domingo, 5 de maio de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos IV, V)

"Mas certos entes, que são per ordinem, e que estão coatos de certo modo, embora por uma intencionalidade extrínseca a eles, também se apresentam analogamente como seres tensionais. É isto que aceita Suarez, mas que só admitiríamos por analogia."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 31

A unidade é o fundamento da multiplicidade. A multidão, portanto, não é impedida pela unidade, mas desta necessita para que seja real. A componência é tudo aquilo de que se constitui um Todo, cuja emergência é a natureza da coisa. São componentes da coisa a sua estrutura eidética (o que ela é, o seu eidos) e a sua estrutura hilética (aquilo do que é feita, a sua matéria). 

A natureza da coisa é o synolon, o composto das estruturas eidética e hilética, que abrange e dá fundamento a todas as suas capacidades e possibilidades. Esse Todo é um conjunto no sentido em que é uma unidade que abriga e reúne em si uma multiplicidade. Sequências de totalidades de distintas origens formam complexos, e as sequências destes formam constelações. Em todos esses casos, as partes só se tornam partes quando estão subsumidas a um Todo, ou, mais precisamente, à regra de proporcionalidade intrínseca desse Todo.

Mário Ferreira dos Santos considera que no Todo as partes estão coerenciadas, arranjadas e dispostas segundo o logos próprio de cada coisa. O que concede coerência à totalidade é a tensão que mantém os componentes unidos não como resultado de mero ajuntamento. Já os agregados são unidades de modo acidental, e têm origem seja no agrupamento fortuito (o caso de uma pilha de pedras), seja na ordenação externa de entes existentes (no caso da formação de uma tropa). 

Nas unidades reais, nas quais o princípio de proporcionalidade intrínseca subordina as partes desde dentro, existe uma Forma substancial, há uma substância propriamente dita. Nas unidades que são formadas pela imposição externa de uma ordenação, o princípio de proporcionalidade é extrínseco. A coisa é uma substância acidental. Não é por si mesma que ela é o que é, mas somente pela ação de uma Forma acidental imposta de fora a alguma matéria preexistente.

A tensão no Todo real é um império exercido pelo logos que cria coerência e coação entre as partes. Embora sejam diferentes entre si, as partes estão submetidas à realização e manutenção do Todo. Na realidade, as diferenças já surgem com o fim de serem todas adequadas funcionalmente ao bem do Todo. A tensão é um elo, um esforço, um império que atua para realizar e manter a coesão de qualquer Todo que seja substancial. 

Já no Todo que é acidental, as suas partes estão em ato, capazes portanto de serem reorganizadas sem que haja prejuízo ou mudança em suas naturezas. Por exemplo, os componentes de uma tropa são todos homens em ato, existem de modo independente uns os outros, e podem muito bem se reorganizar em outras formações acidentais, como times de futebol. As unidades se juntam em uma totalidade, e estas se unem em uma série, que, por sua vez, podem formar sistemas, e estes o universo. 

Mário Ferreira deixa para os próximos capítulos a pergunta se o sistema, diferentemente da totalidade e da série, pode ser também acidental. Seja como for, qualquer Todo, acidental ou real, terá sempre um logos analogante, o princípio pelo qual os componentes são organizados intrínseca ou extrinsecamente. Somos capazes de construir conjuntos esquemáticos mentalmente sob o ângulo noético-eidético ou eidético. Esse conjuntos podem ter fundamento na realidade ou serem ideais.

O conjunto dos reis que abdicaram é uma unidade acidental, mas com fundamento na realidade. O conjunto dos monstros medievais tem um fundamento ideal, embora sejam reais as suas representações plásticas (imagens, etc.). Os ouvintes de uma programa de rádio estão reunidos acidentalmente, e o seu logos analogante, o que os une, é justamente ouvir o programa a tal hora do dia. Mesmo a multidão, enquanto um complexo, possui alguma realidade, ainda que acidental.

A questão agora é saber se uma totalidade acidental pode ser considerada um ente na realidade. Para o filósofo espanhol Francisco Suarez, o Todo que é constituído acidentalmente não é um ente, mas entes. Não haveria verdadeira unidade em um agregado. São partes reunidas e mantidas juntas graças por uma ordem imposta de fora. A tensão que mantém a unidade de um ente acidental não é, como no ente real, um poder ativo, um logos que impera que dá coerência às partes. 

A máquina é uma unidade acidental, e suas partes, que existem independentemente umas das outras, são reunidas de fora para dentro, e mantidas unidas por uma tensão análoga àquela das unidades reais, mas imposta extrinsecamente por nós que a produzimos. Isso é diferente de uma célula que, tendo partes heterogêneas e com diversas funções, se constitui, tal como temos visto, em uma unidade real (ou ente real), pois tudo nela nasceu e se diferenciou graças a uma ordem intrínseca. 

As partes constituintes da máquina estão organizadas para a realização do Todo, sem dúvida. Nesse sentido, podemos dizer que há uma certa tensão que ordena os componentes. Não é, porém, um ente per se, por si mesmo, e sim um ente per accidens, pela junção das partes segundo uma intencionalidade extrínseca. É uma unidade que funciona como se fosse per se. 

Existe no relógio uma intencionalidade extrínseca que unifica as partes e faz com que elas funcionem de acordo com o interesse do Todo. Mário Ferreira admite, com Suarez, que se possa falar de uma unidade per se análoga nesses casos em que a unidade, ainda que acidental e extrínseca, submeta os componentes a uma ordem que beneficia o Todo. 

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