"O momento do qual é possível afirmar que anterior a ele a ignorância absolutamente não existia, não possui origem cognoscível. Contudo, se um ser que não existia toma existência ou um ser que existia deixa de existir, ele possui origem cognoscível."
MILINDA PANHA, II, 27
As grandes tradições espirituais (para não utilizar um termo mais restritivo como religiões) tratam, fundamentalmente, das relações entre o Incondicionado e o condicionado. Evidentemente, divergem em pontos importantes sobre como essas relações se dão, sobre a valorização dos diversos modos de ser, bem como em suas doutrinas acerca do que é o fim último do mundo e do homem.
O condicionado é toda a realidade que existe por causa de outro, que subsiste no ser graças à agência causal de outros entes condicionados ou do Incondicionado. É aquilo que o Budismo chama de originação dependente, o fato de que todos os entes que conhecemos pelos sentidos, por exemplo, vieram ao mundo por causa de outros e dependem de outros tantos para permanecerem no mundo e que, eventualmente, cessarão de existir quando suas condições de existência tiverem desaparecido.
O condicionado, por conseguinte, é o limitado, aquilo submetido a condições, o determinado, aquilo que apresenta termo e, é claro, finitude. Em certo sentido, é o insubstancial, o que tende ao não-ser, o que não possui em si mesmo sua razão de ser. Os entes todos do mundo, o homem aí incluso, apresentam esse caráter de instabilidade ontológica, essa fragilidade radical em seu ser que foi amiúde designada com o termo impermanência.
O Incondicionado, por outro lado, é aquela realidade última, absoluta e independente de toda e qualquer condição ou limitação. Não importando aqui se esse Incondicionado é interpretado em termos pessoais ou impessoais, o essencial reside em seu caráter negativo, isto é, essa realidade não é submetida a nenhuma das condições que limitam os entes conhecidos ou concebidos pelo homem.
Um ponto fundamental de distinção entre o Cristianismo e tradições espirituais como o Hinduísmo e o Budismo reside em que no Cristianismo a realização última do homem, um ente condicionado, é a comunhão condicionada com o Incondicionado pela eternidade. No Reino de Deus, todos os bem-aventurados ressuscitarão para uma vida corporal eterna de comunhão íntima e indissolúvel com Deus, sem mistura ou confusão. Embora a ressurreição seja gloriosa e uma elevação ontológica, o ser humano permanecerá um ente condicionado. Logo, a condição e o limite não são em si mesmos obstáculos à plena felicidade.
O que não significa que as condições efetivas onde se dá nossa existência terrena sejam aquelas dadas pelo Incondicionado no princípio. Este mundo tal como o conhecemos, e suas condições e limitações opressivas, é resultado da agência deliberada de um ser condicionado, o homem adâmico. Adão , no Paraíso, vivia condicionado (já que não era o Incondicionado), mas sua limitação não era obstáculo à comunhão e à contemplação de Deus, o Incondicionado. Mas quando o condicionado ambiciona ser o Incondicionado (a tentação sugerida pela serpente), ele degrada sua própria condição e a do mundo e cria, como uma espécie de deuteros theos, o mundo como o conhecemos. É a Queda e o Pecado Original.
Então, como a doutrina cristã afirma, o Incondicionado (encarnado como Jesus Cristo) tem de entrar no mundo dessas condições degradadas que reinam após a Queda a fim de restaurar a condição adâmica original. O drama cristão é o drama de um mundo degradado que não era para existir e do esforço do Incondicionado de restaurar as condições originais de comunhão com o condicionado. Nesse sentido, para o cristão não existe o "mundo natural". O mundo não é natural e não pode sê-lo a não ser no Éden e no Fim dos Tempos. Este mundo não é natural e nada do que há nele é natural. Inclusive o composto psicofísico que constitui o homem.
Evidentemente, nem tudo se perde na degradação e o mundo ainda reflete, até certa medida, a harmonia edênica original. Mas o ponto é que estas condições deste mundo não são aquelas do princípio. Natural, no sentido pleno da palavra, era o Éden. Daí que é possível compreender que haja no Cristianismo um discurso contra o mundo decaído e não um discurso contra a limitação per se. É contra este mundo que se ergue o santo, mas não contra todo e qualquer mundo. É contra estas condições que ele se revolta e não contra toda e qualquer condição.
Evidentemente, nem tudo se perde na degradação e o mundo ainda reflete, até certa medida, a harmonia edênica original. Mas o ponto é que estas condições deste mundo não são aquelas do princípio. Natural, no sentido pleno da palavra, era o Éden. Daí que é possível compreender que haja no Cristianismo um discurso contra o mundo decaído e não um discurso contra a limitação per se. É contra este mundo que se ergue o santo, mas não contra todo e qualquer mundo. É contra estas condições que ele se revolta e não contra toda e qualquer condição.
No Hinduísmo e no Budismo, é a própria existência de condições que é o obstáculo para a felicidade e para a realização supremas do condicionado. De certo modo, a limitação é insuportável e tudo o que é condicionado é destinado a um ciclo doloroso de nascimento, decadência e morte. Nesse sentido, a comunhão condicionada do condicionado com o Incondicionado, a vida eterna corporal e gloriosa do Cristianismo não é mais do que um estado aparentemente feliz, pois sofre de um defeito fundamental: o condicionado permanece condicionado diante do Incondicionado.
A única saída perfeita é a completa obliteração de qualquer condição. Em outros termos, o condicionado deve tornar-se o Incondicionado, retornar ao Incondicionado ou, simplesmente, desfazer a ilusão de que não é o Incondicionado. E isso implica jamais retornar ao mundo das condições, sejam estas quais forem.
A única saída perfeita é a completa obliteração de qualquer condição. Em outros termos, o condicionado deve tornar-se o Incondicionado, retornar ao Incondicionado ou, simplesmente, desfazer a ilusão de que não é o Incondicionado. E isso implica jamais retornar ao mundo das condições, sejam estas quais forem.
Daí decorre que mesmo os deuses (devas) e mesmo os paraísos dessas tradições espirituais não sejam mais do que modos de ser benfazejos, por assim dizer. São menos condicionados e, por causa disso, mais felizes. São atenuações das condições, modos mais sutis e mais brandos de condições. Mas, mesmo assim, são modos insatisfatórios do ponto de vista do objetivo último, de Moksha ou do Nibbana (embora essas mesmas tradições aceitem outros objetivos legítimos, como uma boa transmigração após a morte). Bom mesmo, contudo, só o Incondicionado.
É claro que tudo isso esteve e está sujeito a diversos tipos de elaboração, de desenvolvimento e de ênfase dentro das inúmeras correntes que se agitam dentro dessas tradições espirituais. Mas essa parece ser uma via de compreensão fundamental a ser explorada em estudos sobre religião.