"Diz-se que é conjunto o que está junto com, contíguo, que está pegado, que está próximo. Conjunto é uma totalidade, pois ele é tomado como um todo"
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.53
O capítulo IX de "A Sabedoria da Unidade" discorre sobre os conjuntos, e sobre as relações que se estabelecem entre as partes e o Todo. Quando se trata de um todo lógico (eidético e noético), concebido pela mente, suas partes são as notas que o constituem. O todo real, ao contrário, constitui-se de partes hiléticas, atuais, fisicamente separáveis.
Existem partes essenciais em um todo, sem as quais o todo se desfaz. Por exemplo, em se tratando do conceito de "ser humano" ("animal racional"), suas notas essenciais são "animal" e "racional". Se qualquer uma dessas notas for retirada, o conceito é obliterado. Há outras partes, desde que não sejam essenciais, que podem estar ausentes ou podem ser removidas sem que o todo deixe de existir. Um homem sem braço não deixa de ser humano.
O conjunto é o que está junto com, unido como um todo. Possuindo partes, estas são chamadas elementos quando são irredutíveis a qualquer outra parte. O conjunto pode ser pleno (já se encontra na realidade) vazio (não possui ainda quaisquer elementos), possível (seus elementos são possíveis) e impossível (elementos são impossíveis). Os elementos são irredutíveis se não podemos derivá-los de outras partes mais simples, e se, retirando-se os elementos, o todo deixa de existir.
A água deixa de ser água no momento em que seus elementos constituintes, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, são separados na análise química. Ou seja, a água perde o logos da água quando seus elementos são retirados ou separados. O que não significa que as moléculas não possam formar outras substâncias químicas ou conjuntos em combinação com outros elementos. As duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são os elementos irredutíveis que formam o logos da água: a fórmula H2O.
O ponto, a linha, o volume são elementos sem os quais não poderia haver o espaço tridimensional, e também não são redutíveis a outros elementos. Algo é irredutível enquanto permanece dentro de seu logos. O fato biológico não pode ser reduzido à dimensão físico-química, embora na vida haja elementos físico-químicos. Estes não são suficientes para explicar o fenômeno biológico. Os fatos psicológicos não podem ser reduzidos à fisiologia cerebral, em que pese o fato de que a fisiologia cerebral esteja implicada nos fatos psicológicos.
"Ora, compreendendo a multiplicidade dos logoi, vemos, então, que a irredutibilidade é proporcionada a cada logos, havendo, portanto, uma redutibilidade, sim, mas com corrupção, deixando de pertencer àquele logos" (p.55).
A irredutibilidade significa que há um limite intrínseco na divisão de um todo além do qual ele deixa de ser o que é, e corrompe sua estrutura essencial. Por exemplo, os logoi da biologia e da psicologia não são redutíveis indefinidamente a quaisquer de suas partes. Quando reduzidos respectivamente às dimensões físico-química e fisiológica, eles deixam de ser o que são, corrompem-se, e se tornam outras coisas.
Os conjuntos plenos são unidades, e, portanto, obedecem às leis da unidade. Há uma harmonia entre as partes que é dada por uma norma, e esta, como já visto no caso das unidades, pode ser acidental ou substancial. Os elementos estão ordenados, uns sendo o ponto de partida para os outros (o ponto é o princípio da linha, etc.) ou implicados uns nos outros (a linha está implicada na superfície, mas não vice-versa).
Os conjuntos vazios possíveis (ainda não realizados, atualizados) são regidos pelas leis da potência real, aquela que é princípio de ação ou de afecção. Potencialidades contrárias não são contraditórias enquanto permanecem potencialidades. João pode ou não ir ao teatro, mas uma vez que tenha ido, não pode ter ido ao teatro e não ido ao teatro ao mesmo tempo. A possibilidade de ir ao teatro é realizada, tornada real, naquele momento em que João foi efetivamente ao teatro. A possibilidade de não ter ido ao teatro, não pode mais se realizar naquele momento.
Ao atualizar uma possibilidade, outras são rejeitadas, e outras ainda adquirem um fundamento para a sua realização futura. João escolheu ir ao teatro, e, por isso, não pode mais escolher ir ao cinema, uma das tantas possibilidades rejeitadas. Tendo ido ao teatro, no entanto, João abre um conjunto de possibilidades. Ele pode sair do teatro e jantar num restaurante próximo, o que não poderia fazer se tivesse ido ao cinema do outro lado da cidade ou tivesse permanecido em casa.
A atualização de uma potencialidade corresponde à negação da potencialidade contrária e à virtualização de potencialidades que se tornam passíveis de realização futura graças àquela atualização. As potencialidades negadas, embora não possam mais ser atualizadas, não deixam de ser potencialidades reais. Por assim dizer, elas pertencem ao mundo alternativo "daquilo que poderia ter sido". E aquilo que se efetivou na realidade, e já não mais existe, também não deixa de ser uma potencialidade real. Ela foi realizada, não pode mais se efetivar porque já foi real.
João foi ao teatro. Não pode mais ir ao teatro naquele momento (ou situação). Pode ir no futuro, sem dúvida, mas não pode mudar o que aconteceu: o fato de ter ido ao teatro. Tanto as possibilidades rejeitadas por João ao escolher ir ao teatro quanto o fato passado de que efetivamente foi ao teatro entram naquilo que Mário Ferreira chama de epimeteico. A efetivação de um possível que acarreta a virtualização de outros possíveis, ele chama de prometeico.
No conjunto pleno a potencialidade é real e subjetiva, isto é, enraizada no sujeito (subjectum, supósito) existente, em algo que existe. Se tomamos um conjunto qualquer, há uma série de potencialidades que ali estão contidas por conta da sua natureza intrínseca. Está sob o poder de um time de pedreiros, por exemplo, erguer uma casa. Certos materiais reunidos num conjunto possuem capacidades determinadas.
A potência real subjetiva não corresponde a todas as possibilidades lógicas, mas somente àquelas de um determinado ente (ou conjunto) da realidade. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas de um conjunto, podemos também conceber e estudar essas potencialidades mesmo que o conjunto em questão seja meramente possível. Conhecendo as potencialidades reais de uma casa, posso conceber as vantagens e desvantagens de construí-la, os materiais necessários e suas respectivas potencialidades reais, etc.
As impossibilidades ou potências irreais são aquelas que não possuem qualquer fundamento para existirem. Um conjunto formado por entes ficcionais (Sherlock Holmes, Drácula, etc.) é um conjunto irreal e impossível, não existe e nem pode ser trazido à existência por ninguém. Entes cujos conceitos implicam contradição (triângulo quadrado), ou conjuntos formados por eles, são absolutamente impossíveis.
Observe-se que um conjunto é vazio porque seus elementos não existem. Não obstante, isso não significa que ele seja impossível. Um conjunto formado por máquinas que não existem é vazio. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas dessas máquinas (ou de seus materiais constitutivos), não havendo nelas individualmente ou em conjunto nenhuma contradição, nada impede que elas possam ser construídas. Se serão ou não construídas, isso dependerá de outras considerações.
A falta de condições materiais e de trabalhadores qualificados pode impossibilitar a construção dessas máquinas. Porém, existe aqui apenas uma impossibilidade relativa, não uma impossibilidade absoluta como a de um conjunto de triângulos quadrados. Elas serão efetivamente construídas se mudarem as condições que ora impedem a sua construção. Ao contrário, quaisquer que tenham sido as condições no passado e quaisquer as condições futuras, nunca houve e nem haverá um conjunto de triângulos quadrados.
No caso das máquinas inexistentes, nada impede que examinemos esse conjunto vazio a partir das potencialidades reais e subjetivas que contém. É mesmo possível examinar intelectualmente um conjunto cujas
potencialidades reais e subjetivas não se efetivaram. Um historiador
pode examinar situações e acontecimentos alternativos baseado
somente nas potencialidades reais e subjetivas daquele conjunto que poderia
ter se realizado.
Obviamente, um conjunto que poderia ter sido é vazio, e tornou-se impossível no momento em que foi preterido pela efetivação de outro conjunto. Nada impedia lógica e metafisicamente que o conjunto A se efetivasse no lugar de B. Todavia, no momento em que B se efetivou, então, pelo princípio da não-contradição, A não poderia se efetivar ao mesmo tempo. O conjunto A continua sendo metafisicamente possível em qualquer outro momento que não aquele no qual B se efetivou.
Os conjuntos A e B não entram em contradição enquanto são possíveis. Somente quando um deles se efetiva na realidade é que o outro necessariamente fica impedido de se efetivar ao mesmo tempo. Aquele que foi preterido, embora sendo possível, torna-se impossível para aquele momento, e entra no âmbito do epimeteico, daquilo que poderia ter sido efetivado e não o foi. Mas como sempre foi algo possível, não há impedimento algum em examinar as suas potencialidades e quais seriam as suas consequências se houvesse sido efetivado.
O conjunto dos triângulos quadrados é zero, não pode ser pensado em termos de possibilidade que não foi efetivada. É um conjunto absolutamente impossível porque seus elementos são instrinsecamente contraditórios. A contradição não se refere a quaqluer coisa que possua alguma aptidão para ser, por mínima que seja. Afirmar o contraditório é afirmar nada.
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