sábado, 16 de junho de 2018

Notas sobre o condicionado e o Incondicionado nas tradições espirituais



"O momento do qual é possível afirmar que anterior a ele a ignorância absolutamente não existia, não possui origem cognoscível. Contudo, se um ser que não existia toma existência ou um ser que existia deixa de existir, ele possui origem cognoscível."

MILINDA PANHA, II, 27

As grandes tradições espirituais (para não utilizar um termo mais restritivo como religiões) tratam, fundamentalmente, das relações entre o Incondicionado e o condicionado. Evidentemente, divergem em pontos importantes sobre como essas relações se dão, sobre a valorização dos diversos modos de ser, bem como em suas doutrinas acerca do que é o fim último do mundo e do homem.

O condicionado é toda a realidade que existe por causa de outro, que subsiste no ser graças à agência causal de outros entes condicionados ou do Incondicionado. É aquilo que o Budismo chama de originação dependente, o fato de que todos os entes que conhecemos pelos sentidos, por exemplo, vieram ao mundo por causa de outros e dependem de outros tantos para permanecerem no mundo e que, eventualmente, cessarão de existir quando suas condições de existência tiverem desaparecido.

O condicionado, por conseguinte, é o limitado, aquilo submetido a condições, o determinado, aquilo que apresenta termo e, é claro, finitude. Em certo sentido, é o insubstancial, o que tende ao não-ser, o que não possui em si mesmo sua razão de ser. Os entes todos do mundo, o homem aí incluso, apresentam esse caráter de instabilidade ontológica, essa fragilidade radical em seu ser que foi amiúde designada com o termo impermanência.

O Incondicionado, por outro lado, é aquela realidade última, absoluta e independente de toda e qualquer condição ou limitação. Não importando aqui se esse Incondicionado é interpretado em termos pessoais ou impessoais, o essencial reside em seu caráter negativo, isto é, essa realidade não é submetida a nenhuma das condições que limitam os entes conhecidos ou concebidos pelo homem.

Um ponto fundamental de distinção entre o Cristianismo e tradições espirituais como o Hinduísmo e o Budismo reside em que no Cristianismo a realização última do homem, um ente condicionado, é a comunhão condicionada com o Incondicionado pela eternidade. No Reino de Deus, todos os bem-aventurados ressuscitarão para uma vida corporal eterna de comunhão íntima e indissolúvel com Deus, sem mistura ou confusão. Embora a ressurreição seja gloriosa e uma elevação ontológica, o ser humano permanecerá um ente condicionado. Logo, a condição e o limite não são em si mesmos obstáculos à plena felicidade. 

O que não significa que as condições efetivas onde se dá nossa existência terrena sejam aquelas dadas pelo Incondicionado no princípio. Este mundo tal como o conhecemos, e suas condições e limitações opressivas, é resultado da agência deliberada de um ser condicionado, o homem adâmico. Adão , no Paraíso, vivia condicionado (já que não era o Incondicionado), mas sua limitação não era obstáculo à comunhão e à contemplação de Deus, o Incondicionado. Mas quando o condicionado ambiciona ser o Incondicionado (a tentação sugerida pela serpente), ele degrada sua própria condição e a do mundo e cria, como uma espécie de deuteros theos, o mundo como o conhecemos. É a Queda e o Pecado Original.

Então, como a doutrina cristã afirma, o Incondicionado (encarnado como Jesus Cristo) tem de entrar no mundo dessas condições degradadas que reinam após a Queda a fim de restaurar a condição adâmica original. O drama cristão é o drama de um mundo degradado que não era para existir e do esforço do Incondicionado de restaurar as condições originais de comunhão com o condicionado. Nesse sentido, para o cristão não existe o "mundo natural". O mundo não é natural e não pode sê-lo a não ser no Éden e no Fim dos Tempos. Este mundo não é natural e nada do que há nele é natural. Inclusive o composto psicofísico que constitui o homem.

Evidentemente, nem tudo se perde na degradação e o mundo ainda reflete, até certa medida, a harmonia edênica original. Mas o ponto é que estas condições deste mundo não são aquelas do princípio. Natural, no sentido pleno da palavra, era o Éden. Daí que é possível compreender que haja no Cristianismo um discurso contra o mundo decaído e não um discurso contra a limitação per se. É contra este mundo que se ergue o santo, mas não contra todo e qualquer mundo. É contra estas condições que ele se revolta e não contra toda e qualquer condição.

No Hinduísmo e no Budismo, é a própria existência de condições que é o obstáculo para a felicidade e para a realização supremas do condicionado. De certo modo, a limitação é insuportável e tudo o que é condicionado é destinado a um ciclo doloroso de nascimento, decadência e morte.  Nesse sentido, a comunhão condicionada do condicionado com o Incondicionado, a vida eterna corporal e gloriosa do Cristianismo não é mais do que um estado aparentemente feliz, pois sofre de um defeito fundamental: o condicionado permanece condicionado diante do Incondicionado.

A única saída perfeita é a completa obliteração de qualquer condição. Em outros termos, o condicionado deve tornar-se o Incondicionado,  retornar ao Incondicionado ou, simplesmente, desfazer a ilusão de que não é o Incondicionado. E isso implica jamais retornar ao mundo das condições, sejam estas quais forem.

Daí decorre que mesmo os deuses (devas) e mesmo os paraísos dessas tradições espirituais não sejam mais do que modos de ser benfazejos, por assim dizer. São menos condicionados e, por causa disso, mais felizes. São atenuações das condições, modos mais sutis e mais brandos de condições. Mas, mesmo assim, são modos insatisfatórios do ponto de vista do objetivo último, de Moksha ou do Nibbana (embora essas mesmas tradições aceitem outros objetivos legítimos, como uma boa transmigração após a morte). Bom mesmo, contudo, só o Incondicionado.

É claro que tudo isso esteve e está sujeito a diversos tipos de elaboração, de desenvolvimento e de ênfase dentro das inúmeras correntes que se agitam dentro dessas tradições espirituais. Mas essa parece ser uma via de compreensão fundamental a ser explorada em estudos sobre religião.

sábado, 2 de junho de 2018

"The Killing of a Sacred Deer": tragédia, erro e sacrifício



"É a única coisa que consigo pensar que está perto da justiça."
Martin


A tragédia trata sempre das consequências dos atos, divinos ou humanos, estando seus agentes cientes ou não de seu papel como desencadeadores dos acontecimentos. Como Édipo que, embora desconhecesse que Laio era seu pai e Jocasta sua mãe, deve pagar a retribuição pelos crimes de parricídio e incesto a fim de aplacar as funestas consequências de seus atos para a cidade de Tebas.

Aristóteles afirma em sua Poética que o herói trágico é homem de virtude e justiça comuns que, não por conta de depravação ou defeito moral, comete um erro (hamartia) que desencadeia consequências que tornam desafortunado aquele que antes era afortunado, espetáculo diante do qual o público experimenta medo e piedade. O Professor de Estudos Clássicos Malcolm Heath salienta, em sua introdução à Poética, que o termo hamartia não deve ser entendido como um engano de ordem meramente intelectual, excluindo toda e qualquer culpa moral. 

O termo implica apenas que o erro cometido não decorre de um caráter mau, mas de uma má decisão pontual, tomada por ignorância, engano ou por erro moral de maior ou menor responsabilidade. Um dos exemplos que o Professor Heath elenca é o de um engenheiro que, por algum descuido ou negligência, erra em seus cálculos para a construção de uma ponte. A consequência é a queda da ponte e a morte de diversas pessoas. Imagine-se, para defesa do engenheiro, que sua distração foi causada pela perturbadora notícia de que está com câncer. Moralmente culpável, sua negligência seria ao menos compreensível dadas as circunstâncias.

Todavia, as mortes se deram e uma reparação tem de ser feita. Esse é o cerne narrativo de The Killing of a Sacred Deer (2017), de Yorgos Lanthimos. O filme explora a amizade entre o cirurgião cardiologista Steven Murphy e o adolescente Martin que encontram-se periodicamente para conversar. A princípio, tudo parece remeter à relação pai e filho com o doutor dando conselhos, dinheiro e presentes ao jovem. Todavia, logo fica claro que Steven é movido por algo inconfessável.

Casado com a bela Anne e pai de Kim e Bob, o médico tem uma boa vida, uma casa espaçosa, prestígio e sucesso em sua área de atuação. O jovem, no entanto, desde o início mostra claros sinais de inadequação social, timidez, educação excessiva e um certo ar de alienação da realidade. E o motivo presumido dessa sua estranheza reside na recente morte de seu pai, falecido durante uma cirurgia cardíaca realizada por Steven. Fica claro que a amizade entre os dois é fruto do sentimento de culpa do médico.

Os encontros aumentam de frequência e Steven leva Martin para conhecer sua família. Logo Kim, a filha do cirurgião, encanta-se pelo jovem e ambos começam uma relação amorosa. Mas a amizade entre Steven e Martin deteriora-se na medida em que o jovem exige mais e mais atenção, insinua que sua mãe viúva poderia casar com Steven e começa a persegui-lo no hospital. Desconfortável, o médico afasta-se do rapaz e este, por fim, revela-lhe a razão de sua invasiva proximidade: ele culpa Steven pela morte do pai.

Martin culpa Steven e exige reparação. Seu pai fôra tirado dele, então algum membro da família de Steven deverá morrer para que o equilíbrio seja restaurado. Se a escolha e o sacrifício não forem realizados por Steven, seus filhos e sua mulher, um após o outro, sofrerão as consequências. Martin profetiza que, primeiro, perderão o uso das pernas, logo depois não conseguirão comer e, por fim, sangrarão pelos olhos e morrerão.

Bob é o primeiro a perder o movimento das pernas e a deixar de comer. Kim o segue logo depois. Steven, contudo, não crê em Martin e busca soluções médicas, seu métier. Todos os tratamentos falham e ele desespera-se. Anne, por seu turno, desconfia de que algo está errado e descobre que o marido, um alcoólatra recuperado, havia bebido um pouco antes da fatídica cirurgia do pai de Martin. Eis o "cervo sagrado" do título.

Agamemnon, chefe das hostes aquéias, estacionado com suas tropas em Áulis, mata um cervo do bosque sagrado de Ártemis durante uma caça. Como castigo, a deusa interfere nos ventos impedindo que a frota zarpe para Tróia. Calchas, o vidente, adverte Agamemnon que os ventos só retornarão se ele sacrificar sua filha mais velha, Ifigênia, como reparação da ofensa à deusa. O rei hesita e caos cresce no meio das tropas. Premido pelas circunstâncias, ele ordena que a esposa, Clitemnestra, traga a filha a Áulis, sob pretexto de casá-la com Aquiles, a fim de sacrificá-la para apaziguar Àrtemis.

Steven é Agamemnon que deve escolher entre seus entes queridos qual sacrificará para restaur a paz com o divino. Martin é a um tempo o ofendido e o vidente, Àrtemis e Calchis, o divino e o profeta. Anne é Clitemnestra que acabará por concordar com o sacrifício de um de seus filhos. É ela quem questiona Martin sobre por qual razão eles deveriam pagar pelo erro de Steven. Ele responde que é a coisa mais próxima de justiça que ele consegue pensar.

O médico ainda não crê em Martin, sequestra-o, espanca-o e exige que ele restaure a saúde de seus filhos. De nada adianta tentar coagir o ofendido, o sagrado. Assim como no início Steven não conseguira restaurar o equilíbrio com seus meios tímidos, dando alguma atenção a Martin, agora também seus meios violentos e desesperados não funcionarão. O sagrado tem sua lógica própria e demanda satisfação proporcional ao delito. 

Aliás, foi Steven que trouxe o infortúnio para sua casa. Fisicamente, inclusive. Ele convidou Martin a conhecer sua família. Simbolicamente, convidou o sagrado, tentou negociar, entrar em termos com ele. O homem, contudo, não controla essas realidades. O sagrado pode manifestar seu poder, como a proximidade de Martin melhora momentaneamente a saúde de Kim. No entanto, quando Steven sequestra Martin ou quando Kim implora pela cura, Martin nada opera, para o desespero de ambos.  

Anne cuida dos ferimentos de Martin e beija seus pés reverentemente. Não há nada mais que possa fazer. Então, liberta o jovem. Steven protesta. Os olhos de Bob começam a sangrar, o último estágio da profecia de Martin antes da morte. Todos morrerão, um a um, até que o médico convença-se de que deve reparar seu erro?

A hamartia de Steven, causada pela fraqueza do vício e não pela maldade, desencadeou os eventos que tornaram a sua vida desafortunada. A reparação é requerida e Steven, ao final, cede. Encapuza sua esposa, seus filhos e a si mesmo. Armado com uma espingarda, gira e atira a esmo até que atinge seu filho Bob. Não escolhe qual ente querido sacrificar, deixa a decisão à Moira. O sacrifício é realizado. 

Na cena final, Martin encontra com Steven, Anne e Kim em uma lanchonete. Eles não cumprimentam-se. Obviamente, a família está destruída. As ações têm consequências. Desejadas ou não, previstas ou não, e quem agiu deve assumir seus efeitos. Steven e a família saem da lanchonete sob o olhar inexpressivo de Martin. Ao saírem, é a filha a única a fitar diretamente o sagrado.