''Em verdade, o Uno está para além de toda sentença, pois
qualquer afirmação se faz de alguma coisa. Mas o Todotranscendente,
estando acima mesmo do augustíssimo divino
Intelecto, possui ele somente todo o ser e não é uma coisa entre
outras coisas. Não podemos dar-lhe nenhum nome, pois isso
implicaria predicação. Podemos somente tentar indicar, de nossa
forma débil, algo com relação a Ele.''
PLOTINO, Enéadas, V,III,13
''Assim, Deus apareceu-lhe e ele teve comunicação íntima com esse Ser supremo que não tem figura, do qual não é possível criar qualquer representação e que é incompreensível. Eu fui muito feliz por aproximar-me uma vez em minha vida desse Ser divino e por me unir a Ele. Eu tinha em torno de sessenta e oito anos. Era essa união que constituía a totalidade dos desejos de Plotino. Ele alcançou quatro vezes esse gozo divino durante o tempo em que com ele estive. O que acontece então é inefável.''
Plotino (205-270 D.C.), grego egípcio, discípulo de Amonius Saccas em Alexandria, segundo seu discípulo Porfírio escreve no início de sua Vida de Plotino, ''parecia ter vergonha de possuir um corpo.'' Em busca de conhecimento, o filósofo tentou alcançar a Índia tomando parte em uma expedição militar do imperador Gordiano contra a Pérsia Sassânida. Todavia, Gordiano foi derrotado e morto e Plotino, sem jamais chegar à Índia, acabou por instalar-se definitivamente em Roma.
Na capital imperial, o filósofo logo cercou-se de discípulos, tornando-se tutor dos filhos de diversas famílias patrícias romanas. Compôs (e ditou) tardiamente cinquenta e quatro tratados que foram corrigidos e reunidos por seu discípulo Porfírio sob o nome de Enéadas.
Plotino, discordando de Aristóteles, concebia que o uno e o ser não são
modos diferentes de expressar a mesma realidade. Tudo aquilo
que é só pode ser o que é na medida em que é uno. Dito de outro modo, ser algo é antes de tudo ser uno. Por essa
razão, não é o ''ser enquanto ser'', o objeto de estudo da
Metafísica segundo Aristóteles, o fundamento último da realidade,
mas sim o Uno.
Consequentemente, o primeiro princípio é o Uno (Hen) ou Primeiro, no qual não
existe qualquer divisão. Ele é o Bem, a fonte de todas as coisas,
concede o ser a todo ser. Está para além do ser, já que ser é sempre ser algo. É, portanto,
inefável, indizível, realidade supraessencial e eterna.
Como o calor procede ou emana do fogo, do Uno procede ou
emana o Ser ou o Intelecto (Nous). Nesse ''mundo das Idéias''
estão, desde toda a eternidade, os modelos individuais de
cada coisa que existe no mundo sensível. É um verdadeiro mundo, completo, perfeito ao qual a mundo
sensível imita e não acrescenta absolutamente nada.
O
Intelecto é como uma mente idêntica a seus pensamentos e
que contempla eternamente a unidade que subjaz a todos
eles, o Uno. O Intelecto é o Ser, pois nele estão contidas as essências
eternas de tudo o que há. Ali estão os verdadeiros existentes. Acima dele só o Bem, o Uno supraessencial.
Analogamente, do Intelecto emana ou procede a Alma (Psyché),
intermediária entre o Intelecto e o mundo sensível. É como o
Demiurgo platônico do Timeu de Platão. Sua essência é gerar, produzir, ordenar e reger a vida. Por
conseguinte, da Alma emanam ou procedem a Alma do Mundo e
as almas individuais. A Alma está igual e integralmente presente
na Alma do Mundo tanto quanto nas almas individuais.
Segundo Giovanni Reale, em seu Plotino e Neoplatonismo, ''a novidade de Plotino, com relação à tradição grega
clássica, consiste em ter projetado a possibilidade de realizar a
separação do sensível e do corpóreo e de realizar plenamente a
união com o Uno, já nesta vida, mediante a unificação místico-estática
com o Absoluto.''
Porfírio assevera que seu mestre tivera essa experiência de união mística com o Uno quatro vezes durante sua vida. Como o Uno está para além de toda e qualquer palavra ou conceito humanos, para além do Ser (pois ele é a fonte do Ser), ele só pode ser descrito negativamente, isto é, por exclusão daquilo que ele não é. É a via apofática.
O apofatismo nega a imperfeição para afirmar a perfeição e nega a perfeição para não afirmar a imperfeição. Isto é, nenhuma imperfeição pode ser atribuída ao princípio último da realidade, só a perfeição. Contudo, qualquer perfeição dos entes limitados é, por definição, também limitada. Por essa razão, a atribuição de uma perfeição limitada acarretaria na atribuição de uma limitação e, por conseguinte, de uma imperfeição.
''Não podemos, é verdade, captá-Lo pelo conhecimento, mas isso
não significa que estamos totalmente vazios d'Ele. Tratamos d'Ele
não para enunciar o que Ele é, mas para falar sobre Ele. E
podemos enunciar e efetivamente enunciamos aquilo que não é,
enquanto permanecemos em silêncio acerca do que é. Estamos,
de fato, falando d'Ele à luz de seus efeitos. Incapazes de
enunciá-Lo, podemos contudo possuí-Lo.'' Enéadas, V, III, 14
O Uno não cabe em nenhuma categoria ou gênero e a união com ele desafia toda e qualquer descrição. Nenhuma experiência comum pode adequadamente descrevê-la. Mas os limites da linguagem obrigam a usar termos imperfeitos para tratar da realização da união perfeita com a perfeição última:
''(…) Sem dúvida, não devemos falar de visão. Contudo, não
podemos deixar de falar em dualidades, visão e o que é visto, ao
contrário de, ousadamente, falar de realização da unidade. Nessa
visão, não temos um objeto e nem traçamos distinção. Não há
dois. O homem é mudado, não mais é ele mesmo e nem mais
pertence a si mesmo. Ele é fundido no Supremo, submerso n'Ele,
um com Ele. O centro coincide com o centro, pois nesse plano
mais alto, as coisas que se tocam são unas. Somente na
separação há dualidade. Pelo nosso afastamento, o Supremo é
posto para o exterior. É por isso que a contemplação desconcerta o falar. Não podemos
nos afastar do Supremo e defini-lo. Se contemplamos algo dessa
forma separado, então não contemplamos o Supremo o qual só
pode ser conhecido como uno conosco.'' Enéadas, VI, IX,10
...
Leia também:
Nenhum comentário:
Postar um comentário