princípio de todas as coisas.

Contrastando com a unicidade divina, as coisas sensíveis são múltiplas, e se manifestam em todas as coisas. Hermes Trismegisto exorta seu filho a orar ao Senhor (κύριος) e Pai (πατήρ), pois um só raio que seja lançado por Ele no pensamento de Tat em resposta à sua petição pode fazê-lo compreender tão grande Deus. "Pois somente a intelecção, e como sendo ela imanifesta, vê o imanifesto". Na filosofia grega, platônica ou aristotélica, a intelecção ("nóesis", νόησις) capta a Forma (εἶδος, no sentido de "padrão", "essência") das coisas individuais que são percebidas pela sensação (αἴσθησῐς, "aísthēsis"). 

O intelecto (νοῦς,"nous") é, ao mesmo tempo, o atributo que define o ser humano e a sua parte mais divina. É por meio dele que o homem possui ciência (ἐπιστήμη,"epistēmē") daquilo que é mais fundamental e universal nas coisas, e, portanto, mais verdadeiro e mais real. Os sentidos só percebem o sensível, o múltiplo. O intelecto apreende aquilo que, não sendo sensível, unifica e causa os entes sensíveis. Subindo na cadeia das causas dos entes, Deus é a causa universal de tudo o que há e pode haver.

Nos discursos anteriores do Corpus Hermeticum, Deus é repetidamente denominado Nous. Ele é o intelecto que produz todas as coisas, e o ser humano, dotado de nous é capaz de apreendê-Lo. O que está em cima é como o que está embaixo. O intelecto divino é refletido no homem como um objeto é refletido no espelho. A imagem guarda semelhançaembora nunca seja o objeto na sua inteireza. nous humano é o Nous divino refletido no espelho das condições que definem o tipo de ser que é o homem.

"Se puderes, ele se manifestará aos olhos da mente, ó Tat". Caso seu intelecto seja forte o suficiente, preparado para isso, o Nous vai se revelar ao nous de Tat. "Pois o Senhor é livre para se manifestar através de todo o mundo". O termo grego "aphthónos"(ἄφθονος)que é traduzido aqui como "livre", é o antônimo de "phthónos" (φθονος,"ciúme" ou "inveja"), pode ser traduzido também por "liberalidade" ou "generosidade". 

No Timeu, o mesmo termo ἄφθονος é atribuído ao Demiurgo (δημιουργός, "artífice"), o criador do mundoA intenção era opor a "generosidade" (generoso é quem gera, genesis) do Demiurgo ao temido "ciúme" das divindades tradicionais. Na religião grega, o homem cuja vida fosse excepcionalmente feliz atrairia a "inveja" dos deuses, que o castigariam com a desgraça. O Nous é isento de mesquinhez, e gera todas as coisas sem reservas.

"Podes ver a intelecção e receber com as próprias mãos, e contemplar a imagem de Deus?". O conhecimento adequado de Deus não se dá pelos sentidos e nem pela imaginação (φαντασία, "phantasia", "fantasia"), que só pode combinar e recombinar os dados sensíveis guardados pela memória. A imagem (εἰκών, "ícone") que é objeto de contemplação (θεωρία, "theoria") não é sensível e nem imaginativa. 

"Porém, o imanifesto está em ti e por ti". O Nous está em Tat. "Como, o si mesmo em ti mesmo, através dos olhos, será manifestado a ti?" De que modo é possível reconhecer o imanifestado naquilo que é manifestado é a questão a que vai se dedicar na sequência o quinto discurso de Hermes Trismegisto.

(continuará na parte 2)

...

* Note-se que o comerciante é um intermediador entre o que é produzido e o consumidor.

** A simpatia, por sinal, é o fundamento da magia segundo Plotino nas Enéadas.

*** Sigo basicamente a excelente edição bilíngue do Corpus Hermeticum Graecum do Prof. David Pessoa de Lira, publicada em 2023 pela editora Cultrix. Consultei também a tradução inglesa de Clement Salaman, Dorine van Oyen, William D. Wharton e Jean-Pierre Mahé, intitulada The Way of Hermes, de 1999.