quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Descartes e o mundo: mecanicismo, física e a imutabilidade divina



"Contentar-me-ei, porém, com vos advertir de que, para além das três leis que expliquei, não quero supor  outras senão  as que se seguem infalivelmente dessas verdades eternas, sobre as quais os matemáticos se acostumaram a apoiar as suas mais certas e mais evidentes demonstrações, verdades estas, digo eu, de acordo com as quais o próprio Deus nos ensinou que dispusera  todas as coisas em número, em peso e em medida,  e cujo conhecimento é tão natural a nossas almas que não poderemos deixar de julgá-las infalíveis, enquanto as concebermos distintamente, nem duvidar  de que, se Deus tivesse criado vários mundos, elas seriam em todos tão verdadeiras quanto neste aqui. Desse modo, aqueles que souberem examinar suficientemente as consequências dessas verdades e de nossas regras poderão conhecer os efeitos por suas causas e, para me explicar nos termos da Escola, poderão ter demonstrações a priori de tudo o que pode ser produzido nesse novo mundo."

RENÉ DESCARTES, O Mundo ou Tratado da Luz (traduzido por César Augusto Battisti para a edição da Editora da Unicamp), p.103

O trecho acima citado, retirado do início da obra "O Mundo ou Tratado da Luz" escrito entre 1629 e 1633, mas publicado somente após a morte do autor, apresenta de forma clara o projeto científico de Descartes: o tratamento dos fenômenos naturais a partir de princípios claros e distintos e, portanto, indubtáveis.

Tais princípios são encontrados no próprio sujeito, após uma laboriosa meditação, e servem de base segura para a posterior dedução do comportamento de todos os fenômenos do mundo físico. Para Descartes, aquilo que é verdadeiro da idéia de uma coisa é necessariamente verdadeiro da natureza dessa mesma coisa. Portanto, encontrar a idéia clara e distinta de uma coisa é saber com toda a certeza o que ela é.

Ora, para Descartes, a idéia clara e distinta da matéria é a pura extensão. Logo, matéria é pura extensão (res extensa).  Tudo o mais que não seja extensão pertencerá ao mundo do pensamento. Sendo assim, a metafísica funda a física e lhe dá uma base firme da qual esta pode derivar suas leis próprias.

Assim sendo, se a matéria é mera extensão, então toda a ciência física pode operar por leis meramente matemáticas. Tudo o que acontece no mundo segue leis matemáticas deduzidas da natureza da matéria como mera extensão. Não há no mundo físico nada mais do que matéria e movimento, ou, extensão e deslocamento espacial.

Note-se, en passant, que Descartes, citando as Escrituras, afirma que o próprio Deus ensinara os homens que o mundo fôra disposto em "número, em peso e em medida". É preciso lembrar também que essa não era uma simples medida diplomática para amaciar os ouvidos das autoridades eclesiásticas, mas que o apelo a Deus era uma necessidade intrínseca do sistema cartesiano, como testemunham as Meditações Metafísicas. Lá, o sábio francês afirma que todo o edifício da ciência segura se apóia, em última instância, em Deus.

Tal era o projeto mecanicista cartesiano: deduzir as leis necessárias e suficientes do movimento a partir de um conjunto mínimo de regras deduzidas, por sua vez, dos princípios claros e distintos da natureza da matéria.

Pois bem. Temendo reações contrárias - Galileu foi condenado no ano em que Descartes finalizava a obra, 1633 - Descartes postula a hipótese de um outro mundo que Deus poderia se propor a criar utilizando-se somente dos princípios aventados na obra. Em outros termos, Descartes dizia que, ao utilizar exatamente os princípios que ele postulava, Deus alcançaria o mesmo mundo que atualmente existe. Pretensão pouca é bobagem.

Se a natureza física é formada por entes materiais cujas relações de movimento obedecem a leis matemáticas, então o mundo é um mecanismo. Eis o que há de original em Descartes na concepção sobre o mundo: a autonomia da máquina. Já no famoso Discurso do Método, Descartes afirmava que os animais eram meras máquinas ou autômatos. Todo o seu comportamento era regido segundo leis mecânicas plenamente de acordo com os princípios da matéria enquanto mera extensão.

O que isso significa? Significa que não há nada dentro do animal a não ser um mecanismo que funciona automaticamente sem o controle de ninguém. O seu gato é um relógio que mia.

Mas e o homem? O homem tem um corpo material que funciona segundo leis mecânicas, mas que é controlado por uma substância pensante imaterial, a res cogitans. Isso significa que, ao menos logicamente, é possível pensar que, um dia, seja possível construir um autômato, uma máquina, cuja aparência externa seja igual a de um homem de verdade e que se comporte externamente como um homem de verdade, sem sê-lo.

Descartes aventou essa hipótese, rejeitando-a somente por causa da impossibilidade técnica de se construir uma máquina que conseguisse reunir internamente tantas partes e tantos mecanismos quantos seriam necessários para dar respostas adequadas a todas as situações a que o homem é obrigado a responder.

Todavia, a possibilidade, ainda que empiricamente não factível (ainda), existe. E existe justamente porque o corpo é tomado como uma máquina e, por conseguinte, capaz de operar autonomamente sem que ninguém precise controlá-la momento a momento. O mesmo dar-se-ia com o mundo. Ele pode operar autonomamente, sem ninguém controlando-o. Um grande relógio funcionando de acordo com leis mecânicas. 

O problema é que, por mais que o relógio seja autônomo em seu funcionamento, ele não surgiu de si mesmo. Ele só funciona porque alguém o construiu. E seu funcionamento só pode iniciar se alguém der a corda, ou, em termos mecânicos, o impulso inicial. E o relógio funciona somente por um tempo, enquanto a corda o impulsiona. Mas isso tem limites. Uma hora a corda acaba e a máquina pára de funcionar.

Ok, o relógio precisa de:

a) Alguém que o construa;
b) Alguém que dê a corda;
c) Alguém que o mantenha funcionando.

Àqueles familiarizados com as bases metafísicas do cartesianismo aqui expostas em posts anteriores, já sabem a resposta. O relojoeiro do mundo não pode ser outro senão Deus. Ora, Deus cria a matéria com determinada natureza e as operações dos corpos dar-se-ão segundo as leis que podem ser deduzidas dessa mesma natureza. O mecanismo, então, é criado por Deus. 

Mas e a corda? Bem, segundo Descartes, Deus criou a matéria e, sendo ela extensão, há inúmeras partes feitas de matéria - de tamanhos e formas variadas - que se tocam em todos os lados não havendo vazio possível, sob pena de fazer intercalar o nada entre as partes materiais. Acontece que Deus cria tais partes materiais com diversos movimentos próprios desde do seu primeiro momento de existência. É só e somente o choque entre essas partes que faz com que elas mudem e diversifiquem seus movimentos.

Eis que já temos quem tenha dado a corda no mecanismo. Atente-se para o fato de que, a matéria sendo mera extensão e o mundo físico sendo formado por partes materiais, o movimento só pode acontecer pela ação de contato entre essas partes. Ou seja, não há ação à distância ou vazio. Mas se nenhuma dessas partes se move a não ser pela ação de outras partes sobre elas, então se nenhuma se mover primeiro, nenhuma se moverá depois. 

Se é assim, entretanto, é necessário um primeiro impulso, pois nenhuma delas, segundo os princípios da matéria meramente extensa, poderá mover a si mesma. Sendo mera extensão, nenhuma parte pode mover a si mesma para mover as outras. Há que existir um primeiro impulso de uma causa que não seja ela mesma material, sob pena de regresso ao infinito.

O impulso é dado pelo relojoeiro divino. A segunda condição foi satisfeita. Deus dá o primeiro impulso nas partes materiais dotando-as desde sua criação de um determinado movimento próprio que só se altera no choque posterior com outras partes materiais.

E a terceira condição? Esse choque entre as partes não pode esgotar o impulso inicial como a corda de um relógio tende a diminuir sua ação? O relógio não pode parar?

A fim de manter a sua pretensão de um mundo físico regido somente por leis mecânicas, Descartes precisou de um relojoeiro para criar o mecanismo e dar a ele o impulso que as partes materiais não poderiam dar a si mesmas e agora precisa da imutabilidade da natureza divina e, por conseguinte, de sua ação para assegurar o funcionamento contínuo do mecanismo. Como se dá isso?

Simples. Deus sempre age da mesma forma, pois é imutável. Assim sendo, ao criar o mundo, Ele o mantém com as mesmas leis em todo o tempo. Por conseguinte, se Deus cria as partes materiais com um determinado movimento desde seu primeiro momento de existência e o mantém até que haja uma mudança por conta da ação de outros corpos, agindo Ele sempre da mesma maneira, as partes materiais tenderão a permanecer no estado em que estiverem até serem obrigadas a mudar por fatores externos.

Por conseguinte, "cada parte material permanece no mesmo estado enquanto o encontro com outras não a obrigue a alterá-lo." Ela não se tornará maior ou menor, não mudará de forma e não entrará em movimento ou em repouso a não ser que seja obrigada pela ação de uma outra parte material. Se se puser em movimento, permanecerá em movimento com força igual. Eis a primeira regra.

Deus sempre age do mesmo modo e preserva as coisas da mesma forma com que as criou. Toda a modificação não provém senão do choque entre as partes materiais. Havendo tais choques e, como consequência, as modificações que sofrem as partes materiais, aquilo que é impelido retira daquele que o impele a mesma quantidade de movimento que lhe é acrescida pelo impulso. Ou seja, se uma bola de bilhar se choca com outra, a diminuição da quantidade de movimento da primeira que se verifica no choque é acrescida exatamente à quantidade de movimento da segunda. 

Descartes explica:

"Ora, ocorre que essas duas regras resultam manifestamente apenas deste fato, de que Deus é imutável e de que, por agir sempre da mesma maneira, produz sempre o mesmo efeito. Pois, supondo que Ele tenha posto certa quantidade de movimento em toda matéria em geral desde o primeiro instante em que a criou, é preciso admitir que conserve sempre a mesma quantidade, ou então não acreditar que aja sempre do mesmo modo." (p.95)

Para que a quantidade de movimento seja sempre a mesma e para que o mecanismo não pare, é necessário que Deus mantenha sempre a mesma quantidade de movimento com a qual dotou o mundo no início.

A terceira regra se segue do mesmo princípio da ação divina. Ela diz que cada uma das partes do corpo que se move tende a se mover em linha reta, embora o corpo como um todo se mova sempre em curva. O modo mais simples de se entender essa regra é lembrar de como a pedra de uma funda em movimento, tão logo seja lançada, se desloca em linha reta.

A idéia é a de que, em cada momento particular de uma trajetória curva, ele tende sempre a se mover em linha reta. É somente a coerção dos outros corpos que mantém curvilínea a trajetória de um corpo. Mais uma vez, Descartes explica:

"Essa regra se apóia sobre o mesmo fundamento das outras duas, e depende apenas do fato de que Deus conserva cada coisa por uma ação contínua e, por conseguinte, que não a conserva tal como ela possa ter sido algum tempo antes, mas precisamente tal como ela é no mesmo instante em que Ele a conserva." (p.99) 

O movimento retilíneo simples, pois tudo o que é necessário para que ele se dê se encontra contido em cada instante determinável de uma trajetória. Ao contrário, o movimento circular necessita, para se dar, de pelo menos dois instantes.

Assim, se Deus mantém as coisas no estado em que estão num instante determinado, e se tudo o que é preciso para iniciar um movimento retilíneo está contido no instante de uma trajetória qualquer, então o único  movimento que tem sua origem na ação divina de preservação é o movimento retilíneo. Daí que todo o movimento diferente do movimento retilíneo se deve somente às ações recíprocas das partes materiais entre si.

Como se vê, o mecanicismo cartesiano só pode se sustentar apelando a princípios extra-mecânicos, seja para a criação do mecanismo do mundo, seja para a comunicação do primeiro impulso que faz o mecanismo funcionar, seja para a manutenção desse funcionamento no tempo. Não obstante, todo sistema mecanicista sofrerá com os mesmos problemas e terá que apelar para princípios cuja natureza não pode ser deduzida dos seus pressupostos ontológicos. Newton viu isso com clareza.

Para Descartes, contudo, a obra estava assentada sobre fundamentos inabaláveis, claros e distintos, de tal forma que se poderia construir uma física a priori, somente deduzindo as leis do comportamento dos corpos daquelas regras fundamentais fundadas na natureza da matéria enquanto mera extensão.  

E se a experiência comum contradissesse explicitamente essas regras tão bem fundadas? Descartes dizia que não poderia deixar de crer na verdade dessas regras, uma vez que repousavam sobre o fundamento mais sólido possível: a imutabilidade divina.

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