Plano hipodâmico do Pireu
No livro II da Política, Aristóteles discute brevemente as idéias políticas de Hipodamos de Mileto (498-408 A.C.), a quem atribui a invenção da arte de projetar cidades e o planejamento da cidade-porto de Pireu. Ainda segundo o filósofo macedônio, Hipodamos considerava-se um adepto do conhecimento da natureza, além de ser o primeiro não político a dedicar-se a investigações sobre a melhor forma de governo.
No livro II da Política, Aristóteles discute brevemente as idéias políticas de Hipodamos de Mileto (498-408 A.C.), a quem atribui a invenção da arte de projetar cidades e o planejamento da cidade-porto de Pireu. Ainda segundo o filósofo macedônio, Hipodamos considerava-se um adepto do conhecimento da natureza, além de ser o primeiro não político a dedicar-se a investigações sobre a melhor forma de governo.
Aristóteles fornece uma descrição intrigante da personalidade de Hipodamos, afirmando que este, graças a sua ambição por distinções, tornara-se um indivíduo algo excêntrico. Sua excentricidade manifestava-se, por exemplo, no uso simultâneo de longos cabelos e caros ornamentos e da mesma roupa barata e quente tanto no inverno quanto no verão.
Pouco se conhece da vida e das idéias de Hipodamos para além do que é informado pelo próprio Aristóteles. A Hipodamos atribui-se a obra de 451 A.C. intitulada Estudo de Planejamento Urbano para o Pireu. O plano de organização de cidades em grade passou a ser conhecido como plano hipodâmico por causa de Hipodamos, que o utilizou em cidades gregas como Pireu.
Aristóteles afirma que o planejador milésio concebeu uma cidade ideal cujo número de habitantes atingiria o máximo de dez mil e que teria uma divisão tripartite de classes e de funções. Haveria três classes: a dos artesãos, a dos agricultores e a dos guerreiros. A terra deveria também ser dividida em três classes: sagrada, pública e privada. A primeira seria destinada ao sustento do culto dos deuses, a segunda destinada ao sustento dos guerreiros e a terceira destinada aos agricultores.
No âmbito legislativo, Hipodamos defendia a existência de somente três tipos de leis que refletiriam os três únicos tipos de ações judiciais: insulto, injúria e homicídio. Defendeu também a existência de uma suprema corte, última instância de apelação para as causas inadequadamente julgadas. Tal corte deveria ser formada por anciãos escolhidos exclusivamente para esse serviço.
Hipodamos era contra o sistema de votos por contagem de seixos utilizado nas cortes gregas e, em seu lugar, propôs um sistema no qual os juízes simplesmente declarariam seus votos em tábuas, julgando o réu inocente deixando a tábua em branco, culpado escrevendo a sentença na tábua. Em caso de condenação parcial, o juiz deveria discriminar em qual medida o réu seria inocente e em qual medida seria culpado. Isso, segundo Hipodamos, impediria o perjúrio, já que cada juiz estaria impedido de mudar sua sentença original de acordo com os votos da maioria.
Por fim, Aristóteles assevera que Hipodamos considerava que aqueles que descobrissem qualquer coisa de bom para a cidade deveriam ser honrados publicamente e os filhos dos cidadãos mortos em combate deveriam ser sustentados pelo estado. E quanto aos magistrados, eles seriam eleitos por todos os cidadãos, qualquer que fosse a classe.
Passando à crítica das proposições de Hipodamos, Aristóteles aponta primeiramente as consequências indesejadas da divisão tripartite da cidade. Dado que a sociedade é dividida em três classes e só uma delas detém a posse de armas, a consequência indesejada seria a escravidão daqueles que não possuem armas por aqueles que as possuem. Em outros termos, os guerreiros escravizariam os agricultores e os artesãos.
A idéia de que os magistrados devam ser escolhidos entre os membros das três classes também não se sustentaria, pois como generais e guardiões dos cidadãos poderiam ser escolhidos dentre aqueles que não têm armas? E se somente os guerreiros podem exercer o poder, não há motivo para que os agricultores e os artesãos sejam leais a essa organização social.
Alguém poderia objetar que os guerreiros devem mesmo mandar nas outras classes. Nesse caso, Aristóteles replica, essa dominação só poderia estabelecer-se após um período de tempo e somente sustentar-se-ia se os guerreiros fossem numericamente superiores aos outros cidadãos. E se eles forem realmente superiores numericamente, por qual razão deveriam os outros cidadãos possuir o direito de partilhar o poder e de eleger magistrados?
A divisão das terras também cria problemas, pois parece não haver serventia para os agricultores na cidade de Hipodamos. Artesão são sempre necessários na cidade e agricultores seriam úteis para fornecer comida aos guerreiros. Ocorre que Hipodamos defende que as terras dos agricultores sejam cultivadas somente por eles e para proveito próprio.
Não restaria diferença entre guerreiros e um agricultores, como quer Hipodamos, se os primeiros tivessem de cultivar a terra pública assim como os segundos as suas próprias terras. A hipótese de um grupo que cultivasse a terra dos guerreiros em seu lugar e não fosse formado por agricultores tornaria necessário aumentar o número de classes para quatro, o que vai contra o preceito básico de Hipodamos acerca da divisão tripartite de classes.
Resultado igualmente insatisfatório se seguiria da hipótese de que os agricultores cultivariam tanto as terras públicas quanto as suas próprias a fim de manter a si mesmos e aos guerreiros. Nesse caso, os agricultores não conseguiriam o suficiente para sustentar duas classes. Vê-se, conclui Aristóteles, que as teses de Hipodamos acerca da divisão da cidade conduzem à confusão.
As medidas concernentes aos tribunais também não surtiriam os efeitos desejados pelo planejador. No sistema de sentenças pregado por Hipodamos a confusão ainda poderia se dar. Ainda que cada juiz julgasse o réu claramente culpado, isso não significa que todos eles concederiam a quantia inteira requisitada pelo reclamante.
Se o reclamante pede vinte minas como restituição por um crime e um juiz considera o réu culpado, isso não significa que ele concederá as mesmas vinte minas ao reclamante. Ele poderá conceder dez, enquanto outro juiz concederá cinco. Outro ainda, quatro minas. Nesse caso, os juízes terão de consultar uns aos outros e algum método de debate terá de ser admitido. Sendo assim, os juízes acabarão por mudar suas sentenças originais de acordo com as sentenças dos outros juízes, justamente o que Hipodamos queria evitar.
Ninguém afirma que um juiz que simplesmente condene ou absolva cometa perjúrio, pois ao absolver, por exemplo, o juiz não diz que que o réu não é culpado, mas tão somente que ele não deve ao reclamante as vinte minas que este exige em reparação. Somente comete perjúrio o juiz que considera que o réu não deve vinte minas e ainda assim o condena.
Aristóteles avança para a crítica à aparentemente inócua lei de homenagear todos os cidadãos descobridores de qualquer coisa útil à cidade. Em primeiro lugar, uma lei de tal natureza encorajará delatores, pois alguns acharão as descobertas boas, mas outros acharão-nas ruins e denunciarão seus propugnadores.
Em segundo lugar - e mais importante -, se alguém descobre algo novo que se refere ao bem da cidade, isso pode pôr em xeque as leis estabelecidas. Daí que será necessário discutir se é ou não um bem mudar as leis da cidade. E sobre isso há dúvidas. Se, por exemplo, toda mudança de leis for inoportuna, então a medida de Hipodamos não poderá ser aplicada.
A favor da mudança das leis estabelecidas por novas leis quando estas provarem-se melhores que aquelas antigas poder-se-ia aduzir que mudanças foram benéficas às artes e às ciências, como a medicina e a ginástica. E se a política é uma arte, então o mesmo deve se dar com ela, isto é, leis antigas podem e devem ser mudadas e substituídas por novas leis melhores.
E que algum progresso nesse âmbito já foi realizado provam os costumes simples e incivilizados dos antigos. Aristóteles cita exemplos de leis rudes como a dos antigos helenos que compravam suas esposas uns dos outros e a estranha lei da cidade de Cumae segundo a qual um acusado de homicídio estaria condenado se o acusador conseguisse reunir um certo número de testemunhas dentro de sua própria família.
Outra prova de que a mudança é necessária é que, dado que os homens buscam o bem, eles podem (e, de novo, devem) rejeitar as leis de seus pais que forem inadequadas. Levando-se em conta que os primeiros homens (tendo eles origem autóctone ou sendo sobreviventes de alguma catástrofe natural ) deveriam ser não mais que ordinários ou até mesmo simplórios, seria ridículo manter suas leis e costumes inalterados.
Mas há ainda uma razão para a mudança que repousa na própria natureza das leis, a saber, a diferença entre o caráter universal da norma e sua aplicação a casos particulares. Como a lei é sempre geral, ela não é capaz de apresentar ou prever todos os casos aos quais ela será aplicada e nem como ela deve ser aplicada em cada um deles. Consequentemente, em alguns casos, a lei deverá ser adaptada e alterada a fim de moldar-se às situações concretas de sua aplicação.
Há razões contra as mudanças, no entanto. O hábito de trocar as leis facilmente é um mal em si mesmo e quando a vantagem da mudança é pequena, será melhor suportar alguns erros dos legisladores antigos. O costume da desobediência às leis será dano maior ao cidadão do que as vantagens da mudança constante das normas.
A analogia feita acima entre as leis e as artes é falsa, pois mudar uma lei é algo muito diferente de mudar algo em uma arte. As leis retiram seu poder de comando do costume e este só pode assentar-se depois de algum tempo. A mudança constante das leis só terá como consequência o enfraquecimento do próprio poder de comando das normas.
Explica Tomás de Aquino em seu comentário à Política:
"As coisas que pertencem às artes tiram sua eficácia do poder da razão, mas as leis não possuem outro poder para persuadir os cidadãos de que cumprir as leis é bom a não ser o costume, o qual exige tempo para estabelecer-se. Então, aquele que muda facilmente a lei, enfraquece na mesma medida o seu poder."
Retoma-se aqui uma diferença crucial entre a arte e a virtude que havia sido enfatizada no livro II na Ética a Nicômaco. A arte, sendo um raciocínio correto na produção de algo, necessita somente do conhecimento como condição. A virtude necessita mais do que conhecimento. Necessita principalmente escolha consciente do cumprimento do que é certo e o firme hábito (costume ou caráter) correspondente. Só o tempo e a prática podem produzir esse hábito virtuoso.
Diversas perguntas restam para serem respondidas mesmo que se admita que certas leis devam ser mudadas. Todas as leis deverão ser mudadas ou somente algumas? Todas as pessoas poderão mudá-las ou só algumas escolhidas? Aristóteles considera-as questões importantes e, por isso, promete dedicar-se detidamente a elas em capítulos posteriores.
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Leia também:
http://oleniski.blogspot.com.br/2016/08/aristoteles-igualdade-de-posses-e.html
http://oleniski.blogspot.com.br/2016/06/aristoteles-politica-unidade.html