domingo, 31 de julho de 2016

Philip K. Dick e "Dark City": quem mexeu na minha realidade?






"Não há impossibilidade lógica na hipótese de que o mundo veio a existir há cinco minutos, exatamente como era então, com uma população que 'lembrava' todo um passado irreal. Não há conexão lógica necessária entre eventos em tempos diferentes. Consequentemente, nada que está acontecendo agora ou que acontecerá no futuro pode refutar a hipótese de que o mundo começou há cinco minutos atrás."

LORD BERTRAND RUSSELL, The Analisis of Mind, p. 159-160

"- (...) Ouça, Ruth. Vi o tecido da realidade se rasgar. Eu vi - por trás. Por baixo. Eu vi o que realmente havia lá. E não quero voltar."

PHILIP K. DICK, Adjustment Team

O filme Dark City (1998), embora não oficialmente baseado em nenhuma obra de Philip K. Dick, trata de um tema que se encontra desenvolvido no conto do escritor homônimo intitulado Adjustment Team: a possibilidade de que a realidade cotidiana seja uma superestrutura falsa construída por um ou mais entes inteligentes.

Na modernidade, a possibilidade da manipulação da realidade por entes inteligentes foi aventada por René Descartes no seu famoso cenário cético do malin génie. Não será que nossas faculdades são manipuladas por um gênio mau de tal modo que tenhamos certeza de coisas que, na verdade, são falsas? Formulada essa possibilidade, todo esforço estará concentrado em saber se aquilo do qual temos certeza e evidência corresponde à realidade e não, ao contrário, ilusão e falsidade.

No filme de 1998, um homem (Rufus Sewell) acorda em uma banheira sem saber quem é ou como chegou lá. Logo, contudo, ele descobre que é acusado de assassinatos cruéis e é perseguido por um detetive que investiga o caso (William Hurt). Descobre também que seu nome é John Murdoch e que é casado (com a belíssima Jennifer Connelly).

Murdoch é ajudado por um certo Dr. Daniel Schreber que, aos poucos, revela que a cidade onde vivem é, na verdade, uma criação de seres extraterrestres - os Estranhos - que parasitam cadáveres humanos e que criaram aquela ilusão como um grande experimento científico  a fim de compreender o que é a individualidade humana. Tais seres conseguem recriar periodicamente a cidade a seu bel-prazer por meio do poder de suas mentes, em uma espécie de sessão de concentração coletiva que eles denominam ajuste (tune).

Durante essas recriações periódicas, os habitantes humanos ficam desacordados e têm novas memórias implantadas em seus cérebros, a fim de que desenvolvam reações diferentes a cada novo ajuste. Desse modo, cada habitante teve tantas vidas diferentes quantas foram as recriações e adaptações realizadas pelos Estranhos. Por conseguinte, nenhum habitante possui qualquer identidade histórica real, uma vez que suas memórias são completamente falsas e constantemente trocadas por outras.

Ocorre que John Murdoch acordou no meio de uma dessas adaptações e testemunhou a mudança de inúmeros elementos da realidade circundante, inclusive a ação direta de ajuste dos Estranhos. Por assim dizer, inadvertidamente Murdoch rasgou o véu da realidade fantasmática a que esteve preso e viu a natureza das coisas.

No conto de Philip K. Dick, Ed Fletcher, um homem comum, sai de casa atrasado para o trabalho e testemunha a dissolução física de uma parte inteira da cidade, inclusive do prédio onde trabalhava. Viu tudo ao redor, o prédio e as pessoas em seu interior reduzindo-se a pó. No meio da dissolução, Fletcher vê a ação de um time de ajuste que realiza as mudanças e que, ao perceber a sua presença, passa a persegui-lo.

Depois dessa terrível revelação e logrando escapar de seus perseguidores, Fletcher, já em casa, conta à esposa Ruth o acontecido. Convencida de que o marido sofreu alguma espécie de surto, ela convence-o de que deve retornar a seu local de trabalho a fim de provar a si mesmo que tudo não passou de uma ilusão. Fletcher concorda e volta ao prédio que antes vira transformar-se em pó junto com todos os seus habitantes.

O choque é imenso quando Fletcher chega ao local onde estava o prédio onde trabalhava e percebe que ele permanecia lá, inteiro, sólido, como se nada tivesse acontecido. No seu interior, as mesmas pessoas que haviam transformado-se em pó estão vivas e normais. Aparentemente, tudo estava no seu devido lugar.

Estaria louco? Doente? A resposta vem quando ele percebe que as coisas não estão exatamente como antes de seu "surto". Há mudanças pequenas, mas significativas. Seu chefe está mais jovem, a secretária veste uma saia diferente da usual, a disposição da sala do chefe não é a mesma. Tudo parece haver passado por algum ajuste.

Fletcher, apavorado, tenta fugir e é finalmente capturado e levado à presença do chefe do "time de ajuste". O chefe explica que o setor T137 - onde ficava o prédio onde trabalhava Fletcher - teria que passar por um grande ajuste e que ele deveria estar lá para também ser ajustado. Contudo, por um erro interno, o time de ajuste não conseguiu fazer com que Fletcher estivesse no prédio a tempo e, pior, com isso acabou permitindo que visse o processo de destruição e reconstrução do setor T137.

Agora não havia volta. Fletcher tinha que morrer. Desesperado, ele pede por sua vida e promete nada contar do acontecido a ninguém desde que lhe fosse permitido simplesmente retornar à sua vida normal. Depois de ponderar, o chefe da turma de ajuste permite que retorne à vida normal sob a condição de nada revelar sobre a realidade que testemunhara. Fletcher aceita a restrição e retorna ao seu mundo sem nada dizer à mulher sobre a descoberta que fizera.

Curiosamente, o retorno de Fletcher ao mundo é idêntico ao pedido de retorno de Douglas Quail às memórias falsas em We Can Remember It For You Wholesome. Assim como Quail, Fletcher descobre inadvertidamente a realidade e é ameaçado e sentenciado à morte pelas forças controladoras da ilusão. Ambos, Fletcher e Quail, preferem retornar à ilusão à morte.

Os contos parecem ser versões anti-platônicas do Mito da Caverna. Em Platão, os prisioneiros da caverna não sabem que estão presos e que contemplam uma realidade ilusória. Quando um prisioneiro é libertado, sente-se inadaptado à nova realidade e quer retornar à caverna. Eventualmente, ele acostuma-se e passa a entender e a apreciar a verdade que é apresentada em sua nova condição.

Quail e Fletcher fazem o oposto. Eles preferem retornar à caverna, às suas vidas comuns, desde que sejam poupados da morte. A morte aí é símbolo do sacrifício que é necessário fazer para entrar na realidade. Mister é morrer para a realidade anterior e ilusória, ou seja, desiludir-se. O preço, não obstante, é alto e a recusa da morte é a recusa ao desapego da velha natureza e da vida comum.

Em Dark City, a revelação da falsidade das memórias e do constante ajuste que a realidade sofre pelo poder mental dos Estranhos é acompanhada pela descoberta de que Murdoch também consegue ajustar. De alguma maneira, ele tem o poder de moldar a realidade de acordo com seus desejos. Ele saiu da caverna e é capaz de criar uma nova caverna.

O ponto não é mais a libertação da ilusão e sim qual ilusão é melhor. Ao final do filme, Murdoch vence seus adversários extraterrestres e modifica a cidade ilusória de acordo com sua vontade, como uma espécie de demiurgo intramundano. Ele não está fora do mundo como os Estranhos. Ele pertence ao mundo, mas é capaz de modificá-lo como se fosse seu criador.

Na verdade, Murdoch usurpa o lugar dos Estranhos, mais ou menos como Zeus usurpa o trono de Cronos e aprisiona os Titãs, inaugurando uma nova monarquia e o domínio dos olímpicos. Os antigos deuses e suas realidade são destronados e uma nova ordem instaurada.

Diferentemente do prisioneiro que é libertado da caverna pela agência externa daquele que conhece a realidade, Murdoch sai da caverna não para apresentar aos outros prisioneiros a realidade e sim para recriar a realidade de uma forma que considera melhor. Ele, como um Messias, inaugura "novos céus e nova terra". E estes refletem não mais do que os desejos de Murdoch.

Embora essa nova realidade seja boa, ela ainda é ilusória para os outros habitantes da cidade. Os Estranhos eram uma comunidade de seres com memórias e propósitos compartilhados por todos os seus membros, como uma grande mente única. Essa comunidade é derrotada e substituída pelo arbítrio de um único indivíduo iluminado, John Murdoch.

No caso do conto de Dick, a realidade cotidiana e compartilhada é modificada por agentes externos ao mundo e a descoberta dessa agência não cria no protagonista o desejo de sair dessa ilusão e sim embrenhar-se nela novamente desde que sua vida antiga retorne a ser o que era. Dark City dá um passo a mais na medida em que a descoberta da manipulação da realidade por potências estrangeiras a este mundo enseja não uma reinserção na velha ordem, mas o destronamento dos antigos artífices e o conseqüente reinado do arbítrio do ex-prisioneiro.


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http://oleniski.blogspot.com.br/2016/07/philip-k-dick-memoria-e-ilusao-em-we.html

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