segunda-feira, 3 de julho de 2023

Proclo e Ficino sobre o tema do "Timeu" de Platão


"O tema desse livro (Timeu) pode então se afirmar ser a própria natureza do universo, isto é, um poder seminal e vivificante que pervade todo o cosmos, sendo sujeito à alma do mundo, porém exercendo controle sobre a matéria, e dando origem a todas as coisas segundo a sequência que a própria alma concebe, enquanto contempla a mente divina e busca o Bem."

MARSILIO FICINO, Compendium, cap. 1

O filósofo neoplatônico lício Proclo (412-485 D.C.), conhecido como ὁ Διάδοχος, "o sucessor", foi autor de muitas obras importantes de filosofia, em especial de teologia platônica e de comentários a diálogos do divino Platão. Em seu longo, rico e detalhado comentário ao Timeu, logo no início, Proclo apresenta ao leitor os temas centrais do diálogo e faz interessantes afirmações sobre o conjunto da obra platônica. Ele inicia afirmando que é evidente a todos que não são iliteratos que o tema do diálogo é a teoria do universo.

Platão, seguindo os pitagóricos, trata das causas materiais das coisas deste mundo, que estão submetidas às causas propriamente ditas na geração dos entes. Mas antes das causas materiais, Platão investiga as causas principais, a saber, a causa produtora das coisas, o paradigma e a causa final. Assim, o filósofo coloca a inteligência demiúrgica acima do universo (Demiurgo, δημιουργός, "artífice", a causa produtora), a causa inteligível (paradigma), na qual o universo subsiste primariamente, e O Bem, como causa final anterior à produção de tudo, na ordem do desejável.

Este mundo não é o mesmo que o mundo inteligível que subsiste em puras Formas (modelos eternos e imutáveis), mas algo nele tem relação com as Formas e a Razão e algo tem relação com a matéria. Platão, contudo, apresenta todas as causas da produção do mundo: O Bem, o paradigma inteligível, o Demiurgo, forma e matéria. Dado que o tema do diálogo é o mundo da mudança, o filósofo atribui a ele matéria e forma, e o assimila a um animal inteligível, demonstrando ser o mundo um deus por participação no Bem, isto é, um deus intelectual e animado.

O universo é produzido, em seu todo e em suas partes, em consequência da preexistência do Demiurgo, do paradigma e da causa final. As naturezas corpóreas são formadas, as almas são infundidas e o Todo é tecido conforme a sua compreensão unificada no mundo inteligível. Do mesmo modo as partes são arranjadas em vista da realização do Todo, sejam elas corpóreas ou vitais. O homem é considerado anterior às outras coisas, pois ele é um microcosmo contendo em si parcialmente tudo o que o mundo contém de modo total e divino. Há no homem um intelecto (νοῦς) que está em ato (ενέργεια, "em exercício"), uma alma racional como a alma do universo, um veículo etéreo análogo aos céus, e um corpo terrestre derivado dos quatro elementos. 

O filósofo neoplatônico, teólogo, padre, mago e astrólogo renascentista Marsilio Ficino, no capítulo oito de seu Compendium, comentando o Timeu, afirma que todos os seguidores de Platão concordam em declarar que este universo recebe tudo do Deus supremo, incluindo ação, poder e essência. Todas as coisas são provenientes d'Ele. Em referência à sua absoluta simplicidade, Platão o chama de O Uno (Τὸ Ἕν), e em referência à sua infinita beneficência, ele o chama de O Bem (τοῦ ἀγαθοῦ). É sob sua operação que todas as outras causas operam, e, fundamentalmente, tudo o que existe ou vem a existir depende mais dele do que de qualquer outra causa.

Platão, diz ainda Ficino, a fim de demonstrar que todas as coisas emanam do Uno, afirma claramente no sexto livro da República, no Parmênides e no Sofista que o Uno, o Bem, é superior a qualquer essência e a qualquer intelecto, e que é a causa tanto da essência quanto do intelecto. O Uno e o Bem são evidentemente o mesmo, pois o Princípio não pode ser duplo. Ele deve ser totalmente simples e totalmente bom, não havendo nada mais simples que a unidade e nada melhor que a bondade. Ambos são um, o Deus supremo. E que Ele está acima da essência e do intelecto, Ficino considera haver demonstrado em sua grande obra Teologia Platônica.

No capítulo seguinte do Compendium, o filósofo renascentista expõe a emanação das coisas:

"A partir desse Uno sem qualificações, o Bem que se eleva acima de toda essência, Platão, em seu Parmênides e em seu Sofista, deriva todos os níveis dos seres. Em seguida, os níveis daquelas coisas que são realmente, as Formas separadas. Então, os níveis das coisas que não são verdadeiramente, as Formas incorporadas na matéria. E, finalmente, o mais baixo nível da matéria, o qual é tão distante da verdade que é próximo daquilo que se imagina não mais possuir ser verdadeiro. Tal matéria não qualificada, que no Parmênides é derivada do Bem e encontrada no último nível da criação, Platão aceita no Timeu como já produzida pelo criador do mundo e como subordinada ao efeito da operação cósmica."

A matéria recebe seu ser do Uno, como todas as coisas, mas é formada e ordenada por meio do intelecto e movida pela alma, defende Ficino. Um oleiro prepara a massa com as suas mãos, mas a modela e dá-lhe forma na roda utilizando a espátula. Ninguém diria que o vaso foi feito pela roda e pela espátula, e sim que o vaso foi feito pelo oleiro utilizando a roda e a espátula. Analogamente, este universo veio a ser a partir do Uno por meio de um intelecto divino e da alma do mundo. 

O universo visível não pode ser absolutamente uno, mas dividido em partes, com qualidades de naturezas opostas, diversidade de efeitos e imperfeições materiais. Por isso, anterior a ele (atemporalmente), um outro mundo emana do Uno, um mundo inteligível e intelectual, contendo os modelos eternos de todas as coisas que vem a ser no nosso mundo visível. Ficino afirma que os platônicos denominam esse mundo inteligível de intelecto divino, a mais nobre emanação do Uno, e acrescenta que se ambos forem da mesma substância, será possível aproximar mais ainda Platão da teologia cristã. Não obstante, ele reconhece que outros intérpretes erguerão suas vozes contra essa interpretação.

Retornando ao comentário de Proclo, o filósofo passa a tratar da forma e do caráter do diálogo em discussão. Todos os que conhecem os escritos do divino Platão sabem que seu estilo é socrático, filantrópico e demonstrativo. Se há algum texto onde Platão mesclou o socrático com o pitagórico, parece ter sido o caso do Timeu. Seguindo o costume pitagórico, há no diálogo elevação de concepção, o intelectual, o divinamente inspirado, a dependência de tudo com relação aos inteligíveis, as totalidades delimitadas em números, as coisas indicadas misticamente e simbolicamente, o anagógico e o enunciativo. 

O lado socrático é filantrópico, sociável, suave, demonstrativo, ético e contempla os seres por meio de imagens. É isso que o torna um diálogo venerável. Forma suas concepções sublimemente a partir de primeiros princípios, e mescla o demonstrativo com o enunciativo. Prepara os homens para entender a Física não só fisicamente, mas também teologicamente, pois a Natureza nem é ela mesma uma Deusa, nem falta à ela algo de divino, mas é iluminada pelos deuses verdadeiramente existentes. Se o discurso deve se assemelhar ao objeto discutido, então é natural que o Timeu, imitando a Natureza, contemple o físico e o teológico.

Proclo discute em seguida o conceito de natureza. Diferentemente daqueles que julgaram ser a natureza matéria, ou forma na matéria, ou corpo, ou os poderes físicos, ou ainda a alma, Platão considera que ela está entre a alma e os poderes físicos, estes sendo inferiores à ela, dado que são divididos sobre corpos e incapazes de conversão a eles mesmos. A natureza é a eles superior por conter em si as razões e os princípios produtivos de todos eles, gerando e vivificando todas as coisas. A natureza beira os corpos, e é inseparável deles. A alma intelectual, contudo, é separada dos corpos, está estabelecida em si mesma, e, simultaneamente, pertence a si mesma e a outro, por ser participada. 

A fim de esclarecer a diferença entre natureza e alma, Proclo enuncia uma interessante hierarquia da realidade: em si; de si; de si e de outro; de outro; outro. Subindo do mais baixo ao mais alto na escala do ser, o filósofo explica que o outro corresponde aos entes sensíveis, onde há intervalo e que estão sujeitos à divisão. Logo acima vem o de outro, correspondendo à natureza, visto que ela é inseparável dos corpos (a natureza sempre é a natureza de algo). Aquilo que é de si mesmo e de outro é a alma, ao mesmo tempo subsistente nela mesma e comunicando vida à outra coisa. O de si é o intelecto demiúrgico que permanece em si mesmo em sua maneira habitual. Aquilo que é em si corresponde aos inteligíveis, paradigma das produções do Demiurgo.

A natureza é, por conseguinte a última das causas das coisas corporais e sensíveis. Contém as razões e os poderes com os quais governa os seres mundanos. É uma deusa por ser deificada, embora seja destituída da subsistência de uma divindade. Como ensina o Oráculo Caldeu, a Natureza está "suspensa nas costas da Deusa". Proclo resume a discussão asseverando que, para Platão, a natureza é uma essência incorpórea, inseparável dos corpos, contendo as razões e os princípios produtivos dos entes naturais, mas incapaz de perceber a si mesma. 

Resta evidente que o diálogo versa sobre temas físicos. Como a filosofia é dividida entre a teoria concernente aos inteligíveis e a teoria acerca das naturezas mundanas, dado que há um mundo inteligível e um mundo sensível, Proclo considera que o Parmênides trata dos entes inteligíveis e o Timeu trata das naturezas mundanas. No entanto, nem o primeiro omite inteiramente a teoria sobre as coisas mundanas e nem o segundo omite inteiramente a teoria sobre os inteligíveis. Os sensíveis estão nos inteligíveis paradigmaticamente e os inteligíveis estão nos sensíveis iconicamente. 

No Timeu a discussão se dá em torno daquilo que é físico, enquanto no Parmênides a discussão se eleva a temas teológicos. Segundo Proclo, o divino Jâmblico estava certo quando dizia que toda a doutrina de Platão estava compreendida nesses dois diálogos. O Timeu ensina que a causa de todas as coisas neste mundo é o Demiurgo, o Parmênides recua a emanação de todos os seres até o Uno. 

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