quarta-feira, 22 de abril de 2020

"First Blood": violência, comunidade e integração da sombra



"Bendito seja o Senhor, meu rochedo, que adestra minhas mãos para o combate, meus dedos para a guerra."
SALMO 144,1

"O mundo heróico e cúltico apresenta uma relação com a dor inteiramente diferente daquela do mundo da sensibilidade. Enquanto no segundo busca-se marginalizar a dor e proteger a vida contra ela, no primeiro o ponto é integrar a dor e organizar a vida de tal modo que se esteja sempre armado contra ela (a dor)."

ERNST JÜNGER, Über den Schmerz

First Blood (1982), dirigido por Ted Kotcheff, é o primeiro filme do que posteriormente seria a franquia Rambo. O filme apresenta o personagem John J. Rambo, ex-combatente da guerra do Vietnã que é impedido pelas autoridades locais de entrar em uma cidadezinha de Washington chamada Hope, é preso e agredido, e reage violentamente usando táticas de guerrilha contra seus agressores.

John Rambo representa o homem destinado à violência. Ele não é um simples soldado convocado para servir na guerra do Vietnã, mas alguém cujo potencial ofensivo foi identificado pelo exército, moldado e aprimorado no duríssimo treinamento de uma tropa de elite: os Boinas Verdes (Green Berets). Durante a guerra, ele é condecorado com a Medal of Honor, a mais importante medalha por serviços militares. Cumprido o seu dever, ele é dispensado e retorna aos EUA.

O filme começa sete anos após sua dispensa e encontra John J. Rambo viajando para visitar um camarada de armas em uma pequena cidade. Ele encontra a casa de seu amigo, mas descobre que ele está morto devido a complicações relacionadas a um gás venenoso inalado na guerra. Rambo segue viagem e chega à uma cidade sugestivamente chamada Hope. O simbolismo aqui é óbvio. O veterano tenta entrar em Hope, isto é, tenta encontrar a esperança, mas há forças que o impedirão de alcançar seu intento.

O contexto evidente do filme é o da recepção conflituosa dos veteranos da guerra do Vietnã nos EUA. Todavia, há mais ali do que o retrato de um momento da história americana recente. O filme trata das relações entre a comunidade e a violência necessária para mantê-la. É possível questionar se e o quanto era necessário à segurança dos EUA o envolvimento na guerra do Vietnã. Analogamente, sempre é possível questionar a justiça, a conveniência ou a eficiência dos atos beligerantes de qualquer governo.

Contudo, toda sociedade precisa manter um certo contingente de homens preparados e treinados para a violência a fim de proteger a própria existência da comunidade de seus inimigos externos e internos. No mais das vezes, os cidadãos de um país não conhecem e nem desejam conhecer as ações que esses homens efetivamente realizam para manter a segurança da sociedade. O tema central, então, é a tensão universal entre a sociedade e seus guerreiros/soldados. O que a comunidade deve aos seus membros escolhidos e treinados para o exercício consentido da violência?

Rambo é desprezado pelos cidadãos de seu país, pois ninguém quer uma máquina de matar por perto. Ninguém quer ouvir suas histórias e seus traumas porque o cidadão comum não deseja saber os meios pelos quais a sua segurança é garantida na vida real, longe do círculo protetor da comunidade imediata. A entrada de John Rambo na cidade significa a irrupção de uma realidade brutal e inevitável no cenário pacífico de uma comunidade que esqueceu (ou quer esquecer) como a manutenção da vida exige e implica a morte.

A autoridade local, o xerife William "Will" Teasle, hostiliza Rambo e vocaliza o desejo da comunidade de que a brutalidade que ele representa passe ao largo da cidade. Ao tentar manter o idílio pacífico da comunidade, o xerife brutaliza Rambo achando que pode controlar o soldado como controla os bêbados da localidade. Essa é a hubris do xerife que atrai a desgraça para a sua pacata cidade. Isto é, ele acha que os meios de ação da comunidade, mesmo os mais severos e torpes, podem dar conta de um agente da violência empregada na manutenção de uma nação.

A brutalidade de Teasle, longe de afastar o perigo, ocasiona uma transferência simbólica fatal: a violência sofrida por Rambo nas mãos dos policiais é identificada interiormente à violência sofrida no cativeiro no Vietnã e dispara um mecanismo automático de defesa. O inimigo estrangeiro assume a forma de seus concidadãos. Hope torna-se o Vietnã. O resultado é óbvio. Rambo reage, foge, um policial morre acidentalmente, a guarda nacional é humilhada e o caos se instala na cidade.

A única voz que pode aplacar a fúria de Rambo é a de seu mentor, coronel Trautman, o homem que sofisticou seus talentos naturais para o combate. Trautman adverte o xerife de que seus homens não estão preparados para lidar com alguém como Rambo. As forças que foram ali libertadas não podem ser controladas com os meios e os recursos usuais da cidade. O coronel veio não para salvar Rambo das milícias locais, mas salvar as milícias locais de Rambo. Ele sugere que se deixe o soldado escapar do cerco para prendê-lo na próxima cidade. Mas o xerife não ouve o coronel e insiste em sua arrogância e em seu orgulho desmedido.

Obviamente, há aí o tradicional conflito entre a autoridade de uma cidade interiorana e uma autoridade que remete ao nível nacional. O xerife Teasle não ouve Trautman também porque o militar simboliza uma instância cujos motivos e interesses ultrapassam de muito os motivos e os interesses prosaicos de uma cidadezinha do interior. Trautman representa a intromissão dos assuntos nacionais na vida regional. Não foi o coronel quem criou o monstro que é Rambo? Agora a criação de Trautman e das autoridades de nível nacional ameaça a segurança da pacata cidade do xerife Teasle. O afastamento interiorano do centro das grandes decisões nacionais pode ser uma bênção, mas frequentemente gera a diminuição do horizonte e do senso de proporções.

Por sua vez, em contato com Trautman via rádio, Rambo recusa a rendição, pois foram as forças locais que derramaram o "primeiro sangue". Não há conciliação e nem possibilidade de integração na vida da comunidade. Rambo simboliza a violência que se volta contra a comunidade que a gerou e a incapacidade de integrar o lado sombrio da existência em um todo coerente. A sombra é rejeitada, escondida, expulsa da cidade. Mas ela não pode ser extinta, pois faz parte da estrutura da realidade. Então ela retorna, ronda a comunidade como um andarilho, e quando não encontra seu lugar, a sombra emerge como força descontrolada e destruidora.

A violência aumenta. O xerife Teasle é capturado por Rambo e não perde sua vida graças somente à intervenção providencial do coronel Trautman. Rambo finalmente reencontra alguém que entende o que significa a violência necessária à manutenção da comunidade idílica e pacífica. E sua confissão ao Coronel Trautman revela as lembranças dos horrores da guerra que povoam o seu espirito, bem como seus sentimentos de rejeição e de inadequação. Rambo paga o preço pessoal, psíquico e espiritual, daquele que é escolhido, ou talhado pela Natureza, para exercer a violência legitimada pela comunidade.

Ao final, Rambo é convencido por Trautman a render-se e é preso pelas autoridades. Mas o conflito que Rambo representa não se resolve, pois a necessidade da violência para a manutenção da paz interna e externa da comunidade faz parte da estrutura da realidade tanto quanto o conflito entre as leis da cidade e as αγραφοι νομοι em Antígona.

A vida individual de Rambo é também uma tentativa contínua de interação da sombra. Como é possível integrar tanta violência em sua nova vida de civil? Como os demais filmes da franquia evidenciam, toda vez que John busca a paz de espírito, ele é trazido de volta à guerra. Seus talentos são solicitados ora pelo governo, ora por particulares. Ele é incômodo por sua própria existência, mas, no final, é indispensável. John Rambo desempenha uma função que tem um preço interior muito alto. "Todos os que tomam a espada, pela espada morrerão", diz o Evangelho de Mateus. Mas qual comunidade pode dispensar seus soldados?
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