"A quimera do dia é enriquecer todas as classes às custas umas das outras, é generalizar a espoliação sob o pretexto de organizá-la. Ora, a espoliação legal pode se exercer de uma multidão de maneiras diferentes. Daí uma quantidade infinita de planos de organização: tarifas, proteção, bônus, subvenções, encorajamentos, imposto progressivo, educação gratuita, direito ao trabalho, direito ao lucro, direito ao salário, direito à assistência, direito aos instrumentos de trabalho, gratuidade de crédito, etc. E é o conjunto de todos esses planos, naquilo que eles têm em comum, a espoliação legal, que toma o nome de Socialismo."
FRÉDÉRIC BASTIAT, La Loi, p. 18 (tradução minha do original em francês)
Em junho de 1850, o político e pensador francês Frédéric Bastiat publicou seu famoso ensaio A Lei, no qual criticava a deturpação das leis vigentes. Para defender sua visão de que as leis haviam se desviado de sua função precípua, Bastiat inicia afirmando que, anteriormente à toda legislação, há a Personalidade, a Liberdade e a Propriedade. A lei não seria outra coisa que não a organização coletiva do direito à legítima defesa.
Todo ser humano tem naturalmente o direito à defesa de sua Personalidade, de sua Liberdade e de sua Propriedade. O Direito coletivo tem sua raison d'être na defesa desses direitos. Por isso a Lei tem o direito de usar a força para fazer valer tais direitos fundamentais. Infelizmente, a lei desfigurou-se e passou a aniquilar aquilo que por princípio deveria proteger.
Duas razões há, diz o pensador francês, para esse desvio da lei: o egoísmo ininteligente e a falsa filantropia. O primeiro é facilmente explicável pela necessidade humana de perseguir o seu bem-estar e fugir da dor. O homem pode conseguir sua subsistência por meio de seu próprio trabalho ou pode consegui-la pela espoliação do trabalho e da propriedade adquirida por outros homens. A História mostra como é frequente a segunda opção.
A lei foi feita justamente para evitar essa situação. Não obstante, ela se tornou um instrumento da espoliação utilizado pelas classes no poder. Diante dessa realidade, aqueles que são espoliados podem escolher uma de duas opções: eliminar a espoliação por completo ou tomar parte dessa mesma espoliação da qual eram vítimas. Em vez de eliminar a espoliação, os espoliados desejam universalizá-la.
A primeira consequência de tal deturpação da lei é apagar das consciências a noção de justiça. Qualquer sociedade só se sustenta na medida em que respeito à lei, mas quando esta é imoral e injusta, uma cisão se instala no indivíduo. Ou bem ele sufoca sua consciência moral e segue a lei injusta, ou bem ele desrespeita a lei para apaziguar sua consciência. Não adianta tentar igualar a justiça à lei, pois injustiças como a escravidão já foram legais.
O outro efeito deletério da deturpação da lei é dar à política uma força exagerada na sociedade. A luta política por um naco na espoliação geral será a tônica das discussões, com cada classe buscando sua parte no butim. Há a espoliação extralegal, o roubo puro e simples, proibida pela lei, e há a espoliação legal, o Socialismo. Opor a lei ao Socialismo é absurdo, pois é a lei que o suporta.
Só há três soluções, afirma Bastiat. A espoliação parcial, o regime em que poucos espoliam muitos, a espoliação universal, na qual todos espoliam todos, e a ausência de espoliação, o que o pensador francês defende como solução ao problema posto. A lei deve ser a Justiça Organizada. Nesse ponto, o ensaio retorna à questão da segunda causa do desvio da lei, a falsa filantropia.
Não se exige somente que a lei seja justa. Ela deve ser também filantrópica. Não se trata de só garantir ao indivíduo o livre exercício de suas faculdades, mas de garantir a todos o bem-estar, a instrução e a moralidade. Esse é o lado atraente do Socialismo. O ponto é que, no entanto, essas duas exigências são contraditórias. Não é possível ter liberdade e fraternidade, pois esta nunca pode ser real se for obrigatória. A fraternidade pode existir enquanto é voluntária. Quando é legalmente obrigatória, ela restringe necessariamente a liberdade.
A espoliação é justamente a tomada de uma propriedade, pela força ou pelo engano, de quem a detém por alguém que não a criou. A lei deveria defender o cidadão disso, mas é ela que faz uso da espoliação. A lei deveria ser negativa, impedir a injustiça, e não fazer reinar a justiça, como alguns defendem. Esse ideal negativo da justiça impede que a Personalidade, a Propriedade e a Liberdade sejam conspurcados.
Como seria possível organizar toda a sociedade, como querem os socialistas, sem criar a injustiça? Organizar o trabalho e a indústria seria possível somente pelo uso da força. A lei se torna o veículo da injustiça. Nada há no tesouro estatal que seja dirigido a uma determinada classe ou grupo que não tenha sido aí depositado por outros cidadãos por meio da força. O socialismo usa termos como a Fraternidade, a Organização, a Solidariedade e a Associação para seduzir as consciências sem deixar escapar que ele se baseia na espoliação legal.
Bastiat afirma que, ao negar a fraternidade por meio do Estado, não se está negando que a fraternidade deva existir. A questão é que ela não pode ser garantida pelo Estado a não ser por meio da coação e da força, isto é, da injustiça. A livre associação é boa, a associação obrigatória é má. Do mesmo modo, a solidariedade voluntária é boa, a solidariedade imposta pelo Estado é má.
Nas palavras de Bastiat:
"O Socialismo, como a velha política de onde ele emana, confunde Governo e a Sociedade. Eis a razão pela qual, cada vez que nós não queremos que algo seja feito pelo Governo, ele disso conclui que nós não queremos que esse algo seja feito de maneira nenhuma. Nós rejeitamos a instrução pelo Estado, então não queremos que haja instrução. Rejeitamos uma religião de Estado, então não queremos nenhuma religião. Rejeitamos a igualdade pelo Estado, então não queremos nenhuma igualdade, etc. É como se nos acusassem de não querer que os homens comam porque rejeitamos a cultura do trigo pelo Estado." (p.27)
O socialista vê os seres humanos como desprovidos de princípios de ação e de discernimento. Crê que a sociedade seja como uma massa informe que só pode alcançar a forma pela ação de um Organizador ou um Legislador. Deixada a si mesma, a humanidade tende à degradação, e só a figura do Legislador pode salvá-la desse destino funesto. Bastiat encontra essa mentalidade manifestada nas obras de pensadores como Bossuet, Fénelon, Montesquieu, Condillac e Rousseau, que chega ao cúmulo de comparar a sociedade a uma máquina inventada por um mecânico, cujas partes e a matéria que a constituem são os homens!
Os pensadores dos séculos XVII e XVIII consideraram o homem como uma matéria inerte plástica o suficiente para receber forma, figura, impulso, movimento e vida de um grande Legislador, de um grande Príncipe. Mas os homens não são pedaços de matéria esperando para serem alocados em uma ordem concebida de fora por um organizador. Os seres humanos são inteligentes e capazes de avaliações e de discernimento.
A Liberdade é que deve ser o objetivo. Liberdade de consciência, de ensino, de associação, de imprensa, de locomoção, de trabalho, de troca, etc. A Lei deve ser somente a regularização do direito individual à defesa ou o instrumento para reprimir a injustiça. Os grandes homens dos séculos XVII e XVIII não possuem outro objetivo que não submeter todos os homens ao seu despotismo filantrópico.
Os revolucionários de 1789, como Saint-Just, Robespierre, Billaud-Varennes, Lepelletier tinham a mesma crença na onipotência da Lei. Todos creem que o homem não pode por si ser bom, é mister um Organizador benevolente que por meio da Lei extirpe os vícios e faça florescer as virtudes que ele considera convenientes à República. Mesmo que para isso sejam empregados o terror e a ditadura, como defendia Robespierre.
É um círculo vicioso: a humanidade passiva e um grande homem que a move por meio da Lei. Quando é o caso de se escolher um legislador, o povo jamais erra. Tão logo o legislador assuma o seu posto, o povo volta a ser uma massa inerte que precisa ser moldada pelo Organizador sob pena de seguir sua tendência à degradação. É essa tendência, by the way, que torna a liberdade perigosa e desaconselhável. Se os homens, deixados a si mesmos, têm a inclinação funesta à degradação, deixá-los livres e sem direção central só conduzirá ao erro e ao vício.
Bastiat assevera que não é contra as idéias dos organizadores na medida em que elas não são impostas pela força a todos os homens. Ademais, se todos os seres humanos são inclinados à degradação, qual a autoridade sobre a sociedade que esses organizadores podem pleitear, dado que eles também são humanos? Não é razoável pensar que eles estejam tão acima assim dos outros homens. E se o Estado tudo domina e rege, qualquer erro ou qualquer insatisfação será sua responsabilidade e dará azo a novas revoluções.
A Lei é a força comum organizada fazer obstáculo à injustiça ou a organização do direito individual preexistente de legítima defesa. A solução do problema social está na liberdade. Há muitos grandes homens no mundo, muitos organizadores, guias, legisladores, condutores da Humanidade. Muitos que se põem acima dos homens para comandá-los.
Para Bastiat, entretanto, a sociedade não precisa desses guias iluminados e nem da intervenção providencial da Lei e do Estado em todas as relações humanas que configuram a sociedade. O necessário é a Lei proteger a liberdade individual.