domingo, 10 de dezembro de 2023

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro III, sobre a oração)



"As melhores formas de aproximação de Deus parecem ser duas: a via da investigação e do argumento, e a via da oração e da súplica. A primeira almeja conhecer o Bem, enquanto a segunda é nosso guia para alcançá-lo, e, tendo-o alcançado, conhecê-lo perfeitamente."

MARSÍLIO FICINO, Comentários aos "Nomes Divinos", LXVII

Na sequência de sua exposição sobre os nomes de Deus, no livro III, Dionísio dedica-se à tratar da oração. Para se alcançar as divinas verdades é mister subir a Deus, como que por uma corda que tem seu início nos céus e se estende até nós. Uma mão depois da outra, subimos, e temos a impressão de que são os céus que, por ação de nossa força, deslocam-se na nossa direção. Na verdade, é a Realidade última que nos atrai com sua refulgência. 

Estando em um barco atado por uma corda a uma rocha na costa, não afetamos em nada a rocha ao puxarmos a corda a fim de aproximar o barco da costa. Analogamente, se empurramos a rocha com um remo, em nada a afetamos, mas dela nos afastamos. No início de todas as atividades, é necessário que as iniciemos com orações, sem considerar que trazemos a Divindade a nós, pois ela está perto em todo lugar e em lugar nenhum. São as lembranças e as invocações que nos unem a esse Poder.

Plotino, na Enéada IV, 4, ao examinar o problema da oração e da magia, assinala que não são os deuses ou os astros que se inclinam ao homem, mas sim que é o homem, por meio dessas práticas, que entra em sintonia com (ou capta, ou atrai) poderes que naturalmente emanam desses seres. O universo é um Todo cujas partes são formadas e exercem suas funções em vista da realização e da manutenção do Todo. 

Assim, necessariamente, tal qual um animal, todas as suas partes, por mais diversas que sejam, e por mais que estejam separadas umas das outras, estão em profunda simpatia (συμπάθεια), ou seja, pertencem a (e têm seu sentido em) uma unidade subjacente. Por conta disso, nada está realmente afastado de nada, não havendo possibilidade de isolamento absoluto. As coisas têm poderes diferentes que entram em relação com os poderes de outras coisas, e têm efeitos diferentes de acordo com as capacidades ativas e receptivas dos outros seres.

No caso dos astros, não são eles mesmos, como se fosse algo de sua escolha, que distribuem benefícios ou malefícios aos homens, mas, sendo o que são, eles possuem determinados poderes que podem ser benéficos ou não a depender dos poderes receptivos das coisas que estão abaixo deles. As orações, por seu turno, não são mais do que meios de captar ou atrair essas influências. Os astros, no entanto, permanecem incólumes tanto quanto uma mulher bonita permanece a mesma a despeito do efeito que surte nos homens ao seu redor.

As orações são o meio ou o instrumento pelo qual o homem se harmoniza com esse poder superior. Neste mundo, um orador diante de uma plateia utilizará gestos, movimentos e palavras que ele sabe que terão o efeito de atrair a atenção das pessoas que o assistem, e predispô-las à anuir com o que será dito. Isso é um poder real, um encanto ou magia, exercido sobre outrem. As pessoas presentes na assembleia são capturadas não pela razão, mas por sua parte não racional que é impressionada por aquelas palavras, gestos, entonações, movimentos, etc.

Obviamente, os astros não são capturados por orações da mesma forma que pessoas em uma assembleia são capturadas pelas artes de um orador. Embora o princípio de simpatia seja o mesmo, são somente certos efeitos involuntários dos astros que são capturados pelas orações, uma vez que se trata de uma relação hierárquica na qual o ser humano é inferior. Utilizando uma imagem, uma cachoeira fornece água permanentemente, a despeito de haver ou não quem se coloque sob sua cascata. Se alguém quer se beneficiar daquela fonte de água, deve se pôr diretamente sob seu influxo.

Dionísio afirma que não é Deus que se move na direção do homem, como se fosse uma pedra atraída a nós por meio de uma corda. Ao contrário, Ele é a pedra fixa da qual nos aproximamos ao puxar a corda. São as orações que nos colocam sob o influxo do poder divino. Assim como para exercer certas tarefas ou contemplar certas realidade precisamos nos concentrar, ignorando tudo o que não é parte de nosso foco, assim também a oração é a atitude que nos coloca em sintonia, e, portanto, nos dá acesso, a Deus, sem que Ele em nada seja afetado por isso.

Marsílio Fino, ao comentar essa passagem de Dionísio mais de mil anos depois, dirá que há uma cadeia na realidade constituída pela ordem e pela série das coisas obedecendo a Providência divina. Portanto, há uma certa comunhão, uma conexão mútua, nesse universo ligado como uma cadeia, no qual a Providência se estende desde os seres mais elevados até os seres mais humildes. Sem sofrer mudança, a Providência ordena os seres mutáveis, e dá azo à liberdade das almas racionais e às suas orações.

Os Magos sobem por essa cadeia a partir dos elos mais baixos a fim de alcançar os bens celestes. Os elos da cadeia intelectual atraem os contempladores da metafísica, que desse modo se aproximam gradativamente da luz inteligível. A cadeia pela qual sobe o devoto para alcançar Deus é a da lei natural inscrita no coração de todos os homens. E a lei promulga que há um só Deus, que Ele é o autor de todas as coisas, e que Ele deve ser amado acima de todas elas.

Jâmblico, cita Ficino, já reconhecia que a oração era mais importante que o sacrifício, pois este recebia todo o seu poder daquela, e que Deus não muda nada por conta das nossas orações, mas, ao contrário, somos nós que somos mudados pela oração, e tornados capazes de receber os dons que vêm do alto. Platão, na República, ensina que devemos iniciar, seja no pensamento ou na palavra, sempre a partir de Deus.

Se há uma simpatia que une todos os entes do universo, tal qual as partes de um ser vivo estão organizadas segundo a regra geral do Todo, assim também há uma comunhão entre todos os seres ainda mais profunda realizada pela Providência, que ordena todas as coisas segundo a sabedoria divina. Sendo o princípio ordenador, Deus mesmo está livre de toda a variação que caracteriza as coisas que são por Ele ordenadas e a Ele submetidas. Portanto, há uma cadeia do Ser, uma comunhão ontológica que liga não só as coisas que são, mas também as que foram e que serão um dia.

As orações e as súplicas são como a corda pela qual se sobe essa cadeia, não um meio de subvertê-la ou de controlá-la. Como tudo na realidade, trata-se de encontrar a configuração correta que permite abrir passagem para determinados poderes e capacidades aparentemente fechados, separados e inalcançáveis. A chave só abre a porta porque há entre essas duas configurações pontos de encaixe, ou seja, pontos em que há concordância de estrutura que permitem a comunicação entre suas diferenças, consequentemente, a liberação de certos efeitos.

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4 comentários:

Anônimo disse...

Olá, professor. Espero que esteja bem.

Aqui quem fala é o Augusto. Já conversamos algumas vezes no Instagram.

Professor, estou gostando muito do seu curso sobre Dionísio. Estou na aula 3. No entanto, gostaria de falar sobre a aula 1 com o senhor.

Lá, o senhor me pareceu ter apresentado uma versão do argumento cosmológico kalam com uma defesa incomum da premissa que nega um regresso causal infinito no tempo.

O senhor mencionou que as coisas que começam a existir não têm, por si só, a capacidade de existir, e que um regresso causal infinito no tempo não explicaria por que todos esses entes, que não têm por si a capacidade de existir, existem afinal.

Eu achei, simplesmente, genial essa argumentação. É uma linha diferente daquela adotada pelo William Lane Craig, que pressupõe a impossibilidade metafísica do infinito em ato. Também difere da argumentação dele segundo a qual é impossível atravessar o infinito.

Minha pergunta é: foi o senhor mesmo concebeu esse argumento contra o regresso causal infinito no tempo, ou o senhor o tirou de algum lugar?

Argumentos semelhantes vejo, por exemplo, na tradição tomista, mas esses argumentos são focados nas séries essencialmente ordenadas (em que os membros operam simultaneamente), enquanto argumentos como o kalam falam de séries causais acidentalmente ordenadas, que são aquelas que se estendem no passado.

Abraço!

Rogério da Costa (Oleniski) disse...

Olá, Augusto

Que bom que esteja gostando do curso do Dionísio!

Quanto ao argumento, creio que o argumento do Kalam falha porque concebem que o regresso ao passado seria um regresso infinito em ato. A metafísica do Kalam admite que o tempo é um conjunto atual de átomo de tempo e que, por isso, o passado, por assim dizer, "existe" ainda como momentos que foram somente ultrapassados. Tirando essa premissa sobre a realidade do tempo passado, o argumento cai (pelo menos na versão islâmica tradicional).

O argumento de Tomás e de Aristóteles não exige nenhuma premissa desse tipo, pois o tempo não é formado por átomos-tempo (ou de instantes adimensionais). O tempo passado não existe mais. Ademais, a causalidade divina no argumento é atemporal, não se trata de um argumento sobre a criação do mundo em um tempo passado (como no Kalam). Aqui e agora, e desde sempre, Deus é a causa das coisas.

A explicação que eu dou ali no vídeo talvez seja uma intuição minha sobre como tornar mais claro o fundamento do argumento, mas não creio que seja original de nenhum modo. O que o argumento cosmológico nas suas variações tenta mostrar é a incapacidade intrínseca das coisas de existirem por si mesmas, dado que todas recebem de outros o seu ato de ser, a sua existência.

A questão não é de haver mais ou menos entes no mundo; não se trata de quantidade, mas de qualidade. Em outros termos, é a incapacidade ontológica dos seres de existirem por si mesmos (sejam poucos ou muitos) que manifesta a necessidade da existência do Ser Necessário.

Creio que, explicado assim, o argumento evita discussões inúteis sobre infinitude dos seres e confusões sobre movimento e mudança. O que faço é trazer o argumento de volta às suas bases metafísicas gregas de "energia" e "dinamys". Resumindo, toda potência (dinamys) se radica no ato (energia), daí que o ato é a realidade absoluta.

A evidência disso tudo é ontológica, nem precisaria exatamente de uma argumentação (que é, na verdade, só um recurso discursivo e público).

Enfim, obrigado pela mensagem gentil. Fico realmente feliz quando consigo ajudar no entendimento desses temas.

Forte abraço e feliz 2024!

Anônimo disse...

Olá, professor.

Agradeço pela sua resposta e desejo um Feliz 2024 também!

Sim, a defesa tradicional do Kalam parece não se encaixar no contexto do Presentismo (teoria A do tempo), que postula que apenas o tempo presente é real. Edward Feser fez uma objeção a Craig exatamente nesses termos por volta de 2016.

Sua exposição, de fato, evita diversas discussões. Não importa se a ontologia correta do tempo é esta ou aquela, se o infinito em ato é uma possibilidade metafísica ou não. O crucial é que há algum ente na realidade que não possui existência por si mesmo, o que manifesta a necessidade de uma fonte primária de existência, um ente necessário.

Magnífico, professor.

Agora, é notório que muitos, especialmente seguidores de Tomás de Aquino, defendem que apenas séries causais essencialmente ordenadas manifestam a necessidade de uma primeira causa. O próprio Feser compartilha dessa opinião.

No entanto, professor, estou convicto de que um raciocínio similar ao anterior pode demonstrar que isso não é verdade, sem recorrer a paradoxos do infinito atual ou coisas parecidas.

Considere um regresso causal infinito no tempo de entes conferindo uma certa atualidade (como a existência) uns aos outros. Nenhum deles possui, por si mesmo, essa atualidade. Ora, isso é absurdo, pois essa série causal carece de uma raiz absoluta da atualidade que está sendo transmitida ao longo dela. Se não há um ente que a tenha por si, nenhum ente poderá recebê-la.

Isso parece tornar claro que mesmo séries causais que regridem no tempo precisam de uma primeira causa. Claro, esse raciocínio não se aplica em defesa do Kalam como concebido na tradição islâmica, pois Deus poderia, em princípio, criar um universo sem começo no tempo, no qual não houvesse séries causais que regridissem infinitamente no passado.

Enfim, o senhor concordaria com isso?

Novamente, agradeço pela sua atenção.

Atenciosamente,
Augusto

Rogério da Costa (Oleniski) disse...

Olá, Augusto.

A princípio, creio que você está certo. Mas teria que pensar mais para te dar uma resposta segura.

Boa ideia, parabéns!

Abraços!